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Tegumi no karate-dō: a participação da luta nativa de 

Okinawa no desenvolvimento do caminho das mãos vazias

Tegumi en karate-do: la participación de la lucha nativa de Okinawa en el desarrollo del camino de las manos vacías

Tegumi in karate-do: the participation of the original Okinawan fight in the development of the way of empty hands

 

Bacharel em Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Membro do Centro de Estudos Olímpicos da ESEF-UFRGS

Estudante de pós-graduação (especialização) na Universidade Gama Filho

Professor de Karate (1º Dan) pela Wadô-ryu Renmei do Brasil

Brandel José Pacheco Lopes Filho

brandelfilho@gmail.com

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          O Karate-dō é uma arte marcial surgida em Okinawa, com base em suas práticas internas de combate e influencias japonesa e chinesa. É consenso que no início essa forma de luta era baseada em técnicas grosseiras, com ênfase em torções, agarramentos e contusões. Outra luta local com a mesma descrição, porém mais antiga, é o Tegumi, prática de combate nativa de Okinawa. O presente estudo tem como objetivo resgatar as origens culturais e técnicas que permearam a prática do Karate-dō ao longo de sua construção histórica como uma arte marcial, focando-se na prática do Tegumi. Para isso, foram consultados livros, artigos e demais publicações pertinentes ao tema, em uma tentativa de recontar as origens da arte marcial.

          Unitermos: Karate. Tegumi. Esporte. Cultura.

 

Resumen

          El Karate-Do es un arte marcial que surgió en Okinawa, en base a sus prácticas internas e influencias en las artes marciales japonesas y chinas. El consenso es que esta primera forma de lucha se basa en técnicas rústicas, con énfasis en torsiones, agarres y golpes. Otra lucha local con la misma descripción, aunque más antigua, es el Tegumi. El presente estudio tiene como objetivo rescatar los orígenes culturales y técnicos que impregnaron la práctica de Karate-do a lo largo de su construcción histórica como un arte marcial, centrándose en la práctica de Tegumi. Para esto se consultaron libros, artículos y otras publicaciones relacionadas con el tema en un intento de relatar los orígenes del arte marcial.

          Palabras clave: Karate. Tegumi. Deporte. Cultura.

 

Abstract

          Karate-Do is a martial art that emerged in Okinawa, based on their internal practices and combat Japanese and Chinese influences. Currently it is known that initially this form of combat was based on crude techniques, with an emphasis on twists, grabs and bruises. Another type of combat with the same description, though older, is Tegumi, native fighting practice of Okinawa. The present study aims to rescue the cultural origins and techniques that have permeated the practice of Karate-do over its historic building as a martial art, focusing on the practice of Tegumi. For this, books, articles and other publications relevant to the topic in an attempt to recount the origins of the martial art.

          Keywords: Karate. Tegumi. Sport. Culture.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Año 18 - Nº 181 - Junio de 2013. http://www.efdeportes.com/

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1.     Considerações iniciais

    O Karate-dō 1 é uma arte marcial originada em meados do século XIV, em Okinawa, ilha localizada entre China e Japão e, atualmente, uma prefeitura japonesa (NAKAZATO et al, 2005). Ao longo de sua construção, o Karate-dō recebeu influências de diversas culturas, em especial desses dois países devido à localização geográfica de Okinawa, que nesse período foi um reino vassalo da China, e mais tarde, do Japão. Além disso, era local de amplo movimento e comércio portuário (NAKAZATO et al, 2005; FIGUEIREDO, 2006). Dessa forma, baseado em sua construção cultural, podemos entender o Karate-dō como uma disciplina híbrida (SHINJYO et al, 2004), multicultural e pluritemática (CAMPS; CEREZO, 2005), confundindo-se muitas vezes com lendas e ditos populares (TAN, 2004; FROSI; MAZO, 2011).

    Surgindo como uma forma de sobrevivência, o Karate-dō hoje faz parte do conjunto de artes marciais japonesas 2, ressignificado como uma disciplina de desenvolvimento pessoal através de práticas de luta (FUNAKOSHI, 2000; 1973; STEVENS, 2005). É inclusive, uma modalidade esportiva reconhecida pelo Comitê Olímpico Internacional (WKF, 2012). Ao longo de sua jornada histórica, diversos elementos que o compunham cultural e tecnicamente foram suprimidos, para que ingressasse, de fato, no sistema japonês de artes marciais e despontasse como modalidade esportiva (FUNAKOSHI, 2000). Dentre esses elementos estão presentes técnicas de combate como o Quán-fǎ, o Kobudō e o Tegumi. Dentre os três citados, Tegumi é o menos abordado na literatura, não havendo consenso sobre sua participação efetiva na construção do que hoje é conhecido como Karate-dō. Ainda assim, podemos encontrar traços dele, ocultos em sua prática e treinamento, especialmente no que diz respeito à arte marcial enquanto autodefesa.

    Portanto, o presente estudo tem como objetivo resgatar as origens culturais e técnicas que permearam a prática do Karate-dō ao longo de sua construção histórica como uma arte marcial, focando-se na prática do Tegumi. Mais especificamente, pretendemos (re)montar os passos evolutivos do Karate-dō, identificando os pontos nos quais o Tegumi esteve presente em sua construção. Sendo esta uma investigação do Karate-dō em sua dimensão cultural, essa pesquisa tem como referência os pressupostos da História Cultural (BURKE, 2008), cujo objeto de estudo é entendido como prática cultural, permitindo assim uma melhor perspectiva das nuances históricas. As fontes consultadas foram livros, artigos de periódicos, teses e sites, destacando-se textos escritos pelo próprio Gichin Funakoshi, um dos maiores responsáveis pela difusão do Karate-dō pelo mundo. Esses documentos foram submetidos à análise documental de acordo com Laurence Bardin (2008) e Nancy Struna (2002). Como ferramenta auxiliar de pesquisa, realizou-se uma busca sistemática em 22 bases de dados para averiguar a exploração do tema em publicações científicas e consulta de fontes extras para o estudo, que complementassem as publicações previamente selecionadas. Este trabalho se justifica por apresentar contribuições para os estudos culturais e históricos acerca do Karate-dō, identificando elementos pouco abordados e até mesmo esquecidos em sua literatura.

    Para a escrita de palavras japonesas, foi adotada a romanização padronizada pelo sistema Hepburn , a qual segue as normativas internacionais (ROSS, 2009) 3. Isso se faz necessário para que a tradução e interpretação dos termos estejam em conformidade com as normas de adaptação estrangeira (GOULART, 2009), além de ser essencial dentro de um estudo que possui como tema uma prática cuja língua natal é inerente a sua cultura.

2.     Resultados da busca sistemática

    Para a realização da busca sistemática foram escolhidas 22 bases de dados, selecionadas das áreas de “Ciências da Saúde”, subárea “Educação Física”, e “Ciências Humanas”, subárea “História”. Os resultados estão descritos na tabela 1.

Tabela 1. Busca sistemática nas bases de dados

    Dentre todas as bases de dados, apenas duas possuíam publicações referentes ao Karate-dō associando-o ao Tegumi, sendo que dos três artigos encontrados, somente dois tratavam, de fato, da perspectiva de história e cultura (SVINTH, 2003; NOBLE, 2000). Ainda assim, o Tegumi figura brevemente nos textos como detalhe, não como assunto importante ou central. Cerca de 3.000 artigos dessa busca foram analisados, na procura de menções indiretas ao tema em questão, não sendo encontrada nenhuma fonte relevante que já não constasse no banco de dados dos autores. Por esse motivo, o presente estudo se baseou fundamentalmente em referenciais teóricos selecionados previamente à busca sistemática.

3.     A construção cultural do karate-dō

    As artes marciais possuem uma história difícil de reproduzir, com poucos fatos comprovadamente reconhecidos, pois os antigos professores passavam seu conhecimento de forma restrita, por meio da tradição oral, não existindo quase nenhum registro histórico documentado. No entanto, acredita-se que as primeiras formas sistemáticas de luta surgiram na Índia com a arte marcial denominada Vajramushti, em aproximadamente 5.000 a.C (BULL, 1988). Mais tarde, essas práticas seriam levadas à China, dando origem aos muitos estilos de Wushu 4, e então para o resto do mundo (BULL, 1988; MINICK, 1974).

    Da mesma forma, não existem documentos históricos precisos em torno das origens das lutas em Okinawa pelas mesmas razões supracitadas (STEVENS, 2005), mas com outro agravante: grande parte da ilha foi destruída durante a Segunda Guerra Mundial, levando consigo documentos e pessoas que detinham tais conhecimentos. No entanto, há relatos (AGUIAR, 2008; SHINZATO & BUENO, 2007; STEVENS, 2005; MCCARTHY, 1995) de que já existiam algumas formas de luta próprias de Okinawa antes das conhecidas influências estrangeiras que teriam originado o que veio a ser o Karate-dō.

    Como ocorreu com inúmeras outras práticas corporais de combate espalhadas pelo mundo, o Karate-dō surge em seus primórdios como uma ferramenta de sobrevivência. Sendo Okinawa um reino dividido em feudos, sua sociedade era também dividida na forma de classes sociais, dentre as quais destacamos os Heimin 5, termo usado para referenciar os camponeses, e os Peichin 6, a classe militar guerreira de Okinawa. Como ocorreu em outras culturas, os Heimin possuíam uma posição social desprivilegiada e sofriam com tributação abusiva por parte dos nobres (paga em produção agrícola). Em caso de não pagamento ou atraso, sofreriam punição indicada pelo governo para inadimplência, o que se configurava em ter suas moradias incendiadas e suas famílias assassinadas (RATTI & WESTBROOK, 2006). Os responsáveis pela cobrança e aplicação da punição legal eram os Peichin, os quais exerciam sua função de forma rígida e até mesmo abusiva, o que obrigou os Heimin a criar formas de se defender (SHINZATO & BUENO, 2007).

    Assim, surgiu o que veio a ser denominado como Te (ou Ti, na pronúncia nativa de Okinawa): um método de combate que se utilizava basicamente de técnicas rudimentares, como agarramentos, empurrões e ataques com as mãos e os pés, além do uso de diversas ferramentas rurais como foices, enxadas, ancinhos e batedores de arroz (SHINZATO & BUENO, 2007; MCCARTHY, 1995). Com o tempo, a prática do Te acabou sendo apropriada pelos próprios Peichin, que a mesclaram com práticas de luta provenientes da China, dando origem ao Tōde 7 (pronúncia de Okinawa – Karate, na pronúncia japonesa), que significava literalmente “Mãos Chinesas” (FUNAKOSHI, 1999; YAMASHIRO, 1993).

    Em 1901 d.C o Tōde/Karate foi inserido como disciplina de Educação Física nas escolas de Okinawa sob a tutela de Anko Itosu 8 (NAKAZATO et al, 2005) e, mais tarde, auxiliado por Gichin Funakoshi, considerado o Pai do Karate-dō Moderno 9 e criador do estilo Shōtōkan, tendo suas técnicas adaptadas para o ensino em tal ambiente. Diversos aspectos, ditos perigosos, foram retirados de seu ensino formal para que pudesse ser praticado pelos jovens (FUNAKOSHI, 2000). Mais tarde, a partir de 1920, Funakoshi realizou diversas visitas diplomáticas ao Japão para demonstrar essa arte marcial ao povo e ao próprio Imperador, introduzindo-a por fim no Japão continental. Com isso, alterou-se seu nome de Tōde/Karate (com o significado “Mãos Chinesas”) para Karate-dō (Caminho das Mãos do Vazio), para melhor aceitação do povo japonês (STEVENS, 2005). Isso se deu através da troca do primeiro ideograma que significava ‘China’, para o que remete a um dos elementos da tradição zen budista japonesa, nomeado como ‘Vazio’ (tabela 2) (FUNAKOSHI, 1973). No entanto, a história do surgimento do Karate-dō e sua inclusão como uma arte japonesa é permeada por outras sutilezas.

Tabela 2. Ideogramas que foram alterados para adaptação do nome à cultura japonesa

4.     A antiga arte do tegumi

    Na verdade, a prática de luta tem sido parte significativa da história de Okinawa muito antes de qualquer influência externa ou do surgimento propriamente dito do Te e, conseqüentemente, do Karate-dō. Como mostrado em diversos livros, as primeiras técnicas de defesa esboçadas pelos Heimin eram muito rudimentares e grosseiras. Apesar de não serem profundamente exploradas na maioria das publicações, suspeita-se que essas formas de combate sejam o Tegumi 10, uma das mais antigas formas de luta da cultura de Okinawa (FUNAKOSHI, 2000; NAGAMINE, 2000).

    Referenciada por alguns autores (LOWRY, 2009; SEILER & SEILER, 2006; ABERNETHY, 2003; 2002; NAGAMINE, 2000; MCCARTHY, 1999b) como uma forma de luta indígena ou primitiva, baseada em torções, empurrões e agarramentos, o Tegumi é, talvez, a técnica de luta mais antiga de Okinawa. Suas técnicas não possuíam estudo ou base teórica em seus primórdios, sendo mais similares a técnicas de wrestling modernas do que ao próprio Karate-dō. Sendo uma prática cultural da ilha, o Tegumi continuou sendo exercido ao longo da história e tornou-se uma espécie de jogo competitivo entre os mais jovens, que se reuniam em grupo para a prática (O’BRIEN & O’BRIEN, 2010; LOWRY, 2009; STEVENS, 2005). Hoje, o Tegumi tem um rigoroso conjunto de regras e ainda é amplamente praticado, sendo o folclore de Okinawa permeado por referências a essa luta (NAGAMINE, 2000). De certa forma, seria um correspondente ao Sumō 11, uma prática corporal primitiva japonesa que se configurou séculos mais tarde como arte marcial e um esporte.

    De acordo com McCarthy (1999b) o Karate-dō surgiu como uma síntese das técnicas chinesas absorvidas no período em que Okinawa era um reino vassalo do império, e do próprio Tegumi. Alguns dos antigos mestres de Karate-dō, inclusive, teriam tido treinamento em Tegumi, como o próprio Kenwa Mabuni, criador do estilo de Karate-dō Shitō-ryū. Aliás, esse estilo é caracterizado por manter certos elementos do Tōde/Karate original, como o próprio Kobudō (AGUIAR, 2008; MCCARTHY, 1999a). Corroborando com esse autor e com os textos de Nagamine (2000) de que o Tegumi seria um possível antecessor do Karate-dō, Gichin Funakoshi (2000, p.95), afirma:

    [...] a luta corpo a corpo de Okinawa tem certas características que a tornam única. Como acontece com o Karate, a origem dessa luta também é desconhecida, e muitos habitantes de Okinawa acreditam que deve ter havido um certo relacionamento entre os dois.”

    Ainda no mesmo manuscrito, o autor comenta brevemente o funcionamento do Tegumi enquanto jogo competitivo dos jovens de sua época:

    Diferentemente da maioria das formas de luta, em que os participantes usam pouca roupa, os que se atracam num confronto de Tegumi se apresentam totalmente vestidos. Além disso, não há ringue especial; o confronto pode acontecer em qualquer lugar — dentro de casa ou num campo próximo. Devo mencionar que quando era jovem em geral utilizávamos os ambientes externos para os confrontos, em primeiro lugar por serem mais animados, e em segundo porque nossos pais não gostavam de ver estragadas as portas de papel corrediças e os tapetes de tatame. É claro que quando lutávamos num campo, primeiro tínhamos de retirar todas as pedras e pedregulhos, os quais se constituem em característica predominante do terreno rural de Okinawa (FUNAKOSHI, 2010, p. 95).

    Mais que demonstrar um passatempo rotineiro, o texto acima apresenta traços importantes da cultura local, como as estruturas físicas dos lares, que não resistiriam a certas práticas corporais mais vigorosas, dentre as quais o Tegumi parece estar inserido. Além disso, mostra que a cultura do combate teria feito parte da formação dos habitantes de Okinawa desde sua infância, reforçado no seguinte trecho: “Como qualquer outro menino de Okinawa, passei muitas horas alegres envolvido em lutas de Tegumi ou assistindo a elas [...]” (FUNAKOSHI, 2000, p. 95). Sendo um elemento presente tão fortemente nos traços culturais do povo da ilha, não seria de se espantar que essa forma de combate estivesse presente na construção do Karate-dō enquanto arte marcial, pois como ressalta Lowry (2009 p. 8, tradução nossa): “O Karate de Okinawa, tradicionalmente possuía uma série de técnicas de agarramento/chaves”; ou seja, o antigo Tōde possuía em seu repertório uma gama variada de técnicas de agarrões, não apenas as técnicas de contusão hoje ensinadas.

    O ensino do Karate antigo de Okinawa (ou seja, o Tōde) se dava na forma do estudo dos kata, exercícios constituídos por seqüências pré-determinadas de técnicas que simulam um combate contra vários adversários. Os kata representavam a principal forma de manutenção das tradições dessa arte marcial (FROSI, OLIVEIRA & TODT, 2008), contendo em si a essência de sua forma de combate. Depois de exercitada de forma solitária à exaustão, o praticante de Tōde passaria ao estudo do bunkai 12, isto é, a aplicação dessas técnicas à realidade. De acordo com Lowry (2009 pp. 8-9, tradução nossa), diversas técnicas de contenção e projeção estariam presentes no bunkai dos antigos kata de Okinawa:

    Técnicas de mão aberta em um kata de Karate geralmente indicam, por exemplo, que o movimento era originalmente usado para agarrar ou segurar um adversário, seja para uma imobilização ou uma projeção. Quanto mais antigo o kata, de fato, mais os movimentos de mão aberta estão presentes - uma característica que podemos ver no kata Rohai e nas primeiras versões do Patsai ou Passai, conhecido como Bassai em suas formas japonesas atuais.

    No entanto, tendo em vista que o Karate-dō ensinado hoje e praticado como esporte possui sua ênfase em contusões (socos, chutes e demais ataques diretos), onde estariam inseridas as técnicas do Tegumi? Quando Gichin Funakoshi se responsabilizou por levar o Karate/Tōde às escolas públicas (sob a tutela dos mestres Asato e Itosu), e mais tarde ao Japão, teria adaptado e retirado diversas técnicas de sua prática, de forma a torná-la menos perigosa quando praticada pelos jovens escolares (STEVENS, 2005; PALMER, 2004; FUNAKOSHI, 2000). Assim, métodos de contenção e torções provenientes do Tegumi teriam sido suprimidos. Em uma de suas autobiografias (FUNAKOSHI, 2000, p. 34) encontramos referência a esse processo:

    Com a esperança de ver o Karate incluído na Educação Física universal, ensinada em nossas escolas públicas, dediquei-me a revisar os kata de modo a simplificá-los o mais possível. Os tempos mudam, o mundo muda e obviamente as artes marciais também devem mudar. O Karate que os alunos de segundo grau praticam hoje não é o mesmo que era praticado há dez anos, e é bem grande a distância que o separa do Karate que aprendi quando era criança em Okinawa.

    No mesmo manuscrito (FUNAKOSHI, 2000, pp. 34-35) ressalta outros motivos para a adaptação realizada, como a acessibilidade ao conhecimento de forma mais natural por parte de todas as parcelas da população:

    O mais importante de tudo é que o Karate, como uma forma de esporte utilizada na Educação Física, deveria ser bastante simples, para ser praticado sem maiores dificuldades por todos: jovens e velhos, meninos e meninas, homens e mulheres.

    Muitos anos depois, mestre Masatoshi Nakayama13 comenta a importância dessa simplificação: “há simplesmente pouco tempo em nossa vida para nos tornarmos mestres em um grande número de armas ou sistemas ou diferentes artes. [...] nos concentramos nas técnicas do Karate-dō e tentamos verdadeiramente nos tornarmos mestre delas” (NAKAYAMA, 1983, p. 66). Havia necessidade, então, de reestruturar os kata de Karate/Tōde para os tempos modernos, pois deixava de ser uma prática exclusivamente guerreira para despontar como método de Educação Física e, até mesmo, de educação civil e moral. Como ensina Kanazawa (2009, p. 11), “[...] da mesma forma que um calígrafo escreve numa folha de papel, o praticante de artes marciais usa seu corpo para expressar tudo que tem a oferecer no espaço que ocupa, revelando desta maneira sua própria filosofia e caráter”. Ou seja, os kata teriam sido repensados de forma a ser mais que uma manifestação de violência.

    É importante salientar que essa forma de ensino deu fim à cultura do Isshi-soden, um costume antigo herdado dos próprios Peichin, os quais transmitiam seus conhecimentos do Karate/Tōde apenas ao primogênito da família (FUNAKOSHI, 1999; 2000). A partir de então, o aprendizado dessa arte marcial passou a estar ao alcance de todos, independentemente de classe social ou posses materiais. A atividade de Tegumi, entretanto, teria enfraquecido como método de combate dentro do Karate-dō, apesar de persistir como esporte local entre a população de Okinawa.

    Com base no que foi estruturado até então, organizamos uma linha de desenvolvimento para o Karate-dō, identificando como a prática do Tegumi teria ocorrido nesse processo evolutivo (figura 1). Não foi este o único elemento adaptado ou retirado de seu ensino formal ao longo da história, a exemplo de práticas chinesas e do próprio Kobudō, mas tais culturas não são o foco deste estudo, estando ausentes em certos pontos da estrutura.

Figura 1. Evolução do Karate-dō e a possível participação do Tegumi.

Fonte: produção do autor

5.     O tegumi presente no karate-dō

    Mesmo não sendo mais uma prática corrente no Karate-dō, podemos ainda encontrar resquícios do Tegumi em sua prática. Isso se deve a diversos estilos não terem incorporado a totalidade das mudanças sugeridas por Funakoshi, apesar de ainda terem realizado algum tipo de “modernização” de sua arte. Estilos mais internos de Okinawa, como o Gōjū-ryū de Chojun Miyagi, mantém a interpretação mais tradicional de certos movimentos nos bunkai de seus kata (HOPKINS, 2007; CÂMARA & MCKENNA, 2007). Suas formas possuem técnicas de agarramento, contenção e torções, que teriam sua possível origem nas bases do Tegumi e evoluído com o passar dos tempos (figura 2), pois não fazem parte do repertório esportivo atual do Karate-dō, sendo mais trabalhadas em estudos de defesa pessoal.

Figura 2. Técnica de contenção e agarramento presentes em kata do Gōjū-ryū. Fonte: adaptado de Hopkins (2007, p. 39)

    Em obras recentes, professores como Iain Abernethy (2003; 2002; 2001) destacam a importância de resgatar os elementos de Tegumi dentro da prática do Karate-dō, em especial quando se interpreta os movimentos para a luta real, trazendo algumas aplicações do Tegumi nos kata dos vários estilos existentes, como Seishan (ou Hangetsu), por exemplo. É claro, ressalta que tais técnicas devem ser praticadas com atenção constante, pois são absolutamente brutais e danosas, o que reforça os motivos já difundidos por Gichin Funakoshi em seus livros (1973; 1999; 2000) quando da adaptação às escolas.

    Encontra-se até certas referências associando o Tegumi a mestres famosos de Karate-dō, como em um lendário embate entre Motobu Chōki e Kentsū Yabu, no qual Motobu teria tido sua única derrota em desafios (SVINTH, 2003; NOBLE, 2000). De acordo com Dave Lowry (1985, p.13, in SVINTH, 2003), essa contenda teria possivelmente sido uma luta de Tegumi, não da arte marcial em que eram considerados mestres. Como podemos constatar a prática de tais técnicas não teria desaparecido por completo do Karate-dō.

 6.     Considerações finais

    O objetivo deste estudo foi resgatar as possíveis origens culturais do Tegumi dentro da história do Karate-dō, reconstruindo seus passos evolutivos com base nas publicações clássicas e atuais. Compreender esse tipo de processo sempre se configura como um desafio, pois a cultura e a história são passíveis de interpretação em suas muitas nuances. Existe, ainda, demasiada dificuldade em levantar fontes de pesquisa devido à destruição de Okinawa na maior batalha da Segunda Guerra Mundial, além do fato de que a maior parte dos conhecimentos da época era transmitida de forma oral, o que veio a fragmentar as informações. A dificuldade também se estende ao campo acadêmico, pois, como mostrado pela busca sistemática, há assuntos ainda não explorados no tema; essa talvez seja a maior contribuição do estudo: trazer à tona novas reflexões sobre o Karate-dō, fomentando sua discussão.

    É nítido que os povos ancestrais desenvolveram técnicas de combate em todos os cantos do planeta que ocuparam, muitas vezes na forma de jogos competitivos ou recreativos. Encontramos diversos exemplos, como o Huka Huka, luta praticada por índios brasileiros, o Subak na Coréia, o Sumō no Japão e o Nguni na África do Sul. Da mesma maneira, a forma de luta de Okinawa parece ter surgido de práticas ancestrais, diferente de técnicas ocidentais como o boxe e a luta olímpica, sendo utilizada posteriormente como método de sobrevivência pelos Heimin enquanto uma classe social oprimida. É diferente, inclusive, das próprias práticas indianas e chinesas, das quais algumas emergiram como formas de meditação e iluminação espiritual.

    O Karate-dō é, notoriamente, uma manifestação da cultura corporal do movimento humano, a qual veio sendo construída e (re)inventada em um longo processo cultural e histórico, sendo encarada pelo povo de Okinawa como parte essencial (e talvez a principal) de seu folclore. Não só no âmbito de arte marcial, o Karate-dō é visto em diversas manifestações de dança e teatro, como o Senbaru Eisa, dança realizada com tambores e apitos nos festivais locais (OKINAWA, 2003). Não é de se surpreender, portanto, que a prática do Tegumi faça parte de suas origens, pois é o método de luta mais antigo da ilha, remontando seus tempos antigos, e até hoje praticado como jogo recreativo e esporte por pessoas de todas as idades.

    Apesar da presente incerteza por parte de alguns autores investigados, podemos admitir uma forte relação entre as chamadas “técnicas rudimentares” que originaram o Karate-dō e a luta nativa Tegumi, as quais provavelmente seriam a mesma prática corporal. Como dito muita vezes na literatura, o Te original veio da junção de técnicas de agarramento, imobilização e contusão, aliadas ao uso de ferramentas rurais como armas, o que seria, respectivamente, a descrição do próprio Tegumi e do que veio a ser entendido como Okinawa Kobudō.

    O estudo do Karate-dō enquanto elemento cultural se configura num grande desafio de pesquisa e uma importante contribuição para a comunidade de esportistas e praticantes de artes marciais, pois permite compreendê-lo em suas diferentes dimensões (físicas, psicológicas, culturais e sociais). Sua trajetória possui diversos elementos sutis, ligados diretamente à cultura de seu povo de origem, como o próprio Kobudō e o Quán-fǎ, os quais ficam de sugestão para novas incursões no tema; uma tarefa árdua, porém desafiadora e estimulante.

Notas

Referências

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