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Implicações da Educação Física no desenvolvimento
cognitivo: uma revisão

Implicancias de la Educación Física en el desarrollo cognitivo: una revisión

 

Graduado em Licenciatura em Educação Física

pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Professor da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre

Jonas Vasconcellos Daniel

jonasvd@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          Esta pesquisa bibliográfica tem como objetivo verificar quais as implicações da Educação Física no desenvolvimento cognitivo das crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental. E os objetivos específicos foram: compreender o papel da Educação Física na escola; compreender o que é desenvolvimento cognitivo; compreender as relações entre as disposições cognitivas e motoras das crianças. Foi realizado um levantamento de artigos científicos, dissertações e teses que trataram sobre o tema da relação entre desenvolvimento cognitivo e Educação Física. Existem diversas teorias explicando o desenvolvimento das capacidades cognitivas nas crianças. Na teoria de Piaget, as crianças formam níveis mais elaborados de pensamento como consequência da maturação e riqueza das experiências oferecidas pelo ambiente, configurando os estágios de desenvolvimento cognitivo. Diversos estudos apontam para um avanço do desempenho cognitivo através de atividades como jogos e atividade lúdicas. Além disso, a metodologia empregada pelo professor influencia na compreensão dos alunos sobre os jogos. A aula de Educação Física é um espaço excepcional para o desenvolvimento da inteligência, por ser uma área que tem a possibilidade de trabalhá-la em todas as suas manifestações.

          Unitermos: Educação Física escolar. Desenvolvimento cognitivo.

 

Artigo apresentado como requisito parcial para conclusão do Curso de Especialização em Educação Física Escolar.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 18, Nº 179, Abril de 2013. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    Depois de um ano e meio trabalhando com o primeiro ciclo do Ensino Fundamental, resolvi pesquisar sobre a relação entre a Educação Física e o desenvolvimento cognitivo das crianças dos anos iniciais. A escolha desse tema para pesquisar se deve a necessidade, percebida no cotidiano escolar, de fundamentar o planejamento das minhas aulas não apenas no aspecto motor do desenvolvimento das crianças, mas também nos aspectos cognitivo e afetivo. Conforme afirma João Batista Freire:

    As habilidades motoras precisam ser desenvolvidas, sem dúvida, mas deve estar claro quais serão as consequências disso do ponto de vista cognitivo, social e afetivo. Sem se tornar uma disciplina auxiliar de outras, a atividade da Educação Física precisa garantir que, de fato, as ações físicas e as noções lógico-matemáticas que a criança usará nas atividades escolares e fora da escola possam se estruturar adequadamente (FREIRE, 2009, p. 21).

    A falta de profundidade no estudo realizado sobre essa temática, durante a minha formação inicial, também contribuiu para essa escolha. Portanto, esse estudo será importante para esclarecer que relação é essa que existe (se é que existe) entre a Educação Física e o desenvolvimento cognitivo das crianças. Além disso, a pesquisa vai apresentar o que poderia ser chamado de “estado da arte”, ou seja, vai buscar organizar e integrar estudos e resultados de pesquisas produzidas sobre o mesmo tema. Definido o objeto de pesquisa, a próxima etapa é formular o problema de pesquisa que vai encaminhar o estudo. E a principal questão que esse tema me suscita é: qual a influência das aulas de Educação Física no desenvolvimento cognitivo das crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental?

    No entanto, será muito importante considerar que o aluno é um ser integral, para não suceder no dualismo corpo-mente. Conforme os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) propõem para a Educação Física, a criança deve ser considerada como “um todo no qual aspectos cognitivos, afetivos e corporais estão inter-relacionados em todas as situações” (BRASIL, 1997, p. 27). Nas palavras de Carmo Junior (1998, p. 107), "o uso do corpo também é o uso da razão e da emoção na motricidade geral", e a Educação Física busca restaurar "o sentido da totalidade na unidade humana". E Lovisolo (2002) ainda afirma que a educação, incluindo a Educação Física escolar, tem por objetivo a formação intelectual, emotiva e corporal da pessoa. Com este estudo, não tenho a intenção de compartimentar as dimensões da formação humana, mas sim, buscar um entendimento das relações entre as disposições cognitivas e motoras. Tomando a questão formulada anteriormente como o objetivo geral da pesquisa, parto para os objetivos específicos, colocados aqui como questões orientadoras para o desenvolvimento deste trabalho.

    A primeira questão a ser esclarecida para o andamento da pesquisa é: o que vem a ser a Educação Física na escola? A segunda questão que deve ser definida é o que é desenvolvimento cognitivo. Outras questões a serem respondidas são: existe diferença, para o processo de desenvolvimento cognitivo das crianças, entre as possíveis abordagens da Educação Física? E entre suas metodologias, seus conteúdos, seus materiais?

    O método de procedimento adotado para este estudo é a pesquisa bibliográfica, que busca conhecer e analisar as contribuições científicas e culturais existentes sobre um determinado problema. Nesta pesquisa, uso o método de abordagem dedutivo, que é característico das pesquisas indiretas. As pesquisas indiretas são aquelas que não utilizam experimentos para coleta de dados, ou seja, não há manipulação das variáveis. O método dedutivo parte de teorias previamente aceitas para a elaboração de conclusões sobre determinado assunto, em uma relação descendente (ROSSETTO JR.; MATTOS; BLECHER, 2008).

    Pesquisa bibliográfica é aquela baseada na análise de material já elaborado, em forma de livros, revistas, publicações avulsas, imprensa escrita e até eletronicamente, disponibilizada na Internet. A pesquisa bibliográfica contribui para: obter informações sobre a situação atual do tema pesquisado; conhecer publicações existentes sobre o tema e os aspectos que já foram abordados; verificar as opiniões similares e diferentes a respeito de aspectos relacionados ao tema ou ao problema de pesquisa.

    Para responder ao problema desta pesquisa, foi feito um levantamento em artigos, dissertações e teses da produção científica brasileira sobre o tema da relação entre desenvolvimento cognitivo e Educação Física. Os periódicos consultados foram: as revistas Motrivivência, Motriz, Movimento e Pensar a Prática, a Revista Brasileira de Ciências do Esporte, a Revista da Educação Física, a Revista Paulista de Educação Física e a Revista Brasileira de Educação Física e Esporte; e as teses e dissertações foram buscadas no banco da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)1.

    Os seguintes descritores foram utilizados para fazer o levantamento nas revistas: desenvolvimento, cognitivo(a), cognição. Na busca feita no Banco de Teses da CAPES, foram usados os termos "desenvolvimento cognitivo" e "educação física". Para selecionar apenas os trabalhos que se relacionassem com o problema de pesquisa, adotei dois critérios de exclusão nos resultados da busca. Os textos que enfocavam algum conteúdo específico (e.g.: dança, voleibol, capoeira), e os trabalhos que tratavam exclusivamente de outras etapas de ensino (educação infantil, ensino superior) foram desconsiderados. O resultado desse levantamento encontra-se tabelado a baixo.

Tabela 1. Artigos, dissertações e teses encontradas

Educação Física Escolar

    A Educação Física pode ser entendida como "educação de corpo inteiro", uma educação corporal em que a pessoa aprende a se movimentar qualitativamente melhor, mas também aprende a relaxar (FREIRE, 2009). Então, para responder a primeira questão orientadora, utilizo uma citação de Mauro Betti:

    Assim, conceituo a Educação Física na escola como uma disciplina que tem por finalidade propiciar aos alunos a apropriação crítica da cultura corporal de movimento, visando a formar o cidadão que possa usufruir, compartilhar, produzir, reproduzir e transformar as formas culturais do exercício da motricidade humana: jogo, esporte, ginásticas e práticas de aptidão física, dança e atividades rítmicas/expressivas, lutas/artes marciais, práticas alternativas (BETTI, 2009, p. 64, grifo do autor).

    Ao defender a apropriação crítica dos valores da cultura corporal, Betti declara que essa apropriação ocorre a partir da "estrutura de personalidade dos alunos" (2009, p. 58), em todas as suas dimensões: físico-motora, afetiva, social e cognitiva.

    Entre os trabalhos encontrados na revisão bibliográfica, três fazem referência a uma possível, e até necessária, integração da Educação Física com outras disciplinas do currículo escolar (LOVISOLO, 2002; RODRIGUES; GONÇALVES JR., 2009; SILVA et al., 2009). Lovisolo (2002) nos fala da necessidade da Educação Física estar integrada e articulada no projeto da escola, contribuindo com a sua especificidade para alcançar o objetivo de formação das disposições intelectuais, emotivas e corporais. No entanto, este autor faz uma ressalva:

    Creio que na formulação do projeto escolar estamos hiperdeterminados pelos conteúdos das disciplinas escolares. O peso dessa hiperdeterminação é enorme e faz que a) acabemos igualando projeto e currículo e b) operemos associando automaticamente cada dimensão da formação a um conjunto restrito de disciplinas (LOVISOLO, 2002, p. 101).

    Assim as matemáticas e as ciências exatas seriam responsáveis pelo desenvolvimento cognitivo, as artes e a literatura estariam associadas à sensibilidade e às emoções, e da mesma forma nas outras disciplinas. Para superar esse problema, Lovisolo (2002) sugere a formação da cultura científica dentro da escola, desenvolvendo a interdisciplinaridade - sem que a Educação Física abandone os objetivos específicos da formação corporal.

    Um exemplo de assunto que pode fazer parte de um projeto de escola, que vise à integração entre disciplinas, é a educação ambiental. Rodrigues e Gonçalves Jr. (2009) trazem em seu artigo o conceito de "Ecomotricidade", se referindo à "sinergia entre educação ambiental, motricidade humana e pedagogia dialógica" (p. 988). Um conceito que busca romper as dicotomias entre ser humano e natureza, corpo e mente, motor e cognitivo.

    Outra possibilidade de relação multidisciplinar é apresentada por Silva et al. (2009). Neste caso, os autores trabalharam com a integração da Educação Física com a Matemática, onde se desenvolveu a prática de atividades físicas elaboradas de forma a construir processos cognitivos, levando ao raciocínio lógico e à tomada de decisão.

Desenvolvimento cognitivo

    A seguir é importante esclarecer o que vem a ser desenvolvimento cognitivo.

    Entender o processo cognitivo significa a possibilidade de compreender a natureza do pensamento, comportamento, sensações, emoções e percepções; os processos de elaboração de códigos e linguagens, de criação de novos instrumentos, teorias, materiais, conhecimentos, técnicas, ideias, artes, ciências, etc. Significa também compreender a capacidade de planejar, prever, memorizar e agir. Relaciona-se com a própria possibilidade humana de desenvolvimento e transformação, assim como de seu ambiente. Portanto, pode estabelecer relações com os mais diversos campos de conhecimento (TORRES, 2001, p. 01).

    O termo “cognitivo” refere-se “as capacidades psicológicas associadas ao pensar e ao conhecer” (FONTANA, 2002, p. 65). Existem diversas teorias para explicar o surgimento e o desenvolvimento dessas capacidades nas crianças. Cada uma delas com suas concepções diferentes da relação entre desenvolvimento e aprendizado, entre fatores inatos, herdados geneticamente e fatores ambientais, socioculturais. A criança é um ser interativo que sofre influências do contexto e, ao mesmo tempo, tem potencial para transformá-lo (KREBS, 1998).

    No texto "Cognição em Diálogo", Torres (2001) aproxima contribuições importantes de pesquisas recentes das ciências cognitivas, de questões desenvolvidas por Lev S. Vigotski no início do século XX. A hipótese dinâmica das ciências cognitivas reconhece o corpo como fundamental no processo cognitivo. Trata-se de uma teoria constituída através de uma visão sistêmica, sendo impossível separar ação e cognição, corpo e mente. Tal ponto de vista entende o desenvolvimento humano como resultante de uma auto-organização que se conforma no tempo através de múltiplas determinações.

    [...] verifica-se que na perspectiva vigotskiana o funcionamento cognitivo só pode ser pensado enquanto um fenômeno que está em constante relação com um contexto social. As habilidades cognitivas mais complexas seriam originadas exatamente da inter-relação entre indivíduo e ambiente, social e biológico, natureza e cultura (TORRES, 2001, p. 04).

    Um conceito importante elaborado por Vigotski (1989) é o da "zona de desenvolvimento proximal". Ela é a distância entre o nível de desenvolvimento real, aquilo que as crianças conseguem fazer por si mesmas (solução independente de problemas), e o nível de desenvolvimento potencial, aquilo que conseguem fazer com ajuda dos outros (solução de problemas com orientação - cooperação). O aprendizado desperta diversos processos internos de desenvolvimento, que são capazes de atuar somente quando a criança interage com pessoas em seu ambiente e quando em colaboração com seus companheiros. Uma vez internalizados, esses processos tornam-se parte das conquistas do desenvolvimento independente da criança.

    A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário (VIGOTSKI, 1989, p. 97).

    Outra teoria do desenvolvimento cognitivo é a de Jean Piaget, que propõe que “o modo como somos capazes de formar e manipular conceitos muda conforme passamos da infância para a adolescência” (FONTANA, 2002, p. 68). As crianças desenvolvem níveis mais elaborados de pensamento como consequência da maturação e da riqueza das experiências oferecidas pelo ambiente. Na passagem dos padrões de pensamento do bebê até aqueles totalmente desenvolvidos do adulto, ocorrem vários estágios que, de modo geral, todos os indivíduos vivenciam na mesma sequência. Conforme Fontana (2002), esses estágios são quatro: sensório-motor (0 a 2 anos), pré-operacional (2 a 7 anos), operações concretas (7 a 11 anos), operações formais (12 anos em diante). As idades atribuídas por Piaget a cada um dos estágios são apenas aproximadas; e muitos estudiosos preferem referir-se a eles como idades mentais.

    Gradativamente a criança vai estruturando suas capacidades mentais, por intermédio de suas interações com o meio, numa síntese progressiva de assimilação, acomodação e adaptação, contudo desenvolvendo, a partir dos processos de desequilíbrios e novos equilíbrios, estruturas mais sólidas de pensamento (LEITÃO, 2006, p. 84).

    Freire e Lisboa (2005) fazem uma relação entre os conceitos de assimilação e acomodação, de Piaget, com a ideia de múltiplas inteligências, de Howard Gardner. Um dos herdeiros das ideias de Piaget, o trabalho de Gardner aponta para diversas categorias de inteligência: a cinestésico-corporal, a interpessoal, a intrapessoal, a naturalista, a linguística, a musical, a lógico-matemática e a espacial. Porém, a teoria das inteligências múltiplas difere da proposta psicogenética de Piaget por aceitar que os processos psicológicos podem ter relativa independência entre si. Deste modo, alguém que evidencie alguma dificuldade quanto a problemas lógico-matemáticos, poderia dar-se bem em assuntos interpessoais, etc.

Desenvolvimento cognitivo e Educação Física

    Na psicogenética piagetiana, segundo Gallahue (2005), o movimento é enfatizado "como um agente básico na aquisição de estruturas cognitivas crescentes, particularmente na primeira infância e nos anos da Educação Infantil" (p. 31). Os conceitos e teorias de Piaget são os que mais aparecem nos trabalhos encontrados nessa revisão (ARAÚJO, 2003; FREIRE; LISBOA, 2005; GONZALEZ, 1999; HILDEBRANDT-STRAMANN, 2011; LEITÃO, 2006; MARQUES, 1996; ROMANI, 2010).

    Leitão (2006) utilizou pressupostos piagetianos para a realização de seu estudo, que consistiu na observação de possíveis sinais de melhoria no desenvolvimento cognitivo de crianças, de Educação Infantil e Ensino Fundamental (2ª e 4ª séries), após um trimestre de aulas com jogos e atividade lúdicas, especificamente planejadas para desenvolver os aspectos cognitivos. No que ele conclui: "a utilização de jogos, brincadeiras e atividades lúdicas no processo ensino-aprendizagem possibilita um melhor desempenho cognitivo" (p. 166).

    Os artigos de Gonzalez (1999), Marques (1996) e Romani (2010) fazem abordagens diferentes sobre os estágios de desenvolvimento. O trabalho elaborado por Gonzalez (1999) investiga se o nível de desenvolvimento cognitivo influi nas estratégias de ação de crianças durante um jogo motor de situação. Ao final, infere que existe evidência de que o nível de coordenação cognitiva seja um fator importante para solucionar os problemas de jogos motores, "sendo capaz de influenciar na possibilidade de seleção dos recursos táticos" (GONZALEZ, 1999, p. 13). Por outro lado, Marques (1996) faz uma análise de como a teoria de estágios de desenvolvimento, proposta por Piaget, foi aplicada na construção de uma teoria do desenvolvimento motor.

    Deve ser considerado [...] a existência destes estágios, mas não em uma sequência hierárquica nem absolutamente consistentes em todas as situações, e sim como sendo parte ativa de um ambiente que muda constantemente (MARQUES, 19996, p. 17).

    Depois, Romani (2010) faz uma abordagem muito mais filosófica sobre o tema:

    Nossa hipótese básica é a de que o projeto filosófico-iluminista de uma educação natural proposto por Rousseau e [...] a importância dada ao fortalecimento do corpo e refinamento dos sentidos presente no segundo livro do Emílio podem ser complementados [...] na perspectiva científica dos estudos desenvolvidos pelas ciências do desenvolvimento humano. Como inventor moderno do conceito de infância, Rousseau lançou as bases do conhecimento da estrutura físico-motora, afetiva, cognitiva e moral da criança, concentrando-se nos “cuidados pedagógicos” que os adultos deveriam ter para com a criança [...] Nesse sentido, os estudos de Rousseau, aliados aos desenvolvidos pelas ciências posteriores, auxiliam-nos a pensar na importância da educação do corpo nos processos educacionais como dimensão necessária ao desenvolvimento cognitivo e moral dos educandos (ROMANI, 2010, p. 5).

    Em seu artigo, Hildebrandt-Stramann (2011) argumenta baseado em Piaget que "as crianças adquirem seus conhecimentos sobre o mundo mediante a confrontação ativa com ele" (p. 489). Essa compreensão da criança acontece muito mais por seus sentidos, seu corpo, suas ações de movimento do que pelo pensamento e pela imaginação. O autor ainda analisa o conceito de "funções do movimento" (FUNKE-WIENEKE, 1997 apud HILDEBRANDT-STRAMANN, 2011, p. 487). São quatro áreas funcionais do movimentar-se que podem fomentar o desenvolvimento das crianças: a função instrumental, a função social, a função simbólica e a função sensível.

    João (2003) tem como objetivo, em sua dissertação, evidenciar a possibilidade de uma ação educativa baseada no conceito complexo de corporeidade. Ele afirma que este conceito de corporeidade permite compreender todas as dimensões pertencentes ao humano radicadas em seu corpo; a corporeidade guarda três dimensões que mantêm uma relação indissociável e complexa: física, emocional-afetiva e mental-espiritual. A partir desta perspectiva de corporeidade, torna-se necessário ensinar a condição humana, ensinar a viver e ensinar a organizar o saber, sendo estes possibilitados, na prática, pelo o que este autor denomina de método de aprendizagem vivencial. As aulas de Educação Física, normalmente, não proporcionam as situações para se aprofundar a compreensão das vivências afetivas e cognitivas a partir das sensações mobilizadas pelos sentidos.

    O trabalho de Araújo (2003) utiliza a classificação de jogos delineada pelas pesquisas de Piaget: jogos de exercícios, jogos simbólicos, jogos de regras e os jogos de construção. A partir dessa classificação, a autora propõe uma organização metodológica dos jogos, entendendo estes como conteúdo e como instrumento de ensino das aulas de Educação Física.

    Segundo Leitão (2006), as fundamentações teóricas que reforçam o caráter construtivo dos jogos no desenvolvimento infantil são inúmeras, especificamente abordando o desenvolvimento cognitivo. Além das bases científicas de Piaget, a dissertação deste autor se referencia em Henri Wallon e Lev Vigotski. Ainda encontrei outros dois artigos que analisam as concepções de Vigotski (NEGRINE, 1995; TORRES, 2001). Aqui compete apurar as contribuições de Negrine (1995), uma vez que a análise do texto de Torres (2001) foi realizada anteriormente.

    Negrine (1995) faz uma abordagem psicomotora do jogo infantil, apontando no sentido de que "a criança quando joga, embora prevalecendo a ação, coloca na atividade que realiza uma conjunção de afeto, cognição e motricidade" (p 08). De acordo com este autor, Vigotski tem uma concepção de jogo diferente da ideia de Piaget, que entende o desenvolvimento das estruturas mentais de forma linear, uma vez que fundamenta que a criança evolui do jogo de exercício ao jogo simbólico, e deste, ao jogo de regras. Para Vigotski, o jogo nasce simbólico, e se existe símbolo também existem regras, "uma vez que a própria situação imaginária contém por si mesma certas regras de conduta" (p. 11). O que muda, durante o processo de desenvolvimento infantil, é o predomínio de cada uma - da situação imaginária às regras.

    Entendemos que a criança joga quando atua com algum significado simbólico, representativo ou imaginário e se exercita quando experimenta seu corpo, testa suas capacidades e habilidades. Pensamos que, na atividade lúdica, a criança flutua entre o exercício e o jogo, embora o primeiro surja inicialmente na vida da criança (NEGRINE, 1995, p. 21).

    Freire e Lisboa (2005) investigaram a mobilização da inteligência em diferentes situações, tanto lúdicas como fora delas, com crianças de quarta série do Ensino Fundamental. Para tanto, realizaram duas variações de uma brincadeira chamada "Nunca Três"2, além de um questionário sobre esse jogo e outro de tabuada. Os sujeitos da pesquisa começaram a segunda versão do jogo fracassando, mas conseguiram sucesso depois de repetidas experiências. "A inteligência é circunstancial. Ela depende de uma história de experiências anteriores e precisa, por mais plástica que seja, de um tempo para adaptação" (p. 137).

    Outros estudos foram encontrados que investigaram a utilização de atividades lúdicas e jogos nas aulas de Educação Física. Entre estes, cito a dissertação de Dublasievicz (2000), que avalia a contribuição da Olimpíada de Jogos Populares (idealizada pelo autor) para o desenvolvimento da psicomotricidade e de comportamentos interpessoais, indispensáveis à evolução social, afetiva e cognitiva dos alunos. E o trabalho de Gonçalves (2011), que investiga a contribuição da prática de jogos pré-desportivos para a melhoria do processo ensino-aprendizagem na linguagem escrita, de alunos matriculados na quarta série do Ensino Fundamental. Segundo a autora, as atividades propiciaram o interesse, a concentração, o prazer e a participação mais efetiva dos alunos na sala de aula e fora dela.

    A pesquisa de Neira (1999) buscou desvendar possíveis contribuições de duas metodologias de ensino: uma proposta diretiva, centrada na repetição dos movimentos determinados pelo professor, e outra mais participativa às colocações e manifestações das crianças. Constatou-se que as duas metodologias colaboraram do mesmo modo para o desenvolvimento motor, enquanto que a metodologia de ensino mais aberta contribuiu muito para o desenvolvimento das relações grupais, da participação integrada e do espírito de cooperação entre os membros do grupo, demonstrando a importância de considerar os processos de construção do conhecimento em todas as dimensões do comportamento: cognitiva, afetiva, social e motora.

    Entre os trabalhos levantados nessa revisão, o tema da pedagogia do esporte apareceu em quatro (ANELLO, 2009; BOLONHINI; PAES, 2009; SADI; COSTA; SACCO, 2008; VENDITTI JR.; SOUSA, 2008), sendo que três destes examinam o modelo pedagógico Teaching Games for Understanding 3 (TGFU). Essa abordagem, concebida por Werner, Thorpe e Bunker, sugere que a iniciação esportiva se baseie em jogos reduzidos:

    Estes jogos podem ter espaço reduzido, menos jogadores, equipamentos adaptados, tempo de jogo reduzido, enfim, possuem regras adaptadas em relação ao jogo formal. No entanto, é importante que a estrutura tática destes jogos reduzidos seja semelhante a do jogo formal. Dessa forma, o aluno compreende a lógica do jogo, sendo capaz de responder de maneira inteligente às situações que aparecem durante o jogo. Portanto, segundo a abordagem do TGFU, o foco está em fazer com que o aluno compreenda a tática antes de preocupar-se com a aprendizagem dos gestos técnicos (BOLONHINI; PAES, 2009, p. 02).

    Essa proposta é oposta ao modelo tradicional baseado no ensino de habilidades técnicas, estruturadas a partir da repetição de gestos. No TGFU, as crianças aprendem a solucionar os problemas táticos durante o jogo, estimulando a compreensão como ferramenta de intervenção no jogo (SADI; COSTA; SACCO, 2008). A dissertação de Anello (2009) indica uma releitura desse modelo sob o viés da Transformação Didático-Pedagógica do Esporte, de Elenor Kunz. Os autores Venditti Jr. e Sousa (2008) discutem uma "possível" pedagogia do esporte, fundamentada nos jogos desportivos coletivos, que se assemelha em vários aspectos da proposta do TGFU, enfatizando "a preocupação com a criança na sua globalidade", e propondo "a elaboração de uma metodologia que respeite as características de cada faixa etária" (p. 55).

    O papel do professor é estar sempre propondo novos desafios que gerem aprendizagens em seus alunos. E o professor de Educação Física deve se esforçar para oportunizar para as crianças desafios motores sistematizados, na intenção de instigar a construção do conhecimento. De acordo com os PCN:

    Aprender a movimentar-se implica planejar, experimentar, avaliar, optar entre alternativas, coordenar ações do corpo com objetos no tempo e no espaço, interagir com outras pessoas, enfim, uma série de procedimentos cognitivos que devem ser favorecidos e considerados no processo de ensino e aprendizagem na área de Educação Física. E embora a ação e a compreensão sejam um processo indissociável, em muitos casos, a ação se processa em frações de segundo, parecendo imperceptível, ao próprio sujeito, que houve processamento mental (BRASIL, 1997, p. 27; grifo pessoal).

Conclusão

    Não considero que as aulas de Educação Física estejam subordinadas ao desenvolvimento das capacidades mentais. Com todos os seus conteúdos, a Educação Física pode contribuir para o desenvolvimento cognitivo dos alunos, sem que se torne uma disciplina secundária em relação a outras. Sua função é trabalhar com as manifestações da cultura corporal. Quando as atividades desenvolvidas pelo professor suscitam tomadas de consciência e reflexão por parte dos alunos, o que seria apenas corporal torna-se conceitual, em função da mobilização de recursos cognitivos.

    A ligação entre cognição e motricidade (e afetividade) assume formas diferentes durante o processo de desenvolvimento humano. Nos primeiros anos de vida, a aprendizagem de noções como lateralidade, estruturação espaço-temporal, etc. desenvolvem-se em íntima relação com o próprio desenvolvimento motor, de tal maneira ser difícil identificar os limites entre um e outro. Essa relação não desaparece, mas assume outra qualidade com o passar da idade. Questão que ficará para futuras pesquisas é como entra a afetividade em todo esse processo? Como se desenvolvem as relações intersubjetivas e intrassubjetivas nas aulas de Educação Física?

    Diversos estudos apontaram para um avanço do desempenho cognitivo através de atividades como jogos e atividade lúdicas. Além disso, a metodologia empregada pelo professor influencia na compreensão dos alunos sobre os jogos. A aula de Educação Física é um espaço excepcional para o desenvolvimento da inteligência, por ser uma área que tem a possibilidade de trabalhá-la em todas as suas manifestações, através de atividades que proporcionam prazer. O brincar pode ser empregado para o desenvolvimento das funções do cérebro (raciocínio lógico, concentração, análise, imaginação, síntese, etc.), e no desenvolvimento de competências cognitivas necessárias tanto à prática corporal como à prática social.

Notas

  1. Tanto os periódicos, quanto o Banco de Teses da CAPES estão disponíveis em: http://www.periodicos.capes.gov.br/index.php. Acesso em: 07 jan. 2013.

  2. Durante esse jogo, os jogadores em duplas ficam parados em um lugar qualquer de uma quadra. Um jogador é escolhido para ser pegador e outro para ser fugitivo, inicialmente. Dado um sinal, na primeira versão, o pegador parte na captura do fugitivo que, para se salvar, tem que pegar na mão do componente de uma das duplas. Nesse momento, o outro componente dessa dupla assume o papel de fugitivo. Na segunda versão, no momento em que o fugitivo segura na mão do componente de uma das duplas, o outro da dupla transforma-se em pegador, ao passo que o que até então era o pegador, vira imediatamente fugitivo (FREIRE; LISBOA, 2005).

  3. Traduzindo seria: "Ensinando Jogos pela Compreensão".

Referências

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EFDeportes.com, Revista Digital · Año 18 · N° 179 | Buenos Aires, Abril de 2013
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