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Pelos olhos do materialismo histórico: revisitando o conceito de jogo

A través de los ojos del materialismo histórico: revisando el concepto de juego

Through the eyes of historical materialism: revisiting the concept of play

 

*Doutor em Educação Especial (ênfase sociologia) pela Universidade Federal

de São Carlos (UFSCar). Licenciado e Bacharel em Educação Física pela UFSCar

e professor efetivo de Educação Física da rede estadual de educação do Estado

de São Paulo, município de Araraquara

**Doutora em Educação e Mestre em Educação

pela Universidade Federal de São Carlos UFSCar

Gustavo Martins Piccolo*

Maria Aparecida Mello**

gupiccolo@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          Objetivamos com este artigo tracejar dialeticamente a composição do jogo mediante o olhar crítico e acurado impresso pelas lentes do materialismo histórico. Para tanto, nos valemos dos clássicos sobre a temática no sentido de redargüir o fatus histórico sobre o fenômeno, tendo por intuito compor um cenário representativo e holístico deste componente que a tanto diz respeito aos pesquisadores sobre o corpo.

          Unitermos: Materialismo histórico. Jogo. Psicologia histórico-cultural.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 17, Nº 171, Agosto de 2012. http://www.efdeportes.com

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Sobre a escolha do termo

    A conceituação em um trabalho de corte acadêmico do melhor vocábulo para a definição de atividades cuja análise se configura como o objetivo de nossas empreitadas, em algumas circunstâncias especiais não é das tarefas mais fáceis. Esse é certamente o caso dos estudos que se valem das atividades lúdicas como ferramentas metodológicas e buscam uma diferenciação entre os termos jogo e brincadeira.

    Diversos autores (Brougère, 1998; Kishimoto, 1997; Caillois, 1990; Bomtempo, 1997) se dedicaram a essa árida empreitada na busca de uma configuração mais exata do termo jogo e brincadeira, para isso, se utilizaram de dados de diversas áreas da ciência como Antropologia, Psicologia, Filosofia, História, dentre outras. Entretanto, muitas dessas tentativas esbarraram na vastidão de significados assumidos pelos termos jogo e brincadeira ao longo da história.

    Como os jogos e brincadeiras representam construções essencialmente sociais e culturais, sua classificação assume diferenças significativas quanto a sua estrutura e função em contextos históricos específicos. Assim, ao nos utilizar das definições edificadas sobre esses vocábulos em diferentes culturas encontramos um sem número de definições. Bomtempo (1997) destaca que a categorização usada para jogo em inglês é game, já para brincar se utiliza o play, porém esse termo também pode envolver uma gama de outras atividades, quais sejam tocar, pintar, participar de uma partida esportiva. Em francês temos algo parecido com o termo jeu e jouer (jogo e jogar), os quais podem ser utilizados em contextos não necessariamente relacionados com atividades lúdicas, tais como na bolsa de aposta, no embate entre políticos, etc.

    Elkonin (1998) destaca que o vocábulo jogo é sede de uma grande complexidade de significados, os quais podem estar relacionados a diversão, passatempo, manipulação, resultados indefinidos/presença de riscos, além de uma série de outros elementos. Sendo assim, o conceito jogo apresenta significativas diferenças entre povos e culturas particulares. Para os gregos os jogos significavam ações especificamente realizadas pelas crianças; entre os judeus seu entendimento está relacionado a gracejos e risos; já os romanos interpretavam seu conceito caracterizando-o como uma festa; por fim, entre os germanos, os jogos são encarados como um determinado grupo de ações que não requerem trabalho árduo e propiciam satisfação.

    Dentro desse complexo, no qual as próprias definições de jogo e brincadeira carregam elementos díspares em suas conceituações, fica extremamente difícil a realização de uma análise heurística objetivando a distinção desses termos.

    Brougère (1998), em seus estudos sobre a evolução histórica dos jogos, também tentou arquitetar uma conceituação teórica cuja estrutura possibilitaria a compreensão das diferenças existentes entre jogos e brincadeiras. Porém, não demorou em perceber o quão complexa é essa empreitada, na medida em que, nas mais diversas culturas, jogar e brincar assumem perspectivas diversas, algumas vezes até conflitantes, devido ao fato de sua classificação ser fortemente marcada por elementos sociais, políticos e ideológicos característicos de um determinado contexto histórico. Para Brougère (1997), as idéias que se têm dos jogos e brincadeiras variam conforme autores, épocas e culturas, além disso, a função social desempenhada pelos jogos e brincadeiras também diferem em circunstâncias históricas particulares.

    Outra interessante tentativa de diferenciação entre jogo e brincadeira foi realizada por Kishimoto (1997), cuja análise se baseou na estrutura dos componentes presentes em cada uma dessas atividades, essencialmente na presença de regras implícitas ou explícitas, para posteriormente estabelecer as particularidades de cada vocábulo. Entretanto, Elkonin (1998) destaca que apesar de as brincadeiras serem regulamentadas essencialmente por regras implícitas (as quais se manifestam explicitamente), e os jogos por regras explícitas (que se manifestam implicitamente), isso não esgota a questão, uma vez que algumas atividades classificadas como jogos se orientam por regras implícitas, ou seja, não precisam necessariamente ter um código de conduta (regulamentos) anteriormente estabelecido, com os princípios norteadores da atividade sendo construídos no transcorrer de sua prática. Os jogos pré-desportivos se constituem como os maiores exemplos, talvez por representarem uma atividade intermediária entre os jogos protagonizados e os jogos esportivos.

    Coerente com essa dificuldade em se realizar uma distinção entre o que é jogo e o que é brincadeira, apresentamos uma definição sobre cada termo, tecida por uma mesma autora, e, cuja comparação se constitui como importante ferramenta explicativa em nossa análise.

    Para Wajskop (1995, p. 28), a brincadeira pode ser definida como uma atividade:

    social, humana, que supõe contextos sociais e culturais, a partir dos quais a criança recria a realidade através da utilização de sistemas simbólicos próprios. A brincadeira infantil pode constituir-se em uma atividade em que as crianças, sozinhas ou em grupo, procuram compreender o mundo e as ações humanas nas quais se inserem cotidianamente.

    A mesma autora em um artigo sobre o papel do jogo protagonizado na Educação das Crianças (Wajskop, 1990, p.46), embasada em uma perspectiva Histórico-Cultural e, fundamentada nos estudos de Elkonin, define que:

    ao contrário das concepções idealistas que concebem o jogo como algo inato nas crianças, este, na sua forma encontrada atualmente, é social por sua origem e natureza, constituindo-se num modo de assimilar e recriar a experiência sócio-cultural dos adultos. Ou seja, o jogo de faz-de-conta infantil constitui-se uma atividade infantil na qual as crianças, sozinhas ou em grupo, procuram compreender o mundo e as ações humanas nas quais se inserem cotidianamente.

    Nem é preciso grandes esforços analíticos para se perceber a similaridade entre as duas opiniões, pois o jogo e a brincadeira são conceituados quase que com as mesmas palavras. Isso, todavia, não representa uma falha teórica, mas, sim, a mostra da complexidade existente no processo construtivo de sua definição, seja no aspecto funcional, estrutural ou simbólico dos termos jogo e brincadeira.

    Dentro desse universo conceitual, os autores Vygotsky (1999), Leontiev (1988), Elkonin (1988) e Mukhina (1995) da teoria Histórico-Cultural não realizam uma rígida separação etimológica entre jogo e brincadeira, os quais, em algumas circunstâncias, são praticamente utilizados como sinônimos, na medida em que se mesclam em diversos momentos de uma mesma obra.

    Todavia, uma análise mais atenta sobre as obras de Leontiev (1988a), Vygotsky (1998) e Elkonin (1998), aponta-nos caminhos que oferecem elementos diferenciadores no trato deste termo, uma vez que os jogos e brincadeiras praticadas pelas crianças evoluem, de acordo com Vygotsky (apud Elkonin 1998), historicamente conforme a posição social ocupada por elas na sociedade. Grosso modo, a lógica de desenvolvimento das atividades lúdicas (termo que para Vygotsky (apud Elkonin 1998) englobaria tanto as brincadeiras, como os jogos (inclusive os esportivos)), vão das brincadeiras (jogos protagonizados), para os jogos pré-desportivos (amarelinha, brincadeiras de roda, pega-pega, esconde-esconde, bandeirinha) até os jogos esportivos. Neste percurso, Vygotsky (1998) destaca que os jogos praticados pelas crianças (o autor raramente utiliza o termo brincadeira) se desenvolvem das situações em que a situação imaginária assume o papel de principal motivo no transcorrer da atividade, ficando as regras subordinadas a estas, para àquelas situações no qual as regras orientam as relações estabelecidas ludicamente pelas crianças, sendo que neste caso a situação imaginária, apesar de existente, desempenha papel secundário em relação ao desenvolvimento da atividade. As dramatizações (papai e mamãe, brincadeira de casinha, casamento) são características das primeiras atividades (Leontiev (1988a) chama esses jogos de brincadeiras); e os jogos pré-esportivos e esportivos da segunda.

    De acordo com Vygotsky (apud Elkonin, 1998), quaisquer jogos possuem uma determinada situação fictícia e regras, as quais, tal qual o mecanismo construtor das funções psíquicas superiores (memória, atenção voluntária, imaginação, consciência, linguagem), se desenvolvem do exterior (sociedade) para o interior (consciência), uma vez que o processo de internalização das regras nas atividades lúdicas é organizado tal qual a formação de qualquer constructo humano, sendo que a sociedade necessariamente se configura como o palco inicial de nossas apropriações, sejam elas lúdicas, artísticas ou laboriosas.

    De acordo com Vygotsky (apud Elkonin, 1998, p. 429), “A trajetória central do desenvolvimento do jogo vai da situação fictícia patente com regras e objetivos latentes com ficção, até a situação fictícia com regras e objetivos constantes (o jogo com bonecas e o jogo de xadrez são os pólos deste desenvolvimento), ou seja, do próprio jogo extrai-se sua essência”, e, também seu próprio significado social, não existindo a transposição das relações sociais estabelecidas pelos adultos em uma arquitetura lúdica protagonizada, tal qual nos jogos dramáticos. Assim, enquanto o jogo dramatizado de bonecas busca suas principais relações em um sistema cultural no qual está envolvida uma idéia de maternidade, no jogo de xadrez, seu sistema simbólico em nada se assemelha as relações sociais estabelecidas pelos adultos, sua própria prática se configura como a escola de sua aprendizagem.

    Além disso, enquanto nas dramatizações lúdicas/brincadeiras as regras, apesar de internas, são expostas de maneira externa (a criança literalmente vocaliza os pressupostos norteadores de suas ações, os quais podem ser transformados de uma ora para outra, por exemplo, a vassoura, antes cantada como cavalo, agora se transforma em uma espada), assim, os participantes expressam publicamente e a todo o momento os limites impostos pela brincadeira, funções e papel social ocupado por cada sujeito em particular (a situação imaginária prevalece); nos jogos pré-esportivos e esportivos (pega-pega, amarelinha, futebol, basquete, etc.) estas regras, apesar de externas, se expressam internamente (nenhum jogador de xadrez fala qual será seu próximo movimento, assim como no pega-pega o pegador não verbaliza sobre qual criança será alvo de sua investida), não bastasse isso, a transgressão dessas regras é severamente punida pelos demais participantes (aqui é a regra que prevalece sobre a situação imaginária). Destarte, quanto mais desenvolvidos são os jogos, maiores e mais complexas são suas regras, porém, menor é a liberdade oferecida aos seus participantes, cada vez mais submetidos às regras da própria atividade.

    Explicado isto, nos embasando em Leontiev (1988a), optaremos em nosso trabalho pela utilização do termo brincadeira, ou jogo dramático quando estivermos falando das atividades lúdicas protagonizadas, e pelo termo jogo pré-esportivo e jogo esportivo, quando essas atividades transcenderem sua área de atuação para a esfera esportiva.

    Após a consideração de todos estes elementos, julgamos importante ressaltar que, apesar de toda a dificuldade na realização de uma comparação sistemática entre os múltiplos tipos de jogos, isto não impede a descrição de algumas das particularidades fundamentais das atividades consideradas lúdicas, tais como a elucidação de alguns componentes de sua estrutura, função e origem histórica. Foi isso que almejamos ao construir as análises seguintes.

Do biológico ao social

    Para a realização deste caminhar teórico, cujo desenvolvimento objetiva desvelar a pretensa naturalidade existente nos mais diversos tipos de jogos humanos, utilizamo-nos basicamente da obra Psicologia do jogo (1998), escrita por Elkonin.

    Antes de começarmos a descrição dos principais elementos apontados por Elkonin em sua obra principal (Psicologia do jogo, 1998), destacamos o caráter total de sua obra (no sentido marxista), devido ao constante diálogo realizado entre diversos ramos de conhecimentos (Antropologia, Etnografia, Sociologia, Biologia, e a Psicologia) sob uma perspectiva materialista histórica.

    Elkonin (1998) descreve o caminho da ciência na conceituação dos jogos ao longo da história como indo do “biológico ao social”, para isso realiza um passeio teórico por alguns dos mais influentes autores da época moderna e contemporânea no estudo dos jogos, tais como: Schiller, Spencer, Buytendijk, Freud, Piaget (estudos predominantemente biológicos das crianças e jogos), Chateau, Groos, Wundt, Leontiev, Vygotsky, Rubinstein, Zaporozhéts (para quem as relações sociais são predominantes sobre todas as outras estruturas). O intuito dessa trajetória estava em mostrar a evolução teórica que as pesquisas adquiriram ao longo dos anos, na medida em que tanto os jogos como as crianças começaram a ser analisadas em seu processo de inter-relação com a sociedade da qual faziam parte, e não mais sob pressupostos maturacionais, supostamente comum a todos os indivíduos de uma mesma espécie, independentemente da cultura na qual estavam inseridos.

    Seguindo essa linha de raciocínio, Elkonin (1998) destaca dentre as várias teorias que trabalharam com o jogo sob uma perspectiva biológica, a de Schiller, para quem, o jogo é uma atividade propiciadora de prazer aos participantes, e a de Spencer, que caracteriza sua origem como estando relacionada a um excesso de energia presente nas crianças, conseqüentemente, a criança jogava porque precisava gastar as energias de sobra. Ainda nas concepções biológicas, a vertente freudiana se destaca por entender a infância como um período traumático, sendo que seus jogos são compreendidos como mecanismos instintivos presentes nos seres humanos desde o nascimento. Já Piaget, apesar de relacionar o jogo à construção do simbolismo, continuou preso a processos puramente biológicos, uma vez que entendia sua evolução como estando relacionada a maturação de certas capacidades motoras e cognitivas (Elkonin, 1998).

    Consideramos, grosso modo, que estes estudos, a partir das interpretações feitas por Elkonin (1998), apesar de oferecerem importantes contribuições para a análise dos jogos em diversas perspectivas, desconsideravam suas principais peculiaridades, o que tornava impossível sua caracterização como a atividade principal das crianças pré-escolares, ou seja, como um elemento que ampliaria sobremaneira as possibilidades de intervenção sobre a realidade circundante.

    Quem deu o passo inicial em direção ao entendimento social do jogo foi Wundt, para quem, a origem do jogo, ou melhor, seu nascimento, está relacionado ao processo de trabalho. Já Groos, foi pioneiro em considerar a importância dos jogos e brincadeiras para o desenvolvimento infantil, pelo fato de estas atividades representarem potentes instrumentos na construção da personalidade das crianças (Elkonin, 1998).

    A partir do desenvolvimento desses trabalhos, Elkonin (1998) construirá sua visão de jogo, entendendo este como uma atividade eminentemente social, cujo desenvolvimento exerce crucial importância para a construção da personalidade e da psique infantil. Para Elkonin (1998), o jogo não se constitui como uma atividade preparatória para o trabalho, por exemplo, a criança que, mediante a construção de um universo lúdico, segura o leme de um navio em sua navegação imaginária não se prepara para a efetiva execução desta atividade. Assim, é refutada a idéia de que os jogos servem de incubação ao trabalho (apesar de se valerem dele como conteúdo fundamental de suas ações), se ocorrer isso, a atividade não será mais jogo, pois perderá sua própria intencionalidade. Devido a estes elementos, para Elkonin (1998), sob vários aspectos a utilização em miniatura de arcos e flechas nas sociedades primitivas não podem ser considerados como jogos, mas, sim, como um trabalho rudimentar concretizado pelas crianças.

    Elkonin (1998) destaca como primeiro aspecto fundamental na construção de qualquer teoria sobre o jogo a consideração de sua origem social como resultante das relações laborioso-culturais desempenhadas pelos adultos. Seguindo essa linha de raciocínio, para Vygotsky (2001), a potencialidade do jogo reside no fato de ele ter grande afinidade com a natureza da criança, não a de tipo biológico, mas social, caracterizado pela necessidade que ela sente em comunicar-se com os adultos e levar uma vida em comum com eles. Levar uma vida em comum que, de acordo com Leontiev (1988a), significa também sentir-se como o senhor do ambiente que o circunda, função essa materializada na sociedade predominantemente pelo trabalho. Mas em que consiste o trabalho, possui ele relação com a cultura?

    Embasados em Marx (1996, 1985), autores como Lukács (1974), Mészáros (2002), Luxemburgo (2006), Lênin (1979), Engels (1976), dentre outros, consideram o trabalho como a principal atividade humana, sede da construção das mais importantes relações sociais, sejam elas de libertação ou alienação. Por intermédio dele, não só o homem, como toda a sociedade se estrutura.

    Pelo trabalho o homem se personifica e também realiza uma função produtiva na sociedade, sua gênese é a do próprio homem, portanto, não existe homem separado do trabalho, assim como, não existe trabalho separado das mãos humanas, já que devido à intencionalidade de seus atos esta atividade é inalcançável ao mundo animal.

    O trabalho promove uma independência relativa do homem ao meio ambiente natural, na medida em que sua principal função é a transformação desse ambiente em proveito humano, elemento que o torna gerador de cultura (Leontiev, 1978a). A noção de independência relativa foi utilizada neste trabalho para demonstrar que o homem não pode fazer o que bem entende com a natureza, transformá-la, assim como, preservá-la é função basilar de uma atitude crítica e reflexiva.

    Necessitamos da natureza para nossa existência, entretanto, nossa sociedade, conjuntamente a todos os usufrutos engendrados pela evolução tecnológica, está perdendo as reais proporções dos malefícios causados por algumas transformações baseadas na busca incessante e frenética do lucro, como florestas destruídas, ar poluído, rios contaminados, frutos não tão saborosos como anteriormente se conhecia. Grande parte dessas deformações humanas são decorrentes de um sistema econômico baseado em pressupostos competitivistas predatórios, o qual além da busca de um evolução tecnológica crescente, também visa a eliminação do concorrente, sua supressão, tanto em termos objetivos como subjetivos, e exatamente neste ponto reside o problema da competição, a qual, em si, não é um mal, aliás, quando bem dimensionada produz vantagens no enriquecimento das esferas produtivas, e no próprio processo de desenvolvimento ontogênico.

    Atualmente, competição e cooperação mesclam-se na estrutura produtiva das mais diversas relações laboriosas, entretanto, é sobre o primeiro pressuposto, e às vezes em sua vertente predatória e segregacionista, que se tem desenvolvido uma parcela significativa das comunicações estabelecidas entre os seres humanos, seja na esfera do trabalho, da arte, do esporte e, até da escola. Neste escopo relacional, a busca por lucros rápidos e fulgurantes acaba por se configurar como o principal anseio e objetivo a ser atingido hodiernamente, sendo em certas circunstâncias muito mais incisivos do que o dimensionamento da construção de uma sociedade futura mais aprazível e proveitosa.

    Assim, a exploração que algumas sociedades atuais empregam sobre seus mais diversos sujeitos e sobre seu corpo inorgânico (a natureza), acaba por nos fazer refém de um paradoxo insuperável, pois a matança da natureza significa em outros termos a morte do próprio homem, que já não mais transforma seu meio natural, destrói-o, assim, não constrói cultura, mas aniquilá-a. É desta conjuntura de acontecimentos que as crianças retiram os conteúdos necessários para a arquitetura de seu universo lúdico, se apropriando das diversas formas de competição e cooperação existentes nas relações sociais desenvolvidas pelos adultos, e não de uma realidade fictícia construída em elucubrações místicas e a - históricas. Para a criança, brincar de faz de conta ou jogar dramaticamente não se configura como passatempo, mas, sim, como uma imersão indireta nesta complexa teia de relações sociais edificadas pelo trabalho e cultura, denominada por nós de sociedade.

    Em virtude disso, para Elkonin (1998), o jogo (dramático, pré-esportivo ou esportivo) enquanto atividade humana surge do trabalho (já que a cultura também surge dele), mais do que isso, toda atividade lúdica provém de uma situação arquitetada pelos adultos, conseqüentemente, não existe jogo descolado da realidade. Mesmo a dramatização sobre super-heróis, aparentemente tão distantes de nosso universo cotidiano, possui representação (que não pode ser encarada como uma cópia) em uma atividade elaborada pelos adultos, a citar, a produção cinematográfica, teatral ou literária. Isto posto, para Elkonin (1998), qualquer proposta que entenda as atividades lúdicas como fenômeno dado e, não construído socialmente, representa um falho entendimento sobre o processo de construção do próprio homem, o qual só pode ser realizado de forma histórica e cultural.

    Por todos estes elementos, destacamos que os jogos praticados pelas crianças, em si, não possuem ligações diretas com as atividades arquitetadas pelos adultos (produtivas e simbólicas), apesar de surgirem delas, - já que a funcionalidade e os fins da atividade lúdica são essencialmente diferentes daqueles expressos pelas atividades laboriosas, artísticas, etc.-; mas, uma ligação mediada, na medida em que é através de alguns interpostos (filmes, histórias, trabalho dos adultos, suas diversões) que as crianças transportam as suas idealizações de um universo laborioso-cultural para um ambiente particular, imaginariamente e educacionalmente arquitetado, no qual as inter-relações aí desenvolvidas não visam a produtos materiais, mas, sim, a compreensão e a inserção neste ambiente que a circundam de uma forma mais incisiva e radical.

    Esta transposição realizada pelas crianças das atividades adultas para um universo lúdico particular (apropriação das significações) recebe a interferência marcante do sentido que cada criança dá a determinada atividade, por isso, em certas dramatizações alguns personagens recebem contornos para além daqueles tracejados pelos adultos: o pai se transforma em super-herói; o médico assume funções do bombeiro, etc. Enfim, as funções desempenhadas pelos adultos, não apenas são copiadas, mas imitadas pelas crianças, e o imitar, para Vygotsky (1998), consiste em um complexo mecanismo de reprodução e criação pelo qual, além de nos apropriarmos de determinado fenômeno, damos uma nova forma a este fenômeno, nos objetivamos nele.

    Este fato demonstra a potencialidade de aprendizagem apresentada pelas crianças desde a pré-escola, logo, nosso desenvolvimento psíquico, apesar de ancorado em alguns pressupostos orgânicos e biológicos, têm como seu grande propulsor as apropriações sociais, políticas, culturais e laboriosas por nós interiorizadas durante o ativo processo de comunicação com a sociedade que nos circunda, e nos constitui.

    Durante o processo de desenvolvimento humano, e da própria sociedade da qual somos construtores e também fazemos parte, nos deparamos com uma grande quantidade de jogos, a citar: jogos objetais, jogos protagonizados, jogos pré-esportivos, jogos esportivos. A obra de Elkonin (1998) retrata basicamente o desenvolvimento dos jogos protagonizados, atividade principal no período pré-escolar das crianças, apesar disso, não há o esquecimento dos outros tipos de jogos, pois estes se dialogam constantemente em um processo de construção que também o é do próprio homem, sendo que a cadeia de desenvolvimento dos jogos não segue uma direção linear, mas, sim, um processo de complexos ciclos que se compõem e recompõem-se continuamente. Logo, nem sempre a trilogia jogos protagonizados, jogos pré-esportivos e jogos esportivos assume respectivamente o mesmo ciclo evolutivo, apresentando variações conforme o local ocupado pelas crianças no interior da sociedade. Coerentemente, apesar de os sujeitos de nossa pesquisa se relacionarem de maneira lúdica primordialmente mediante os jogos protagonizados (foco de nossas análises), buscamos não relegar a segundo plano os jogos pré-esportivos e esportivos por acreditarmos que estes também fazem parte do universo lúdico das crianças de 5 e 6 anos de idade.

    Para Elkonin (1998), a gênese histórica do jogo protagonizado se encontra socialmente ligada ao momento em que a divisão institucional do trabalho separa as crianças do processo de produção, portanto, não existiu desde o início da história, representando uma construção especificamente humana, e relativamente recente em termos cronológicos. Sua difusão cultural só pode ser realizada através de um processo eminentemente educacional, pelo qual as crianças se apropriam com o auxílio de mediadores externos das mais diversas relações sociais presentes na estrutura das comunicações desempenhadas pelos adultos em suas atividades laborioso-culturais.

    Destarte, o entendimento das atividades lúdicas só pode ser realizado se levarmos em conta o complexo processo educacional a que as crianças estão submetidas, o qual recebe a interferência de uma gama de relações sociais e culturais. Ao nascer, a criança encontra um mundo multifacetado e pluri-articulado, sendo que seu principal sustento é garantido pelos adultos. Contudo, ela precisa começar a intervir/agir nesse mundo, o que só pode ser alcançado neste estádio de desenvolvimento pela apropriação cultural dos diversos elementos constituintes da sociedade pela prática dos jogos protagonizados, cujo conteúdo principal reside na representação dramática das atividades desempenhadas pelos adultos cotidianamente. Logo, as diferentes apropriações culturais realizadas pelas crianças estão mediatamente relacionadas à estruturação que estas atividades adultas (principalmente o trabalho) assumem em cada sociedade, ou seja, variam significativamente de tempos para tempos, assim como, de países para países.

    Em virtude destes elementos, para Elkonin (1998), analisar a origem dos jogos protagonizados também é investigar o lugar que as crianças ocupam nas mais diversas épocas históricas, igualmente significando pesquisar qual a mudança social que desencadeou a prática de certos jogos, e, isso, é analisar a sociedade. A criança participa diretamente até onde pode do mundo dos adultos, quando essa participação fica inviabilizada devido à complexidade das tarefas sociais ela integra-se a esse universo por meio das atividades lúdicas. Destarte, ao estudarmos os jogos podemos visualizar os limites e possibilidades oferecidos às crianças por determinada sociedade, conseqüentemente, o jogo se torna um objeto de análise histórica.

O jogo como objeto de análise histórica

    Estudar os jogos a partir de um referencial teórico metodológico pautado na teoria Histórico-Cultural traz consigo inequivocamente a necessidade de uma busca sociológica e histórica dos fenômenos investigados. Qualquer acontecimento produzido pelas mãos humanas, quais sejam, o trabalho, a linguagem, a sociedade, a cultura ou o jogo possui uma história que se compõe a partir da inter-relação desempenhada entre o homem e a sociedade. Vygotsky (1999), Elkonin (1987; 1998), Leontiev (1988), Mukhina (1995), Davidov (1988), Zaporózhets (1987) e Usova (1979) teceram importantes considerações sobre a origem histórica dos jogos e o papel que estes desempenham na construção social, cultural e psíquica das crianças. Qualquer apontamento realizado sobre os jogos deve, obrigatoriamente, considerar a essência dessa atividade lúdica como primordialmente social, não há nada de biológico nos jogos praticados pelas crianças, adolescentes, adultos ou velhos. Tudo nele é social, desde a origem, até sua evolução e seu término, portanto, não existe qualquer hipótese dos jogos praticados pelos homens estarem presentes também entre os animais.

    Em conformidade com esse raciocínio, Leontiev (1988a) tece as seguintes considerações sobre a presença ou não de brincadeiras (jogos protagonizados) entre os animais. É fato notório a existência de atividades lúdicas em alguns animais superiores, porém, a brincadeira praticada, desde a mais tenra idade, pelos humanos em nada se assemelha a realizada por qualquer animal. Mas, em que consiste essa diferença entre a atividade lúdicas dos animais e os jogos protagonizados infantis, os quais podem ser observados já nas crianças pré-escolares? O referido autor (ibid) responde a sua indagação dizendo que essa diferença reside no fato de o jogo protagonizado (assim como qualquer jogo) da criança não ser instintivo, pois seus conteúdos e estrutura são governados pelas relações estabelecidas entre os homens e a sociedade, e entre si próprios, ou seja, o jogo humano é histórico. Assim, nossa atividade lúdica não é instintiva, nascendo das atividades executadas pelos adultos em relação a sua realidade externa, as quais, por constituírem a base de percepção que a criança tem do mundo, determinam o conteúdo destes jogos. Este é o elemento diferenciador das atividades lúdicas dos animais e dos jogos realizados pelos humanos.

    Para Usova (1979), a concretização de qualquer fenômeno social, tal qual o jogo, possui uma história, cujo desvelar permite o entendimento das principais características que esclarecem sua origem, seu desenvolvimento e a importância social desempenhada em diferentes contextos históricos. Elkonin (1987) corrobora com essa opinião e, acrescenta a importância exercida pela educação na prática e na construção dos mais diversos tipos de jogos praticados entre os seres humanos. Sem as mediações educacionais não haveria qualquer possibilidade de os homens se apropriarem das relações sociais desempenhadas no trabalho, na arte, na literatura, na religião, nos mitos, conseqüentemente, os jogos perderiam todo seu conteúdo, ou seja, se esfacelariam perante a inépcia de seu ambiente circundante.

    Dentro deste conjunto de elementos, para Elkonin (1998), o trabalho se configura como a atividade basilar na arquitetura dos jogos, principalmente dos jogos protagonizados, uma vez que por intermédio da teia de relações sociais por ele criada a criança pode transcender sua forma cotidiana de existência, se apropriando das significações históricas construídas pelo gênero humano em suas mais diversas atividades. Essa apropriação possibilita a criança uma efetiva entrada no âmbito da sociedade, cuja realização é fundamental para todo seu processo de desenvolvimento posterior.

    Os jogos praticados pelos homens não possuem uma existência atemporal, muito pelo contrário, pois os caminhos da história edificados pelo gênero humano (Usova, 1979) não relatam sua presença entre as coletividades sociais como um fenômeno eterno. Ou seja, nem sempre existiu um tipo de atividade lúdica particular entre os homens classificadas pelo vocábulo jogo. De acordo com Elkonin (1987), a observação das relações sociais presentes nos jogos, acrescido do estudo de alguns relatos obtidos por historiadores, nos permitem refutar qualquer base biologicista ou geneticista sobre a origem dos jogos humanos, uma vez que eles surgem mediante a alteração nas condições de vida oferecidas na sociedade.

    Assim, de acordo com Plekhanov (1974), nas coletividades que ainda davam seus primeiros passos rumo a formação de sociedades, as atividades lúdicas não tinham qualquer espaço na rotina diária de seus habitantes, posto que a totalidade das horas do dia eram consumidas na busca de alimentos para seu sustento, e na escolha de um local protegido para servir de abrigo contra as intempéries do tempo e os animais selvagens. Apenas posteriormente a resolução deste problema, solucionado pelo aparecimento e desenvolvimento do trabalho e de seus mecanismos artificiais, as atividades lúdicas tiveram seu ato de nascimento. Devido a estes elementos, a gênese histórica dos jogos humanos está mediatamente atrelada às atividades laboriosas, tal como retrata Plekhanov (1974), apenas nos preocupamos com as questões lúdicas e estéticas quando nossas necessidades básicas e utilitárias se encontram satisfeitas.

    Voltando nosso foco de análise para os jogos protagonizados, Ponce (1981) e Elkonin (1998) destacam que nas sociedades primitivas não se notava a existência destas atividades entre os habitantes de uma dada coletividade. Sua justificativa estava relacionada à parca utilização de mecanismos artificiais nas atividades laboriosas, dessa forma, a criança praticamente se inseria de forma automática no seio da comunidade, sendo assim, não havia a necessidade, por parte das crianças, da construção de qualquer universo imaginário para que estas pudessem se apropriar das significações edificadas pelas relações sociais desenvolvidas pelos adultos. Nesse tipo de sistema social, os jogos protagonizados inexistiam.

    Apenas posteriormente a complexificação das ferramentas utilizadas no trabalho e ao aumento das técnicas produtivas a criança começa a paulatinamente ser separada do mundo adulto. A partir deste momento, as crianças não mais podiam se inserir de forma imediata no processo de trabalho, passando a necessitar de uma atividade que atuasse como mediadora no processo de inserção da criança a sociedade. É esse o marco para o surgimento dos “jogos protagonizados” considerados sob uma perspectiva global, os quais tinham inicialmente como conteúdo básico o domínio das técnicas utilizadas pelas ferramentas por intermédio da utilização de modelos reduzidos dessas mesmas ferramentas, porém, sem a finalidade de preparação para o trabalho, situação cuja delimitação cronológica se mostra extremamente difícil pela fragmentação dos dados expressos pelas ciências humanas (Elkonin, 1998).

    Por conseguinte, como já destacamos anteriormente neste trabalho, a construção de arcos, flechas e lanças em miniatura para as crianças nas sociedades primitivas, cuja prática oferecia uma inserção quase direta a posteriori nas principais atividades laboriosas desempenhadas até aquele determinado momento não podem ser consideradas como jogos dramatizados ou brincadeiras, uma vez que seus objetivos se dirigiam a funções predominantemente utilitárias.

    Em virtude disso, no exemplo precedente, colocamos a palavra jogo protagonizado entre aspas devido ao fato de ela não representar fidedignamente o entendimento do jogo de acordo com Elkonin (1998), o que se consubstanciará quando a atividade infantil não possuir mais uma ligação direta com algum tipo de trabalho e não estiver relacionada a qualquer obtenção material/financeira. Grosso modo, ainda nos valendo daquela situação, embasados em Elkonin (1998) e Vygotsky (1998), destacamos que o jogo protagonizado apenas aparecerá no cenário da história quando a utilização de arcos e flechas em miniaturas não possuir qualquer relação com uma atividade laboriosa posterior, a citar a caça, caso contrário será uma preparação ao trabalho.

    É claro que as brincadeiras e os jogos protagonizados, em circunstâncias especiais, podem possuir uma relação íntima com um trabalho futuro, mas esta relação não pode estar dada a priori. O garoto que realiza um drible com uma bola de futebol e diz estar imitando algum jogador famoso, pois futuramente será um atleta, não está se preparando para o ingresso neste campo laborioso, assim como a criança que brinca de médico com um estetoscópio de brinquedo não se prepara efetivamente para essa profissão, algo totalmente diferente ocorre quando uma criança treina suas flechadas para depois de três meses matar um animal. Neste ponto reside a diferença básica entre o jogo protagonizado e a preparação para o trabalho, ou melhor, entre o jogo e uma atividade pré-laboriosa.

    Dentro desse complexo, para Elkonin (1998), qualquer jogo protagonizado, por mais simples que pareça, é uma idealização de um trabalho anteriormente realizado, já que este, de acordo com Wundt (apud Elkonin, 1998, p.16) “sempre o precedeu no tempo e na própria existência”. Assim, a dramatização lúdica, como atividade sócio-histórica humana, tem sua gênese relacionada com a base de produção material da sociedade e com o local ocupado pelas crianças no seio desta, ou seja, com as condições concretas de vida das crianças.

    Leontiev (1988a) tece importantes considerações sobre o processo de aparição dos jogos nas crianças pré-escolares, cujo desenvolvimento revoluciona as possibilidades de exploração da realidade circundante. Ao nascer, a criança não possui qualquer forma de raciocínio teórico ou abstrato, por conseguinte, para se inserir na sociedade precisa agir sobre ela, por isso, uma criança que domina o mundo que a cerca é a criança que se esforça para agir neste mundo. Durante seu processo de desenvolvimento, a criança tenta se integrar não apenas às coisas diretamente acessíveis a ela, mas também com um mundo mais amplo, assim, ela se esforça para agir como um adulto, na medida em que este surge para ela como a potência dominadora da realidade externa.

    Entretanto, essa integração ao mundo adulto não se realiza de maneira direta na maioria das vezes, a criança quer, ela mesma, guiar o carro; ter o controle do leme, mas, não pode agir assim, principalmente porque ainda não dominou e não pode dominar até aquele momento as operações exigidas pelas condições objetivas complexas da ação dada. Como se resolve esta contradição, a discrepância entre sua necessidade de agir, por um lado, e a impossibilidade de executar as operações exigidas pelas ações, por outro? Pode esta contradição ser resolvida? Ela pode ser solucionada, todavia, para a criança, apenas por um único tipo de atividade, a saber, em uma brincadeira. Isto se deve ao fato de o jogo protagonizado não ser uma atividade produtiva, e seu desenvolvimento não trazer conseqüências mais sérias para a sociedade, uma vez que seu principal objetivo não está em seu resultado, mas na ação em si mesma, no processo. O jogo protagonizado está, pois, livre do aspecto obrigatório da ação dada, a qual é determinada pelos modos imperativos de agir, e essa liberdade permite uma exploração mais intensa do meio externo. O domínio de uma área mais ampla da realidade, por parte da criança – área esta que não é diretamente acessível a ela – só pode, portanto, ser obtido em um jogo protagonizado (Leontiev, 1988a).

    Para Mukhina (1995) são a partir destes jogos que as crianças começam a assimilar as mais diversas atividades laborioso-culturais. Por causa disso, o jogo protagonizado adquire uma forma muito especial, qualitativamente diferente de qualquer outra atividade observada no período pré-escolar, e neste estágio de desenvolvimento se torna verdadeiramente a principal atividade da criança. O ensino sistematizado e o trabalho desenvolverão o papel de força dominante apenas posteriormente na vida das crianças. Além disso, a partir desses jogos as crianças passam a formar uma espécie de comunidade infantil, organizando atividades lúdicas cujo desenvolvimento reproduz os principais traços das relações presenciadas pela criança na sociedade. É nessa etapa que surge o jogo dramático como uma forma especial de convivência da criança com o adulto.

    O jogo protagonizado/dramático (recebe a denominação de faz de conta na esfera cotidiana brasileira) tem seu surgimento atrelado a complexificação das relações produtivas e a influência cada vez mais marcante estabelecida pela educação sistematizada sobre a vida das crianças. É fato que a criança não pode sozinha satisfazer suas principais necessidades, tanto em termos práticos, como teóricos. Ou seja, a criança não pode dirigir um barco, tampouco realizar abstrações com fundamentos científicos sobre o processo de navegação ou flutuação. Logo, a inserção no mundo, e a tomada de conhecimento por ela desse mundo não se realizam de forma espontânea, mas, por intermédio da mediação de um adulto ou de sua atividade principal, as brincadeiras, as quais se complexificam no período pré-escolar.

    Para Leontiev (1988b), durante o desenvolvimento da criança, novas necessidades são colocadas em relação a seu processo de inserção na sociedade, sendo que, na idade pré-escolar, a criança experimenta um alargamento da esfera de suas relações sociais, as quais extrapolam os limitados círculos familiares. Esse é um período de grande desenvolvimento para a criança, na medida em que pode participar, por intermédio de seus jogos, de relações sociais mais complexas sem a exigência de grande responsabilidade em seus atos. Poder navegar sem ao menos estar na água é sem duvida alguma um acontecimento essencialmente humano, pois sua ação, embora não seja gerada pela imaginação, precisa dela para continuar se desenvolvendo.

    Nesse estádio de desenvolvimento, a criança não precisa se sustentar por suas próprias forças, aliás, não dispõe dos meios objetivos e subjetivos para a realização de tal procedimento. Suas principais necessidades continuam sendo satisfeitas pelos adultos, os quais representam o verdadeiro pilar de sustentação infantil, cujo alicerce e altura foram se fortificando cada vez mais em conseqüência da postergação paulatina da entrada das crianças nas esferas produtivas ao longo de nossa história.

    Quanto mais a criança se afasta das esferas produtivas da sociedade, maior é o destaque dado aos jogos protagonizados como uma atividade essencial no desenvolvimento físico e psíquico das crianças. Portanto, o jogo infantil é uma atividade essencialmente histórica e social, cuja estrutura e conteúdo recebem a influência mediada da cultura que circunda a criança e, em sua grande maioria, está relacionado com as atividades desempenhadas pelos adultos, principalmente pelo trabalho, mas também pela arte, pelos esportes, mitos, religiões. Elkonin (1998) retrata que uma das maiores provas da historicidade dos jogos humanos diz respeito aos objetos preferido pelas crianças para sua prática lúdica ao redor da história. Por exemplo, nas sociedades modernas, os carros, foguetes, trens e aviões dominam o cenário da venda de brinquedos, os quais não poderiam sequer ser imaginados na Antiguidade, ou seja, a problemática da origem, evolução e função social dos jogos passa diretamente pela necessidade de um estudo histórico sobre seus componentes.

    História que não deve ser vista como um elemento estanque e descritivo, como se retratasse os fatos humanos de forma linear e evolucionista, essa na verdade é a anti-história. A história é um processo e, exatamente por ser processo está sempre em transformação, história e mudança são quase sinônimos. Sua constituição, como dito anteriormente, longe de representar um encadeamento linear dos fatos, é marcada por contradições e conflitos que respondem a determinados interesses políticos, econômicos e sociais.

    Por mais influenciada que pareça ser a edificação da história por fatores independentes às atividades dos homens, esta nunca deixa de ser escrita pelas mãos humanas, o homem é a bomba propulsora da história, sem ele, ela simplesmente não existe (Marx, 2003). Os jogos também possuem sua história, e seu esclarecimento é fundamental para o entendimento do próprio vocábulo, tal como das funções desempenhadas por ele em contextos sociais particulares. Sem essa compreensão não há como se chegar a conceituação do jogo como a principal atividade do período pré-escolar, pois a utilização de estádios de desenvolvimento na perspectiva Histórico-Cultural está intimamente relacionada com o local ocupado pelos sujeitos nas relações de produção existentes na sociedade, e, pela atividade principal disponível para a apropriação e inserção na realidade circundante. Por conseguinte, o conceito de estádios de desenvolvimento não está relacionado a qualquer componente biológico ou inato, sendo uma classificação essencialmente social, cultural e histórica. (Elkonin, 1987; Davidov, 1988; Mukhina, 1995; Leontiev, 1988a).

    Os jogos, protagonizados ou esportivos, foram retratados de diversas maneiras ao longo da história, o que nos mostra o processo de desenvolvimento da sociedade e do próprio homem.

    Ampliando nossas análises sobre os jogos, não mais restritos aqui ao estudo dos jogos protagonizados ou brincadeiras, percebemos que desde os mais remotos tempos é possível notar a percepção de diversas manifestações lúdicas (ainda não eram jogos) nas mais variadas sociedades que se teve conhecimento. Nas tribos primitivas, existiam os “jogos” festivos, sempre realizados quando havia a necessidade de alguma comemoração, além disso, parte da preparação da criança para a vida adulta e sua conseqüente apropriação cultural era realizada por intermédio dessas atividades (Elkonin, 1998).

    Após um grande salto histórico chegamos à Antigüidade. De acordo com Brougère (1998), na Grécia Antiga, o jogo (basicamente esportivo) era visto como uma atividade que não tinha um caráter primordial/principal na sociedade, porém, não era insignificante. O autor (ibid) chegou a essa posição ao investigar o raciocínio de Aristóteles, para quem, o jogo é uma excelente atividade para o descanso e recuperação das energias, logo, fundamental à execução do trabalho, atividade mais importante dos escravos. Todavia, isto não significava que as classes dominantes não participassem de quaisquer atividades lúdicas, pois estas se materializavam como importante entreposto de contato entre coetâneos em termos econômicos e sociais, entretanto, os objetivos alcançados pela prática desses jogos diferiam essencialmente daqueles praticados pelos escravos, uma vez que não se precisava de uma excelente atividade para o descanso e recuperação de energias para aqueles que nada faziam, viviam no ócio.

    A tendência à importação dos valores gregos apresentada pela sociedade romana também se refletiu sobre a estrutura de suas atividades lúdicas. Os romanos possuíam como principal jogo, o sangrento combate entre gladiadores, cujos atores, de acordo com as palavras de Ponce (1981), eram selecionados exclusivamente aos escravos capturados por Roma considerados como os mais temíveis as frágeis estruturas imperiais. À imensa maioria da população cabia assistir ao “espetáculo”, e aos governantes ludibriar as massas por intermédio da política do pão e circo, talvez pão e sangue representassem melhor o que acontecia à época.

    Após mais um salto na história chegamos à Idade Média. No período medieval, os jogos ganharam um grande impulso quanto a sua difusão e participação na alta sociedade (Áries, 1986). Porém, essa grande difusão não resultou em um melhor entendimento e representação do jogo enquanto fenômeno social, muito pelo contrário, já que a popularização dos jogos se resumia especialmente àqueles que envolviam certas apostas, eis os famosos jogos de azar. Esses jogos eram mal vistos pela sociedade, que os caracterizavam como libertinos e perniciosos, uma vez que geravam a degradação do homem e não tinha nenhuma função educacional, de acordo com os postulados da Igreja Católica. Por todas essas características, na Idade Média, devido à influência da Igreja Católica, não havia muitos locais para a prática destes jogos, considerados como uma prática danosa e pecaminosa. Conseqüentemente, apesar do grande aumento do número de participantes (quase toda a alta sociedade se reunia em torno das mesas), isso não resultou em benefício para a imagem dos jogos, o qual continuava a ser entendido como uma atividade banal, ou o que era pior ainda, prejudicial ao desenvolvimento do homem. Esse fato inexistia nos períodos analisados anteriormente (Áries, 1986).

    Para Brougère (1997) e Áries (1986), a transformação da concepção que o medievo tinha dos jogos só principia a ser radicalmente alterada com a decorrente mudança do entendimento e do papel que a criança vem a realizar no seio da sociedade. A partir do Iluminismo, a criança deixa de ser vista com um mero depósito de informações (tabula rasa) e sua espontaneidade começa a ser valorizada pelos adultos. Com isso, as crianças passam a ser consideradas como sujeitos particulares, as quais precisam de atividades ajustadas a seu nível de desenvolvimento. Assim, começa-se a dar importância para os diversos processos que auxiliam na construção dos valores e no desenvolvimento da criança, dentre esses, o jogo (protagonizado e esportivo) é reconhecido como a atividade típica (essencial) da criança, sendo de fundamental importância para sua construção enquanto ser social, devido ao fato de possuir inúmeras qualidades positivas, tais como, gratuidade, espontaneidade, ludicidade, presença de regras, dentre outros elementos.

    Brougère (1998) denomina essa nova fase da criança e do papel assumido pelos jogos na sociedade como paradigma romântico, o qual é influenciado por várias áreas do conhecimento, como Pedagogia, Sociologia e Psicologia. Esse novo paradigma considera o jogo como recurso pedagógico e social de valiosa importância, se contrapondo, conseqüentemente, as posturas rígidas e dogmáticas impostas pela Igreja Católica.

    Após a apresentação destes elementos, podemos observar como a evolução do entendimento dos jogos nas diversas épocas históricas ocorreu entre progressos e regressões, cuja importância foi sendo reconhecida timidamente pela sociedade. O entendimento sistemático e estrutural dos jogos passa a ser visto como objeto de estudo apenas posteriormente à Idade Moderna, assim, somente em meados do século XIX e início do século XX aparece em cena teorias científicas sobre os jogos, as quais passaram a se debruçar sobre suas características mais gerais. Teorias essas materializadas em autores como Elkonin (1998), Leontiev (1988a), Vygotsky (1998; apud Elkonin, 1998), Brougère (1998), Caillois (1990), dentre outros (as).

    De acordo com Usova (1979), a Idade Contemporânea traz importantes alterações em sua estrutura produtiva, as quais repercutiram sobre o local ocupado pelas crianças pré-escolares na sociedade. Cada vez mais observamos um alargamento do período de infância, ou seja, historicamente a criança foi se tornando cada vez mais dependente do adulto. É o adulto que satisfaz suas principais necessidades, tanto em termos teóricos, como práticos. Para sua educação foi construída uma instituição específica no trato do saber, a citar, as pré-escolas, que afastou ainda mais as crianças do contato direto com os adultos em sua esfera produtiva. Por isso, a autora (op. cit.) destaca que o mundo moderno efetivamente construiu um local específico para a inserção das crianças na sociedade longe das bases materiais de produção. Por intermédio do saber desenvolvido nas pré-escolas, as crianças vão tomando conhecimento tanto de sua cotidianidade, como de todo o mundo que a cerca, dessa forma, elas não se apropriam de forma direta da realidade, mas, através de representações simbólicas mediadas por um adulto, ou pelas suas atividades lúdicas.

    Ainda seguindo os direcionamentos de Usova (1979), um dos principais mecanismos representacionais construídos pela humanidade para a apropriação pelas crianças pré-escolares da realidade circundante diz respeito aos jogos protagonizados (brincadeira de faz-de-conta) os quais reconstroem, por intermédio de seu simbolismo, as relações desempenhadas pelos homens no contato com a natureza e com seus semelhantes. As relações sociais são a fonte e o conteúdo dos jogos dramáticos, e também o manancial de todo o posterior desenvolvimento psíquico das crianças, sendo assim, sua apropriação é um elemento chave para a inserção ativa da criança na realidade, isso é proporcionado na idade pré-escolar essencialmente pelos jogos dramáticos.

    Os jogos dramáticos re/produzem diversas situações da cultura humana, cuja aquisição se faz de fundamental importância para que a criança possa entender a própria cotidianidade na qual está imersa em todos seus fatores (espirituais, afetivos, motores, materiais, biológicos) e, assim, transformá-la a partir da confrontação de suas estruturas sociais, políticas e econômicas. Conseqüentemente, por intermédio das ações protagonizadas, os pré-escolares, podem, além de conhecer a realidade, idealizar mecanismos para sua contestação e transformação (Usova, 1979).

    Elkonin (1998) corrobora com a linha de raciocínio desenvolvida por Usova (1979). Para o referido autor, nas sociedades modernas, os jogos protagonizados assumem o papel, durante a etapa pré-escolar, de atividade principal. Quanto maior é a distância entre o mundo dos adultos e o das crianças em termos de complexidade, maior é a necessidade dos jogos para a promoção do desenvolvimento humano. Já em relação aos adultos, os jogos, contemporaneamente, foram em sua grande maioria substituídos pelos esportes, cujos códigos e preceitos de liberdade, igualdade e fraternidade, mesmo que manifestos aparentemente, não se concretizando na prática, coadunam com as regras de etiqueta e comportamento edificados pelas sociedades hodiernas (Bracht, 1997).

    Contudo, acreditamos que a prática do esporte, expressão lúdica característica das sociedades contemporâneas, sejam elas socialistas ou capitalistas, (vide a rivalidade manifestada por Estados Unidos e União Soviética durante os anos de Guerra Fria nos Jogos Olímpicos) também se encontra presente entre as atividades lúdicas arquitetadas por pré-escolares e, se considerados sob uma perspectiva latu sensu, não deixam de representar uma moderna forma de expressão dramática e protagonizada utilizada pelos pré-escolares visando à apropriação de uma atividade laboriosa desempenhada pelos adultos, mesmo porque, os esportes não podem mais ser encarados como atividades irrisórias desempenhadas por uma classe economicamente desfavorecida.

    Hoje, ser um esportista de alto rendimento representa a concretização do sonho de muitas crianças, na medida em que o meio esportivo, além de representar uma fonte de ascensão social para a fama e o sucesso (ainda que para pouquíssimos), proporciona, efetivamente, remunerações econômicas extremamente vantajosas e significativas. Em uma sociedade governada pelas leis do lucro máximo, certamente as cifras milionárias recebidas por alguns atletas encantam os olhos de uma grande fatia da população, coerentemente, as funções/relações esportivas também passam a ser representadas nos jogos dramáticos, às vezes sob a forma específica da própria modalidade.

    Após essa breve retrospectiva histórica fica nítida a influência que a sociedade estabelece sobre a prática das atividades lúdicas pelas mais diversas pessoas das mais distintas faixas etárias. Ou seja, podemos perceber que o jogo é um fenômeno histórico-cultural, socialmente construído, não surge do nada, mas, sim, da atividade do próprio homem.

    Por isso, Usova (1979) destaca que o jogo surge da cultura, não há jogo desprovido de elementos culturais e educacionais, pois, por mais simples que pareça a estrutura dessa atividade, sempre será mediatizada por alguma relação humana, sejam elas diretas (contato entre pessoas), ou indiretas (contato através de símbolos, linguagem, objetos). Logo, acreditamos que em qualquer jogo praticado por uma determinada pessoa sempre estará presente um diálogo entre homens, entre culturas, enfim, um diálogo com a própria história do gênero humano.

    Somente após o tratamento histórico dos jogos, podemos criticar as concepções naturalistas e espontaneístas sobre a origem desse fenômeno. A idéia de Huizinga (1980), de que o jogo surge antes da própria cultura representa uma visão a - histórica de jogo, cultura e sociedade. Tudo na vida do homem é social, pois a própria construção humana necessita da ação coletiva de outros homens; o ser humano só se torna humano ao se relacionar em grupo.

    Assim, a consideração do jogo como progenitor da própria cultura despreza em sua completude a diferenciação entre o jogo humano e a atividade lúdica animal, não bastasse isso, ignora veementemente a complexidade do processo construtivo humano ao não perceber as particularidades existentes que diferenciam radicalmente o jogo dos mais complexos animais em comparação àqueles praticados pelos homens. Para Leontiev (1988a), nos animais, os jogos atendem a características primordialmente instintivas, enquanto nos homens é um processo intencional e teleológico. Portanto, em muito difere o jogo humano da atividade animal, a começar pelo papel ativo ou passivo que seus atores desempenham em relação à natureza

    Dentre as peculiaridades dos jogos humanos destacamos o fato de ele ser uma atividade histórica, dessa forma, em sua prática sempre existe um constante diálogo com outras sociedades, mesmo quando estas não figuram mais no cenário atual. Uma das características marcantes de nossos jogos reside na reprodução constante de alguns elementos típicos de culturas já extintas, dessa forma, uma pergunta não se cala: Como alguns jogos perduram mesmo após o fim de suas respectivas sociedades? Para entendermos os mecanismos de difusão e perpetuação dos jogos é preciso primeiramente compreender o processo de transformação da própria sociedade, já que o jogo surge como decorrência das ações coletivas dos homens.

    Indubitavelmente, as mais diversas sociedades se modificam ao longo das épocas, valores que na Antiguidade eram considerados fundamentais para a manutenção de determinado sistema social perdem sua importância, entretanto, não deixam de existir em sua totalidade, pois um valor humano nunca morre em absoluto. Para Heller (1970), as construções realizadas pelas mãos humanas não se perdem por completo, encontrando maneiras de continuarem ecoando sua voz em alguma atividade ou local, para isso, criamos certos mecanismos de difusão cultural, como a linguagem, a arte, e as atividades lúdicas, dentre outras, os quais em conjunto possibilitam que a história humana não se resuma apenas a determinados indivíduos, países, ou épocas cronológicas, mas, sim, a todo o gênero humano.

    Destarte, os jogos, além de fonte de desenvolvimento social e psíquico também carregam consigo as marcas das próprias culturas e das atividades laboriosas passadas/presentes, representando de maneira protagonizada, em algumas circunstâncias, os elementos definidores de certo modus operandi nas esferas da vida cotidiana. Devido a isso, os jogos além de possibilitarem a apropriação de determinado contexto histórico, também podem representar uma atividade de contestação a alguns dos valores propalados por determinada estrutura social, na medida em que a apropriação, quando criticamente realizada, carrega consigo a objetivação de uma nova realidade. Essa é uma das marcas dos jogos, cuja relação com as atividades desempenhadas pelos adultos, e, conseqüentemente com o trabalho, se dá dialeticamente, ao passo que se origina dele, mas também se diferencia por ser uma atividade de caráter oposto (ao trabalho alienado), que preza pelo lúdico e diversão, e possui uma estrutura específica definidora distinta das atividades laboriosas, a qual será alvo de nossas análises no próximo tópico deste capítulo. Logo, a íntima relação de unidade presente nas relações entre trabalho e jogo não significa que suas estruturas e funcionalidades sejam idênticas as atividades laboriosas, nisto reside à especificidade dos jogos protagonizados, pré-esportivos e esportivos.

    Em virtude destes elementos é extremamente difícil traçar uma linha de evolução coesa que relacione o desenvolvimento dos jogos ao progresso do trabalho e de seus mecanismos artificiais. Podemos até estabelecer algumas hipóteses orientadoras, como a de que em virtude do caráter cada vez mais metódico e regrado assumido pelo trabalho nas sociedades industriais, a estrutura das atividades lúdicas paulatinamente foi ganhando contornos regrados, cronometrados e codificados, cuja materialização se consubstancia nos esportes, certamente a atividade lúdica mais praticada hodiernamente. Entretanto, estas hipóteses não servem de regra, mas apenas como um fio orientador que nos permite visualizar de uma maneira mais cristalina a interferência radical e mediada exercida pela sociedade na arquitetura de todas as atividades lúdicas.

O jogo e sua estrutura

    A definição dos elementos estruturais dos jogos (protagonizados, pré-esportivos e esportivos) consiste em uma árdua tarefa, mesmo com toda sua evolução ao longo da história da humanidade sua conceituação ainda é muito complexa, pois carrega uma série de significados e sentidos que muito dizem a seu respeito.

    Mesmo falando do jogo apenas como fenômeno humano, sua caracterização em uma sociedade não fica mais facilitada, pois o que define se uma atividade pode ser considerada ou não como jogo sofre a interferência do arcabouço cultural no qual cada sociedade está alicerçada. Sendo assim, uma atividade pode ser considerada jogo em determinada sociedade, e não o ser em outra. Kishimoto (1997, p.13) argumenta que:

    Tentar definir o jogo não é tarefa fácil. Quando se pronuncia a palavra jogo cada um pode entendê-la de modo diferente. Pode-se estar falando de jogos políticos, de adultos, crianças, animais ou amarelinha, xadrez, adivinhas, contar estórias, brincar de ‘mamãe e filhinha’, futebol, dominó, quebra-cabeça, construir barquinho, brincar na areia e uma infinidade de outros.

    A vastidão do significado da palavra jogo é confirmada quando buscamos sua definição no dicionário (Pestana, 1994, p.510), o qual o define da seguinte maneira:

    Jogo: 1- Brincadeira, divertimento, folguedo. 2- Passatempo, em que se arrisca dinheiro, ou qualquer outra coisa. 3- Divertimento ou exercício de crianças, em que elas fazem prova da sua habilidade, destreza ou astúcia. 4- Maneira de jogar. 5- Conjunto de regras a observar, quando se joga. 6- Vício de jogar. 7- Cada uma das partidas em que se divide um certame. 8- Aposta. 9- Especulação da bolsa. 10- Espaço livre entre duas peças, tal como o eixo e o mancal, ou êmbolo e cilindro.

    Ou seja, as definições sobre o termo jogo vão desde as brincadeiras realizadas pelas crianças, passando por uma relação entre objetos, indo, incrivelmente, até o campo econômico do país. Mesmo com toda essa complexidade, é de grande importância estabelecer alguns parâmetros sobre o que consideramos jogo, objetivando um melhor esclarecimento sobre a utilização deste termo. Para isso, utilizamo-nos primordialmente do trabalho de Caillois (1990).

    Para Caillois (1990), os jogos existem em números vastíssimos, nos quais sempre está evocada uma idéia de facilidade, risco e habilidade, e é justamente essa idéia que garante o fascínio por sua prática, a qual pode gerar tanto satisfação quanto frustração dependendo do resultado da atividade lúdica e das expectativas e objetivos estabelecidos anteriormente por seus participantes.

    Independentemente da complexidade dos jogos, estes sempre possuem determinados códigos definidores, os quais são construções sociais realizadas pelos homens ao longo da história, e que só podem ser modificados pela própria atuação humana. Em conformidade com esse raciocínio, para Brougère (1998, p.11): “todo o jogo é um sistema de regras que definem o que é e o que não é do jogo, ou seja, o permitido e o proibido. Estas convenções (...) não podem ser violadas sob nenhum pretexto, pois, se assim for, o jogo acaba imediatamente e é destruído por esse fato”.

    Em geral, a construção da legislação que governa os jogos é realizada de forma tácita entre os participantes, e, o desrespeito das regras significa, em algumas vezes, o fim do próprio jogo. A questão das regras foi representada por Huizinga (1980), para quem, seu desrespeito nem sempre quer dizer o fim da atividade, aliás, alguns jogos têm como um de seus princípios o desrespeito às regras, e isso é sabiamente utilizado pelos grandes jogadores. Para o referido autor (op. cit.), as atitudes indiferentes é que promovem os maiores prejuízos aos jogos, muito mais do que burlar as regras, fato materializado no desinteresse demonstrado por algumas pessoas ao participarem dos jogos, atrapalhando o desenvolvimento da própria atividade. Opinião semelhante, porém, com uma base teórica radicalmente diferente, pode ser encontrada em Vygotsky (1991), para quem, o desenvolvimento dos mais diversos jogos não são garantidos por suas regras, mas, pelo comportamento de seus participantes perante o universo construído pela atividade lúdica.

    Entretanto, Huizinga (1980) não levou em consideração que o próprio burlar de regras pode ser configurado nas relações desenvolvidas por determinado tipo de jogo, ou seja, burlar uma regra pode representar uma possibilidade subliminar de sucesso no jogo, a qual estava presente para todos seus participantes, conseqüentemente, também era um código da própria atividade lúdica.

    De acordo com Caillois (1990), no jogo sempre está presente à idéia de liberdade e de limites a serem respeitados, na verdade, estes são dois pólos inseparáveis, posto um não subsistir sem o outro. Devido à relativa liberdade proporcionada aos jogadores no transcorrer das atividades lúdicas, fato que permite que estes muitas vezes desistam repentinamente de sua prática, os esportistas, que ganham a vida por intermédio de atividades competitivas regulamentadas, não devem ser encarados como jogadores, mas sim, como trabalhadores do esporte (atletas).

    Além dessas características anteriormente apontadas, existe outra que é de fundamental importância, a citar, o caráter voluntário da atividade, ou seja, não existe jogo que se desenvolva quando os jogadores não querem jogar. Em circunstâncias especiais, tal como no interior das escolas, vários jogos não são propostos pelas crianças, mas pelos professores que medeiam à atividade, todavia, isto não invalida o caráter voluntário manifesto pelos participantes durante os jogos, pois mesmo quando imposto pelos professores, uma criança que se recusa a jogar determinado jogo, se obrigada, não participará efetivamente da atividade, ao menos que uma intervenção mediadora a convença da importância contida na prática daquela atividade (Caillois, 1990).

    Após a consideração de todos estes elementos, nos embasamos em Caillois (1990) para descrever de forma resumida os principais traços estruturais constituintes dos jogos, os quais nos permitem definí-lo como uma atividade, que em sua essência é: 1- livre: o jogador só joga quando tiver vontade, não pode ser obrigado a contragosto, senão esta perderia sua diversão e alegria; 2- delimitada: está restrita a espaços de limite e tempo; 3- incerta: o resultado não pode ser determinado a priori; 4- improdutiva: não gera bens e riquezas, apenas os movimentam; 5- regulamentada: sujeita a convenções e regras que devem ser obedecidas para o desenvolvimento da atividade; 6- fictícia: caráter opositor a vida cotidiana e séria.

    Isto posto, definimos jogo (seja ele protagonizado, pré-esportivo ou esportivo) como uma atividade cuja gênese histórica deve ser buscada na teia de relações laboriosas e culturais constituintes de uma dada sociedade, possuindo regras que delimitam o que pode ou não ser executado por seus participantes, mas não um resultado pré-determinado, pois se isto ocorresse o sentido e o motivo que engendram a atividade seriam esfacelados pela raiz. Qualquer jogo possui um universo particular, distinto daquele nos quais se realizam as atividades desempenhadas pelos adultos, sendo que as conseqüências dos atos executados pelos jogadores não exercem uma interferência “marcante” na sociedade da qual fazemos parte, logo, neste mundo particular, os erros e acertos assumem perspectivas radicalmente díspares daquelas materializadas na esfera cotidiana. Não bastasse isso, os jogos não produzem quaisquer bens materiais, ou seja, seus objetivos não se direcionam para fins utilitários, mas psíquicos, motores, gnosiológicos e, conseqüentemente, éticos, estéticos e catárticos. Destarte, a prática dos jogos, quando criticamente objetivada, promove um enriquecimento na qualidade das apropriações por nós realizadas sobre a estrutura das relações sociais desenvolvidas nas esferas humanas, contribuindo para que repensemos as mais diversas comunicações tecidas cotidianamente.

    Assim, retratamos brevemente as particularidades gerais por nós consideradas como fundamentais ao entendimento das principais características estruturais dos jogos, enquanto elemento cultural que sofre interferência das mãos humanas e das mais diversas sociedades. A partir de então se torna possível a classificação dos jogos (fundamentalmente dos protagonizados) como a atividade principal realizada pelas crianças pré-escolares.

    Desta feita, podemos pensar no caráter global assumido pelo vocábulo jogo e projetar novas intervenções que transformem a atual rota analítica que lhe circunscreve. Este é o anseio do materialismo histórico enquanto método e sua principal propositura em termos de transformação social.

Referências

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