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Epistemologia do esporte: teoria e complexidade

Epistemología del deporte: teoría y complejidad

Epistemology of sport: theory and complexity

 

Mestre em Educação Física

Universidade Nove de Julho, São Paulo, SP

(Brasil)

Dimitri Wuo Pereira

dimitri@rumoaventura.com.br

 

 

 

 

Resumo

          Compreender o Esporte nunca foi tarefa fácil para os pesquisadores e filósofos. Sua complexidade como fenômeno de massa e sua diversidade cultural apresentam interpretações variadas e não admitem definições e conceituações simplistas. A epistemologia se ocupa de teorizar a ciência e nesse sentido conhecer a natureza do Esporte é um caminho importante a seguir. O objetivo dessa pesquisa é discutir a partir das teorias do Esporte e da Educação Física um entendimento sobre o significado do Esporte e sua abrangência social. A revisão de literatura foi o método escolhido para chegar ao resultado mais adequado. As teorias elaboradas por Cagigal, Parlebás, Le Boulch e Manuel Sergio fornecem boas indicações. Mas as concepções de Sergio Bento e Manoel Tubino permitem uma aproximação com a natureza do Esporte em sua complexidade.

          Unitermos: Epistemologia. Esporte. Complexidade.

 

Abstract

          Understand the Sport has never been easy way for researchers and philosophers. Its complexity as a mass phenomenon and its cultural diversity presents many interpretations do not allow simplistic definitions and conceptualizations. Epistemology is concerned with science and theorize accordingly know the nature of sports is an important path to follow. The objective of this research is to discuss from the theories of Sport and Physical Education with an understanding of the meaning of Sport and its social scope. The literature review was the method to reach the most appropriate result. The theories developed by Cagigal, Parlebás, Manuel Sergio and Le Boulch provide good information. But the ideas of Sergio Bento e Manoel Tubino allow an approximation with the natures of Sport in its complexity.

          Keywords: Epistemology. Sport. Complexity.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 17, Nº 171, Agosto de 2012. http://www.efdeportes.com

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Introdução

    O Esporte é um fenômeno social mundial que reúne pessoas em torno de movimentos, jogos, corpos, risos, espantos, esforços, lutas, sofrimentos, vitórias e conquistas, que extrapolam as explicações de caráter racional que podemos dar a esse evento. As emoções que emanam do momento vivido no Esporte marcam as pessoas com tal intensidade, que o pensamento fica pequeno diante de tamanha força vital.

    Porém, cabe ao profissional do Esporte, em suas diversas áreas de atuação, buscar um entendimento, e uma compreensão dessa atividade, para atingir às expectativas daqueles que usam de seus conhecimentos e do encaminhamento que essa prática social tenderá no futuro.

    Refletir sobre o Esporte nesse sentido significa estruturar o pensamento. A episteme grega é a configuração formal desse conhecimento, isto é, a teoria do conhecimento. Epistemologia é, portanto, um ramo da filosofia que investiga a natureza de um conhecimento (GRAYLING, 1996). Assim sendo, verificar a natureza do conhecimento necessita descobrir como foi criado, ou como se define a partir de sua criação.

    O objetivo desse ensaio é analisar a natureza da teoria do Esporte e discutir o pensamento subjacente nas diversas teorias. O método usado é a revisão de literatura.

Epistemologia, a filosofia da ciência

    O conhecimento é a crença em uma verdade, isto é, necessita-se acreditar em algo para que se torne um conhecimento verdadeiro. Uma forma de acreditar num conhecimento é verificar sua natureza.

    Rousseau foi um filósofo que questionou os motivos para a substituição de um conhecimento “vulgar” ou “popular”, chamado atualmente de senso comum pelo conhecimento científico. A história do pensamento científico começa com na antiga Grécia com os filósofos Sócrates, Platão e Aristóteles que superaram a mitologia através da razão. A racionalidade grega está presente no modo de vida de hoje (MARCONDES, 2007).

    O Renascimento foi o período sucessor da Idade Média, que como o nome sugere fez renascer a possibilidade de pensar, de iluminar, e de libertar os espíritos das pessoas, para novos caminhos, que culminaram com a revolução industrial. Abriram-se as portas da chamada Modernidade. A revolução cientifica, a partir de Michelângelo, Leonardo Da Vinci, Copérnico, Galileu Galilei, entre outros, culminou com a visão de mundo universalizada nas leis de Newton e complementarmente a filosofia de Bacon, Voltaire, Montesquieu, entre outros, é estruturada fundando-se no pensamento de Descartes em que: A partir da divisão das coisas na mente pode-se obter um método objetivo de conhecer o mundo (TARNAS, 2001).

    Essas sucessões de formas de pensar a vida ocorreram devido ao fato, de que os pensamentos anteriores, já não davam conta de resolver os problemas de seus tempos. Portanto, novas formas de pensar substituem as antigas o que se chama superação de paradigmas (VITKOSWSKI, 2004).

    Importante salientar que o corpo em cada fase da história teve sua importância e valor determinado pela estrutura social vigente e influenciou a vida dos pensadores que determinaram as formas de viver da sociedade nos tempos futuros.

    Na história da epistemologia duas escolas de pensamento podem ser consideradas essenciais na forma como o conhecimento se fundamenta. Em ambas o ceticismo, isto é, a dúvida sobre o conhecimento deve ser superada por um modelo de pensamento.

    A escola racionalista, baseada na matemática, na lógica e na intuição, na inferência. E a empirista, que acredita na experiência, na observação da natureza, na evidência, nos sentidos ajudados por instrumentos para chegar a uma verdade. Em ambas a busca da verdade é o objetivo.

    Todavia a verdade tanto se modifica com o tempo, quanto pode ser definida a partir do paradigma que compõe a forme de pensar.

    Para Morin (2000a) um paradigma é capaz de instituir conceitos e lógicas que vão imperar nas nossas mentes, sendo o guia de nossas ações. Assim cada novo paradigma, ao mesmo tempo, em que possibilita rever antigos conceitos e projeta novas possibilidades de respostas, cria formas de agir que impedem que outros pensamentos o contaminem e destruam suas bases teóricas. São as necessidades das novas relações que se estabelecem entre os seres humanos com o tempo que suscitarão nova forma de pensar no futuro.

    O paradigma newtoniano – cartesiano com uma visão mecanicista e uma perspectiva dualista dos objetos e dos sujeitos permitiu um grande salto no desenvolvimento das sociedades e um amplo crescimento quantitativo e qualitativo da informação. Porém todo pensamento corre o risco do erro e da ilusão, quer seja por falha em sua concepção ou pela incapacidade de lidar com a incerteza do futuro.

    Morin (2000b) aponta para 4 pilares da ciência clássica que precisam ser revistos:

  1. Racionalização – que é o domínio da razão sobre todos os outros aspectos da inteligência como: emoção, intuição, sensação.

  2. Universalização – acreditar que algumas leis da física podem predizer todas as respostas para a vida na terra, com relações de causa e efeito.

  3. Separação – a fé na divisão das coisas em pedaços pequenos para se conhecer o mundo.

  4. Objetividade – para o conhecimento isto significa retirar o sujeito conhecedor do objeto do conhecimento, como se pudéssemos colocar em laboratório todo tipo de conhecimento para chegarmos à realidade.

    A complexidade é uma forma de pensar proveniente de estudiosos de todas as áreas da ciência e de fora da ciência, cuja meta é procurar na incerteza as perspectivas para uma vida com mais qualidade, solidariedade, liberdade e justiça social visando a sustentabilidade das gerações futuras e do planeta.

    Complexidade é articulação de pensamento, é união de conhecimentos, é desafio ao conhecimento, é busca de certeza na incerteza, portanto, não se define como teoria, pois não se acredita como resposta pronta aos problemas (MORIN, 2000a).

    Pensar o século XXI dessa forma deve levar em consideração: As questões disciplinares, ou seja, o conhecimento já adquirido historicamente, e que se configura como compartimentado em disciplinar; A multidisciplinaridade, isto é, unir os conhecimentos das disciplinas buscando suas intersecções; A interdisciplinaridade que estabelece as relações entre os conhecimentos das disciplinas gerando diálogo entre elas; E a transdisciplinaridade que procura o conhecimento que atravessa os conhecimentos já firmados como verdadeiros e que considera também aqueles conhecimentos que estão fora da verdade estabelecida histórica e socialmente (NICOLESCU, 1999).

    Uma proposta para enfrentar o desafio do pensamento para o século XXI é buscar a sabedoria que se perdeu no conhecimento (MORIN, 2003).

    O Esporte no futuro deve ser pensado nesse contexto, acreditar que esse fenômeno não se alterará com as mudanças globais, tecnológicas e sociais que se processam rapidamente nesse início de século pode tornar o pensamento sobre o Esporte atual uma peça de museu em um processador de informática do futuro. Hoje se fala em movimento virtual, exergames ou kinetics, que é a junção do movimento com os computadores, a Educação Física já é ameaçada pelos professores virtuais, que são os jogos de computador.

A natureza do esporte

    Para compreender o Esporte vale uma definição de sua natureza. Natureza vem da palavra grega physis, em outras palavras, natureza é aquilo que é físico, material. A constituição de um elemento em algo físico depende das relações entre os elementos que o compõe. Essas relações ocorrem através de movimentos que geram emergências, isto é, criam algo novo. No caso do Esporte, para se compreender sua criação, sua transformação, ou seja, sua natureza deve ser partir dos elementos que o criaram.

    Alguns desses elementos são: o corpo humano, o movimento e o jogo. Quando numa copa do mundo o jogador Maradona driblou todos os adversários e o goleiro inglês para já linha do gol tocar a bola para dentro, mostrou algo totalmente novo que não podia ser previsto pelo técnico adversário. Esse é um exemplo da physis criadora presente nos seres em sua complexidade.

    Vaz (1999) apresenta uma idéia esclarecedora em relação ao corpo. Se dominar a natureza sempre foi uma necessidade, e, ou, desejo do ser humano, então controlar o corpo para atingir chegar a esse domínio é essencial. Na mitologia grega a história do garoto que ganhou quando bebê um bezerro e o carregava no colo, e quando adulto continuava com o touro em suas costas, mostra de forma metafórica esse domínio corporal, que se obtém quando se utiliza o corpo como instrumento de relação com a natureza. Criam-se assim condições para tornar o corpo uma ferramenta eficiente de poder, com inúmeros desdobramentos na sociedade.

    O movimento humano é outro elemento que merece atenção. Trebels (2003) aponta para duas definições, numa delas, baseada na Fenomenologia de Merleau Ponty, o movimento intencional é aquele em que o sujeito percebe o que realiza, relaciona-se com o meio ambiente, enfim, constrói uma relação eu-mundo. O movimento é concebido como expressão humana de intencionalidade de ações. Na outra concepção o corpo é movimentado, isto é, ele ocorre através de um processo mecânico, em que é possível se determinar a priori seus resultados. O movimento aqui não tem significado, porque não tem função ou finalidade, segue as cegas as ações propostas pela biomecânica. Um dançarino costuma expressar em seus movimentos sua criatividade e utiliza suas emoções para deixar seu corpo fluir, isto é a intencionalidade do movimento, porém algumas vezes observam-se pessoas caminhando ou correndo em esteiras ergométricas, nas quais apenas mantém um mesmo movimento sem sair do lugar, a criatividade desaparece, a emoção some, e a única intenção é perder peso, aqui o corpo é movimentado como máquina.

    O jogo deve ser entendido em sua complexidade, não apenas em algumas de suas finalidades, como: dispender energia, extravasar sentimentos, satisfazer necessidades, preparar para a vida adulta etc. Nele cultura e relações humanas se recriam. O divertimento do jogo torna sua análise livre da racionalização do pensamento, é preciso vê-lo em sua totalidade (HUIZINGA, 1980). Nesse contexto, o jogo pode ser classificado como propõe Caillois (1990) em quatro categorias: Agôn – jogo de disputa ou competição (futebol); Mimicry – jogo de imitação e fantasia (teatro); Alea – jogo de sorte e azar (dados); Ilinx – jogo de vertigem e adrenalina (surf). Essas categorias articulam-se entre si, podendo se compor, como por exemplo: um campeonato de surf que une o agôn e o ilinx. Além disso, abre a possibilidade de sair das limitações comuns ao jogo como sendo exclusivamente uma atividade competitiva ou livre de obrigações, ou então sem uma finalidade em si. O jogo nessa classificação ganha autonomia para se criar dependendo das intenções de quem joga.

    O Esporte surge no movimento corporal humano de jogar em todas as suas expressões. Esse movimento é dinâmico e se auto organiza. Segundo Morin (2005) organizar provém do grego organ, com sentido de ferver por dentro, no movimento dos corpos durante o jogo fundem-se os elementos que produzem algo inteiramente novo, e auto produtor de si mesmo, o Esporte. Não é por acaso, que a cada dia surgem novas modalidades esportivas, cada uma provém das relações humanas com o corpo em movimento em seu tempo de vida, que pelo próprio dinamismo altera a forma de jogar e conseqüentemente abre a possibilidade de criação de um Esporte novo.

Teorias

    Esporte e Educação Física, confundem-se, contradizem-se, complementam-se, atraem-se, mas definitivamente não se separam totalmente. Diversos são os estudos que procuram explicar teoricamente esses termos. A compreensão da natureza do Esporte passa necessariamente pelo conhecimento desses pensamentos, dos quais nos basearemos nos estudos de (CARBINATTO, 2006).

A Teoria Antropológico-Cultural do Esporte e da Educação Física

    José Maria Cagigal investiga o termo deporte mostrando que sua origem saxônica, vem de passatempo, diversão e ócio. O uso do termo também se relaciona ao exercício e a demonstração de qualidades físicas. O regramento dessas atividades também se faz presente na concepção defendida pelo autor

    Cagigal (1996) é um dos primeiros a discutir o valor estético da prática esportiva, apresentando-o como espetáculo profissional e entretenimento social. O jogo é concebido pelo autor em sua acepção de diversão e também pelo caráter competitivo

    De forma sintética ele categoriza o “deporte” como: competição, entretenimento, jogo e educação. Assim a Educação Física deve ser vista como uma ciência que estuda a técnica de movimentos e sua pedagogia.

    Cagigal aparece, então, como o percursor em considerar o esporte inserido nos valores humanistas, o considerando multifuncional, considerando seus diferentes níveis de prática, seja no esporte-espetáculo, seja por meio do esporte práxis.

A Teoria Praxeológica

    Pierre Parlebás parte da compreensão do Esporte como uma linguagem para propor sua ciência, chamada de Ciência da Praxeologia Motriz, ou, ciência da ação motriz.

    O autor propõe um estudo da lógica interna das ações motrizes, ou seja, o conjunto de características pertinentes a uma situação de jogos desportivos ou tradicionais, dança etc., transparecendo, que em cada uma dessas manifestações os praticantes interagem diferentemente com os seus adversários e com seus companheiros, além disso, há de se considerar o espaço e terreno de jogo, bem como a utilização ou não de um objeto. Parlebas (1997) aponta tanto para os jogos agonísticos quanto para os cooperativos. Assim, nota-se que esta abordagem busca descrever as estruturas que edificam o jogo para, então, entender as possibilidades de ações motrizes existentes nele. O produto destes será o entendimento das redes de sistemas, comunicações e códigos presentes no jogo. Partindo da gênese da palavra de sua teoria, práxis definiria a lógica do jogo que guiam as ações motrizes e logia a incorporação do discurso pelo sujeito (Praxeologia Motriz).

    O conceito de jogo é considerado polissêmico, considerando todas as situações motrizes de enfrentamento codificado socialmente. Há uma separação entre os jogos tradicionais, sem reconhecimento institucional e os jogos desportivos, com espetáculos e federações.

    O Esporte contém um conjunto de relações que o permite categorizar suas ações: a interação com os companheiros ou não interação; a interação com adversários ou não; e a incerteza do ambiente. A incerteza está ligada geralmente à natureza.

A Psicomotricidade

    Jean Le Boulch, estudioso dos sistemas cerebrais; acreditava que o desenvolvimento de potencialidades cabia ao processo orgânico da maturação e o emocional. Contra o reducionismo metodológico de Descartes, acreditava no corpo além de uma visão mecanicista.

    Le Boulch dava à Educação Física uma grande importância. O corpo, para ele, recebe atenção especial, já que é por meio deste que ocorre a relação entre as pessoas e a formação da personalidade. O movimento é uma manifestação significante do comportamento humano, numa relação dialética com o meio ambiente.

    O autor enfatiza discussões sobre o jogo, o esporte e a dança. O primeiro dele é visto como uma atividade com finalidade de prazer, sem objetivos exteriores a ela mesma, como atividade lúdica.

    Quanto ao esporte o autor mostra o modelo de campeão, de vitória e de espetáculo, sendo inacessível para a massa maior da população e sendo passível ao espectador.

    Tentando aprofundar o assunto, Le Boulch (1982) traz duas possíveis visões do esporte:

  • Esporte-competição: a prática volta-se à obtenção de resultados sempre mais elevados. Os métodos se aproximam dos empregados ao mundo do trabalho;

  • Esporte-jogo: centrado no prazer de sua prática, que pode acrescentar um valor higiênico ou de relaxamento. Este tipo de esporte mantém também o caráter lúdico.

    Propõe, também, o Esporte-fomação cujo objetivo é o desenvolvimento equilibrado da pessoa, e não a obtenção rápida do resultado a qualquer preço.

    Também este autor falando sobre a dança explica que ela passa por um processo de codificação e técnica esvaziando seu aspecto expressivo.

    Le Boulch mostra quatro setores para a aplicação da prática da Educação Física: lazer, trabalho, terapia e formação dos indivíduos.

A Ciência da Motricidade Humana

    Recusando toda forma de dogmatismo, inclusive a hegemonia do paradigma cartesiano, esta filosofia tem como lema a ambigüidade e a polissemia das palavras; busca envolver o ser humano no mundo, de forma que o engaje e o torne ser no mundo, sendo a sua intencionalidade a experiência construtiva.

    Baseia-se na Fenomenologia, e, interpreta a cultura como fenômeno humano que pode ser apresentado de diferentes maneiras, dependendo das inúmeras experiências pelas quais podemos passar. O ser humano passa a ser visto numa complexidade estrutural, sendo um todo físico, biológico, psicológico, antropológico, e tudo isto presente no corpo-sujeito (SERGIO, 1996).

    Nos estudos fenomenológicos a educação é tratada como uma experiência profundamente humana, não somente pela cognição, mas, também, com todo o corpo, suas vísceras, sensibilidades, imaginação, desejos e curiosidades. Há a necessidade de educar os sentidos, ver, ouvir, cheirar, sentir, aprendendo que o conhecimento possui múltiplas manifestações.

    A Ciência da Motricidade Humana aparece com o desafio de estudar o ser humano em movimento e as intenções que o levam à esta ação. O autor, crendo na autonomia e singularidade das Faculdades de Educação Física propõe uma ciência sistemática, bem elaborada, que dialoga suas contradições, com independência de outras áreas, em especial das biológicas, apondo-se a visão cartesiana de saúde. Observa as interrelações e interdependências entre as diversas áreas de conhecimento e aponta para uma harmonia entre homem e natureza como espaço de produção da cultura.

    Manuel Sergio aponta para diversos conteúdos da Educação Física como: os jogos, o desporto, a ginástica, a dança, o circo, a ergonomia e a reabilitação. Há profunda crítica ao espetáculo esportivo por ser presa do capitalismo.

Teoria do Esporte (Desporto)

    Jorge Bento defende a idéia de Esporte, ou Desporto para os portugueses. O princípio humanista em que se baseia o autor revela o ser humano como provindo da natureza, porém com a vida destinada à produção cultural. Para ele o corpo é um dos instrumentos dessa cultura e é também o objeto a ser culturalizado. A técnica é a instrumentalização para atingir esse objetivo. A identidade humana é corporal e uma das possibilidades da cultura é de transformar a natureza, isto é, produzir cultura no próprio corpo.

    O desempenho do corpo é uma expressão da existência humana e o desporto é uma forma de imortalizar o corpo finito do humano, pois cria cultura que perdura historicamente e transcende a natureza mortal do humano. O atleta se lança no esforço e no risco, pois aí reside sua imortalidade (BENTO, 2006).

    Homo Sportivus, como descreve o praticante é o atleta, uma evolução corporal do homem natural para o cultural a partir do movimento. Bento (2012) aponta que das idéias dos filósofos Rousseau, Kant, Pestalozzi, Humboldt originaram as práticas de Guts Muths, Ling, Jahn e eternizaram o ideal de Pierre de Coubertin: “citius, altius, fortius”. Esse modelo de homem faz apologia ao bem, ao belo, à moral, ao respeito ao outro, e à virtude. O corpo é o caminho preconizado para atingir essa perfeição, e o Esporte o fenômeno cultural e social que possibilita esse acesso.

    O Homo Sportivus com suas características: ginásticas, olímpicas e lúdicas aproxima-se do herói, capaz de salvar a humanidade de suas fraquezas contra seus maiores inimigos: a guerra, o ódio, a doença, a falsidade, o desamor. Esse ser humano superior é adorado e venerado no Esporte e seu corpo é a marca que permanece na mente humana.

    Porém em sua complexidade o Homo Sportivus contém um lado negro, opondo-se a tudo aquilo que reflete como ideal de sociedade. Nele aparece também o doping, a violência, a ganância, a vitória a qualquer preço. Ao mesmo tempo em que se esforça na busca de um movimento perfeito para atingir sua meta de resultado esportivo e de ideal humano, lança-se aos subterfúgios de excesso de treinamento, de doses de medicamentos, de misturas genéticas em laboratórios, de infringir as regras do jogo para alcançar o êxito, os aplausos e a glória. Reside aqui sua face humana contraditória e anti ética e uma necessidade de se recriar a todo o momento.

    Exalta-se nessa busca a escolha de um caminho no qual não basta realizar um movimento é preciso que esse seja belo e preciso, técnica e estética devem caminhar juntas. Essa frenética busca da perfeição leva invariavelmente a comparação do homem com a máquina, pois esta é nossa maior produção cultural e, portanto nossa melhor forma de provar nossa capacidade criativa e criadora. Criar máquinas significou conquistar o mundo, produzir máquinas humanas, conduz a brincar com a natureza, como os deuses.

    A técnica estrutura central da ciência clássica proveu o humano de poder sobre a natureza, de desvendar seus mistérios e de controlar suas criações. Aqui se revela uma chaga da técnica, ela desmobilizou a consciência crítica de seus usuários e seu estudo (tecnologia) se tornou fim em si. Utilizada para a obtenção de resultados políticos e econômicos que se justificam apenas para a manutenção do lucro e das boas relações de seus usuários. Competir nesse contexto passa a ser o senhor das ações humanas, vencer nos campos dos governos, das empresas e dos jogos é o objetivo, nenhum outro valor tem mais importância do que ganhar.

    A tecnologia agora pode levar a criação do atleta de laboratório em futuro não muito distante, a máquina humana natural (MORIN, 2005) pode se transformar em máquina artificial e tornar ainda mais difícil restabelecer os ideais do Esporte.

    Bento (2012) sugere marcos na defesa do Esporte aos quais devemos refletir:

  1. Crítica ao termo atividade física, pelo falta de fundamentação epistemológica e modismo que a expressão encerra.

  2. O Esporte contém um caráter pedagógico que fica relegado a segundo plano quando se fala em atividade física, pois nela restam apenas as prescrições de exercícios com finalidade sanitária, perde assim o humano sua possibilidade de perceber uma existência digna de valor que o Esporte proporciona aqueles que se dedicam.

  3. Atividade física pelo apelo de saúde abdica das dimensões culturais, sociais, éticas, axiológicas, coordenativas e psicológicas que o Esporte carrega.

  4. O Esporte liga-se diretamente a saúde, porém de forma criativa, com valor no movimento que só a humanidade pode ter. Exercícios sem o poder criativo do humano são adestramentos de animais.

  5. O Esporte se justifica pela sua finalidade civilizacional. Os cidadãos são aqueles com capacidade de viver em sociedade e o Esporte permite os diálogos necessários a união dos humanos.

  6. O Esporte é um fenômeno cultural que participa da construção da história e ajuda a transformar o mundo como o conhecemos.

  7. A alteridade pode ser percebida na prática esportiva, pois na grande maioria dos esforços para atingir os louros do Esporte nos relacionamos com o outro como medida das nossas potencialidades.

  8. O Esporte ensina a compartilhar e ser solidário, os resultados negativos muitas vezes demonstrando o contrário na pratica esportiva está alicerçado nos valores deteriorados da sociedade em que vivemos e que contamina todos os campos sociais.

  9. As regras do Esporte contribuem para a formação moral do indivíduo e participa diretamente de todas as suas tomadas de decisão nas relações consigo e com o mundo.

  10. O Esporte se funda nos mitos e rituais que diferenciam o humano dos demais seres do planeta, as festas, os jogos, as comemorações, as torcidas são momentos de exaltação a vida.

    Por tudo isso o Esporte se configura em múltiplos sentidos, não se reduzindo como os outros termos (educação física, atividade física, movimento humano, motricidade, etc.). Por sua complexidade ele se apresenta contraditório como tudo que se auto organiza para continuar em evolução e não como algo acabado e pronto apenas para uma geração.

Dimensões Sociais do Esporte

    O Esporte em algum momento recebe uma definição que segue a classificação cientifica cartesiana - newtoniana, isto é, que reduz o fenômeno e simplifica sua forma de acontecer na sociedade. Essa visão do Esporte apresenta-o como uma atividade com regras padronizadas, cujo cumprimento será fiscalizado por determinados órgãos, e cuja técnica deve receber determinada organização.

    Alerta-se que mesmo nessa definição há um componente subjetivo que incomoda. Por exemplo, será considerado Esporte um jogo de futebol entre amigos numa praça, sem as delimitações especificas de um campo oficial, sem a presença do árbitro da federação e entre pessoas sem um treinamento adequado?

    A partir dessa problemática Tubino (2002) sugere um olhar antropológico e social para a prática esportiva que alarga seu significado.

    São três as dimensões sociais do Esporte que fazem parte da Carta Internacional do Direito ao Esporte da UNESCO (SADI, 2004) e que respeitam principalmente o praticante em seu legítimo direito de usufruir da cultura esportiva como patrimônio da humanidade.

  • Esporte Rendimento – destina-se a pessoas que pretendem desenvolver um treinamento específico com objetivo de competir formalmente e buscar o máximo resultado possível em termos de desempenho. Participantes de Olimpíadas, Campeonatos Mundiais, Nacionais, e em geral de eventos e espetáculos organizados por Federações e Confederações com delimitações nas regras, profissionalismo e competitividade acirrada.

  • Esporte Participação – é toda forma de prática esportiva visando aspectos como: saúde, condicionamento físico, lazer, diversão, prazer, recreação, desenvolvimento motor, cognitivo, social e psicológico. Regras adaptadas aos praticantes, locais modificados em função das necessidades e desejos e possibilidades e a alegria como meta final costumam ser as formas de se participar do Esporte em todo mundo segundo as capacidades do usuário e não da modalidade, permitindo o acesso de maior número de pessoas e não no maior rendimento que essas possam alcançar.

  • Esporte Educação – pelo seu caráter formativo o Esporte é uma ferramenta educacional, e dessa forma ligado diretamente a Educação Física, sendo no interior das escolas, ou em outros lugares, nos quais preparar para a vida seja uma necessidade dos indivíduos. Educar pelo Esporte é acreditar nos valores intrínsecos do mesmo, mas também é visualizar as possibilidades que o encontro esportivo abre para o fortalecimento de vínculos afetivos e sociais humanos através do movimento. É crer no desenvolvimento motor como participante do desenvolvimento total das potencialidades do ser humano.

    O voleibol pode ser entendido nessa lógica. Ele surgiu nos EUA como uma forma de entretenimento para pessoas que não deveriam participar de atividades vigorosas como o futebol ou o basquete na ACM que eram as atividades utilizadas preferencialmente na educação dos jovens. Com suas regras que separam os adversários em campos opostos sem contato entre eles, propiciou uma prática mais adequada a esses grupos como as mulheres daquele tempo e pessoas com mais idade, verifica-se um caráter educacional presente. Com o tempo ele se espalhou pelas escolas e começou a ser disputado em campeonatos até os dias atuais, quando é fortemente disputado em Jogos Olímpicos e Campeonatos Mundiais. Atletas de voleibol realizam intenso treinamento nesse nível e sofrem com lesões decorrentes do esforço intenso da prática de saltos e de batidas violentas na bola, aqui o Esporte de rendimento está claro. Mas o voleibol também se tornou uma atividade recreativa muito popular, principalmente quando praticado em rodas, ou na praia, ou mesmo com sua recriação na água o Biribol, o Esporte participação ganhou muitos adeptos e conquistou público espectador. Todas as dimensões do Esporte se contemplam no voleibol.

Considerações finais

    O conceito de Esporte fechado no alto rendimento, e acessível a poucos, não justifica sua ampla inserção social no mundo e seus inúmeros adeptos que não conseguem se incluir nos principais eventos. Se essa fosse a única forma de praticar esporte, esse fenômeno não teria tanto interesse como se percebe nas emoções evocadas desde o recebimento de uma medalha olímpica, até o choro de uma mãe que torce pelo filho que atravessou uma piscina nadando pela primeira vez.

    O pensamento sobre o Esporte, como o próprio fenômeno esportivo está envolto em tal complexidade, que as diversas teorias que o permeiam são mutuamente complementares e excludentes. Articular essas idéias e encontrar o ponto de diálogo entre elas é um caminho e a ser perseguido.

    A transcendência para uma condição mais elevada que o Esporte proporciona ao indivíduo deve permitir um conceito abrangente que inclua todos aqueles que estão dispostos a lutar por ideais e medalhas.

Referências bibliográficas

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EFDeportes.com, Revista Digital · Año 17 · N° 171 | Buenos Aires, Agosto de 2012  
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