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Reflexão contemporânea sobre o processo 

ensino-aprendizagem na formação dos profissionais da saúde

Reflexión contemporánea sobre el proceso de enseñanza-aprendizaje en la formación de los profesionales de salud

 

*Mestre em Envelhecimento Humano, Docente na Escola

de Enfermagem do Hospital da Cidade de Passo Fundo

**Doutor em Educação pela UFSCAR, Docente na Universidade de Passo Fundo

***Mestre em Agronomia, Doutorando em Processos Biotecnológicos (UFPR)

Docente na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Paraná

(Brasil)

Renata Maraschin*

rechinpf@gmail.com

Péricles Saremba Vieira**

psvieira@upf.br

André Luis Lopes da Silva***

clonageinvitro@yahoo.com.br

 

 

 

 

Resumo

          O processo ensino-aprendizagem que envolve a formação profissional na área da saúde vem sendo objeto de profundas análises. A interdisciplinaridade parece ser um dos caminhos na busca de paradigma consonante com as exigências/características contemporâneas. Frente a essa realidade, parece importante examinar a formação atual em relação ao seu potencial para formar profissionais da saúde com capacidade de pensar, agir e dialogar em uma perspectiva interdisciplinar. O presente estudo, ao refletir sobre esse potencial, pode oferecer elementos para ampliar as discussões éticas, políticas e pedagógicas a respeito do processo ensino-aprendizagem nos cursos de graduação na área da saúde e seus desdobramentos na atuação profissional.

          Unitermos: Formação profissional. Processo ensino-aprendizagem. Saúde. Interdisciplinaridade.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Año 17 - Nº 170 - Julio de 2012. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    Parece ser consenso na literatura a necessidade de refletir sobre o processo ensino-aprendizagem na universidade contemporaneamente. Talvez porque o modelo tradicional, baseado na concepção cartesiana, que estabelece vínculo de natureza emissor-receptor entre professor e aluno e se fundamenta na transmissão, reprodução, cópia e memorização de informações (Stedile, 2002), vem se mostrando insuficiente frente às transformações na maneira de construir, relacionar e interpretar os fenômenos e o conhecimento.

    De modo geral, a linearidade cartesiana, que fragmenta e isola as partes para melhor compreendê-las, tende mostrar-se limitada enquanto paradigma explicativo diante da complexidade que envolve os fenômenos atualmente (Capra, 1982). Na visão de Kulezycki e Pinto (2002, p.77) “vivemos hoje numa sociedade que convive com mudanças nas mais diferentes esferas, seja social, política, moral. A Educação vem sendo repensada e desafiada a partir de toda a complexidade que envolve os fenômenos sociais”. Grinspun e Maneschy (2005, p. 01) compartilham com esse ponto de vista ao afirmarem que diante da relação estreita entre Educação e fenômenos sociais, para a formação da sociedade que se deseja, “há que se repensar numa educação que atenda o novo apontamento em que vivemos”.

    Souza (2001) menciona que essa educação, além de formar profissionais, precisa contemplar também a formação de pesquisadores e de cidadãos comprometidos com as questões sociais. Com essa perspectiva, novas propostas de ensino apontam para a vinculação entre competências adquiridas durante a graduação e transformações no mundo do trabalho, da automação, da relação interpessoal, da instabilidade e da variabilidade das sociedades (Perrenoud, 2001, Nicida, 2004, Pozo, 2005). Parece importante e oportuno, desse modo, um olhar mais atento no fenômeno ensino-aprendizagem frente às transformações paradigmáticas que se desenham na contemporaneidade, no sentido de descobrir que características e competências estão sendo desenvolvidas/esperadas do profissional.

    Para tanto, talvez seja necessário ampliar a visibilidade sobre os fenômenos, abandonar imediatismos e respostas prontas, que embora sejam de mais fácil obtenção, tendem gerar limitações no sentido de entender e melhorar o que é feito. Ou seja, desenvolver “a capacidade de ver além da rotina, que transforma a ignorância ou a ausência de algo em condição de origem de conhecimento” (Paviani, 2003, p.39) como perspectiva norteadora. Aceitar a existência dessa perspectiva implica abrir-se para a possibilidade de diálogo e fazer a si mesmo novas e boas perguntas (Pogré, 2005). Com elas, perceber os infinitos caminhos que permitem conectar os conhecimentos entre eles de modo a entender os fenômenos, seus determinantes e atuar sobre eles. E isso é o que mais nos aproxima do pensamento complexo de que necessitam as sociedades do século XXI (Morin, 2003; Ramos, 2005).

    Esse parece ser o caminho para examinar a influência da formação universitária na produção do conhecimento e na atuação profissional na área da saúde. Vieira, Baggio e Maraschin (2007) corroboram com essa afirmação ao investigarem as concepções de corpo e das relações entre profissionais e pacientes desenvolvidas pelos acadêmicos de Fisioterapia.

    No estudo, os autores revelam que os alunos tendem a ingressar no curso com concepções ingênuas, românticas, porém com entendimento abrangente e integral do fenômeno saúde e doença e, como decorrência, o estabelecimento de relações solidárias com os pacientes. Ao finalizarem o curso, os acadêmicos tendem a apresentar uma perspectiva fragmentada desse processo, entendendo-o basicamente em termos biológicos e matemáticos e a percepção do relacionamento com os pacientes enquanto “máquina estragada” a ser “consertada” pelo profissional.

    Ainda Vieira, Baggio e Maraschin (2007), diante dos dados apresentados, sugerem revisão e reflexão sobre os fatores que durante a formação influenciam e determinam a mudança de concepção dos alunos. Essa reflexão pode indicar diferentes caminhos para a convergência entre as competências que a formação está desenvolvendo nesses profissionais e as demandas sociais referentes ao campo da saúde.

    A interdisciplinaridade vem sendo apontada na literatura como a proposta mais adequada para essa convergência. De acordo com Paviani (2008, p.59) “a interdisciplinaridade é condição básica para uma formação profissional flexível e adequada para o exercício das profissões, especialmente nos dias de hoje”. Vilela e Mendes (2003, p.525) corroboram com Paviani ao mencionarem que “a complexidade que caracteriza o mundo atual e, particularmente, o cenário de saúde exige o desenvolvimento de programas interdisciplinares de ensino com vistas a alcançar novo tipo de pensamento e a formação do profissional de saúde comprometido com a reconstrução social”.

    Assim, parece haver consenso a respeito da interdisciplinaridade como fundamento da formação e do exercício profissional frente às necessidades sociais e transformações paradigmáticas do século XXI. Diante dessa perspectiva, o presente estudo tem como objetivo examinar a formação atual em relação ao seu potencial para formar profissionais da saúde com capacidade de pensar, agir e dialogar em uma perspectiva interdisciplinar.

    Para atender a esse propósito, a reflexão realizada tomou como base os pressupostos que fundamentam a relação ensino-aprendizagem na formação dos profissionais da saúde, a interdisciplinaridade no contexto da relação ensino-aprendizagem e os possíveis desdobramentos da relação ensino-aprendizagem na graduação em saúde na atuação profissional.

Pressupostos que fundamentam a relação ensino-aprendizagem na formação dos profissionais da saúde

    Paviani (2003, p.20) afirma que “Na Educação, a confusão de paradigmas e a superficialidade na adoção de teorias são calamitosas. Desse modo, a prática do ensino é ainda a da concepção mecanicista (emissor-receptor)”. Kanitz (2005, p.18), menciona que

    Temos um ensino no Brasil voltado para perguntas prontas e definidas por uma razão muito simples: é mais fácil para o aluno e também para o professor. O professor é visto como um sábio, um intelectual, alguém que tem solução para tudo. E, os alunos, por comodismo, querem ter as perguntas feitas, como no vestibular.

    Botomé (1994, p.34) diz que “Hoje, no limiar do século XXI, alguns professores ainda acreditam que sua tarefa é a apresentação de informações e a cobrança de adesão a elas”. As afirmações desses autores, embora sob enfoques diferentes, fazem referência a características da relação ensino-aprendizagem.

    O modelo conceitual que tende ocasionar tais características e orientar as práticas educativas nas ciências, inclusive nas da área da saúde, originou-se no método científico proposto por Bacon, Galileu, Descartes e Newton no século XVII. A partir dos estudos por eles desenvolvidos, especialmente na área da Física, propôs-se a teoria que influenciou o pensamento científico ocidental, a qual se denominou Paradigma Newtoniano-Cartesiano. Segundo Morin (2002, p.188) “um paradigma contém, para todos os discursos que se efetuam sob o seu domínio, os conceitos fundamentais ou as categorias mestras da inteligibilidade, ao mesmo tempo que o tipo de relações lógicas de atração/repulsão (conjunção, disjunção, implicação ou outras) entre estes conceitos ou categorias. Assim, os indivíduos conhecem, pensam e agem segundo os paradigmas inscritos culturalmente neles. Os sistemas de idéias são radicalmente organizados em virtude dos paradigmas”. Em linhas gerais, de acordo com Fontes (2001, p.17), o pensamento cartesiano caracteriza-se por ser

    Positivista, uma vez que não aceita outras formas de conhecimento além do proporcionado pela metodologia científica; é determinista, pois acredita descrever objetivamente os fenômenos naturais, sustentado na relação causa-efeito; é experimentalista, já que se baseia na certeza rigorosa dos fatos da experiência; é racionalista, pois crê no conhecimento seguro obtido por meio da razão instrumentalizada pela matemática; é dualista, já que separa a realidade humana em corpo e mente, em normal e patológico; é reducionista, pois restringe o fenômeno vital às interações físico-químicas do corpo; e é mecanicista, dado que concebe o ser humano como uma complexa máquina.

    Essas características podem ter influenciado o processo ensino-aprendizagem na graduação em saúde quanto à adoção de modelos da abordagem tradicional, especialmente no que se refere à fragmentação e à especialização. Seguindo este modelo, “o conhecimento é imposto pelo professor, sem a manifestação e a opinião do aluno, com conseqüente redução da participação social. O que fica evidente é sempre a figura de um professor com muito conhecimento de sua especialidade e nenhum conhecimento sobre a aprendizagem do aluno” (Kulezycki e Pinto, 2002, p. 75).

    Stedile (2002, p.145), nessa perspectiva, comenta que os professores enfrentam problemas ao ministrarem disciplinas no campo da saúde, tais como:

    A própria concepção de currículo e de disciplina; a precária formação pedagógica associada à percepção de que para ser um bom profissional é suficiente ser um bom técnico; a noção de que a titulação acadêmica do professor substitui a necessidade de preparo pedagógico; a presença ainda observada, em diferentes instituições, do professor dono de determinada disciplina; a incapacidade de transitar por diversas áreas do conhecimento e de desenvolver trabalhos inter e transdisciplinares e, ainda, o fato de os professores não perceberem com clareza que esses são problemas ou dificuldades que precisam ser identificados como condição para sua superação.

    Talvez esses problemas sejam decorrentes de um paradigma que embora fundamente o processo ensino-aprendizagem e tenha apresentado resultados satisfatórios por décadas, torna-se insuficiente para responder às questões que envolvem esse processo contemporaneamente. Silva, Raimundo e Behrens (2002, p. 89) nessa perspectiva, afirmam que “hoje os questionamentos gerados pelas mudanças na história da humanidade não são mais respondidos pelo paradigma anterior e, portanto, necessitam de novos pressupostos, visões e encaminhamentos”. Isso porque, de acordo com Capra (1982 p.14), “vivemos num mundo globalmente interligado, no qual os fenômenos biológicos, psicológicos, sociais e ambientais são todos interdependentes. Para descrever esse mundo apropriadamente, necessitamos de uma perspectiva ecológica que a visão de mundo cartesiana não nos oferece”. Na perspectiva do pensamento complexo (Morin, 2003) a vida, os fatos, os fenômenos são multideterminados e interdependentes e não relações simples de causa-efeito.

    Nesse sentido, “a investigação sobre as informações e como revertê-las em conhecimento contextualizado, globalizado, multidimensional e complexo são características que fazem parte das recomendações pedagógicas para a Educação do século XXI” (Silva, Raimundo e Behrens, 2002, p.98). Frente a essa perspectiva, tende ser consenso que conhecimentos oriundos de diferentes disciplinas se fazem necessários no entendimento dos fenômenos. Entre estes, a relação ensino-aprendizagem.

A interdisciplinaridade no contexto da relação ensino-aprendizagem

    As mudanças que se esboçam no pensamento associadas ao avanço no uso de tecnologias (computador, televisão, multimídia, internet) e à velocidade com que as informações são geradas, atualizadas, disponibilizadas e utilizadas pelas pessoas permitiu a criação de um novo meio. Nessa perspectiva, Botomé (1994, p.15) menciona:

    Existe hoje, não há mais dúvida, um novo meio gerando um outro tipo de cultura. É um meio constituído por um complexo processo de interações entre sistemas de informação, meios de informação, procedimentos e técnicas, comportamentos de pessoas, dirigentes, sistemas, mensagens variadas, acrescidos a diferentes interpretações e versões do que relatam, apresentam, sugerem ou insinuam essas interações.

    Sob essa perspectiva, a universidade “talvez seja a única ou a mais poderosa instituição capaz de educar as pessoas para lidarem melhor com um mundo que se torna cada vez mais complexo, mais instável e mais constantemente alterado pelos meios de informação disponíveis” (ibidem, p.16) E afirma:

    Se a Educação – e a escola como instrumento mais definido como responsável por esse processo – é o que capacita as pessoas a lidarem com a realidade onde vivem sua existência, todas essas transformações no mundo atual reforçam a importância de examinar melhor que capacidades a escola está desenvolvendo. E, mais ainda, como ela pode avançar nas transformações necessárias para integrar no seu fazer os melhores conhecimentos e recursos que a Ciência põe à disposição nesta época que chamamos de contemporânea. (ibidem, p.17).

    Todavia, ao se realizar esse exame das capacidades que a escola está desenvolvendo, é possível observar certa confusão sobre o que deve ser feito e sobre como fazê-lo. Nesse sentido, Paviani e Botomé (1993, p.12) apontam “lacunas no conhecimento sobre como se dá o processo de transformação entre o conhecimento produzido pela Ciência em comportamentos sociais e profissionais”.

    Embora tais lacunas se façam presentes, parece haver consenso em torno da superação de modelos ensino-aprendizagem baseados na autoridade, na rigidez didática, na cópia, na fragmentação do conhecimento, na visão acrítica dos alunos (Paviani e Botomé, 1993, Silva, Raimundo e Behrens, 2002) e a proposição de um paradigma educacional inovador, que reaproxime as partes, inter-relacione múltiplas teorias, que venham dar conta da religação dos saberes e da visão do todo (Silva, Raimundo e Behrens, 2002, Morin, 2001). Desse modo, “a ciência não pretende perder de vista a disciplinaridade, mas vislumbra a possibilidade de um diálogo interdisciplinar que aproxime os saberes específicos, oriundos dos diversos campos do conhecimento, em uma fala compreensível, audível aos diversos interlocutores” (Alves, Brasileiro e Brito, 2004, p. 139).

    Entretanto, a respeito desse paradigma inovador, parece pertinente a proposição de Paviani e Botomé (1993, p.18) quando questionam “como lidar com essa unidade necessária do conhecimento junto com a sua também necessária, porque inerente, multiplicidade de aspectos e parcelas”? Ainda, no que exatamente consiste a “fala compreensível, audível aos diversos interlocutores”, mencionada por Alves, Brasileiro e Brito?

    Assim, a interdisciplinaridade tende ser o caminho na busca de uma relação ensino-aprendizagem em consonância com as exigências/características contemporâneas. Entretanto, parece ainda não existir suficiente clareza a respeito do que ela envolve, como se organiza/é organizada e exatamente no que consiste pensar, agir e dialogar em uma perspectiva interdisciplinar. De acordo com Alves, Brasileiro e Brito (2004, p.139) “Muito já se disse acerca da interdisciplinaridade. Entretanto, ainda não foi possível formalizar um conceito capaz de unir epistemólogos, filósofos e educadores em torno de um consenso”.

    A própria literatura demonstra essa falta de clareza. Há artigos que se referem à interdisciplinaridade enquanto "disfunções conceituais e enganos acadêmicos" (Paviani e Botomé, 1993). Outros, enquanto "um conceito em construção" (Alves, Brasileiro e Brito, 2004) e "(des) caminho de uma experiência em construção" (Almeida, Gerhardt, Miguel et al, 2004). Outros ainda trazem “elementos para um debate sobre a interdisciplinaridade” (Herculano, 2000), revelando que:

    Talvez ainda não exista clareza suficiente sobre o que integrar, sobre como deva ser esse processo de integração de conhecimentos ou mesmo sobre onde e quando essa integração pode ou deve ser feita. Multiplicar debates ou ampliar terminologia pode ser apenas um recurso verbal e encobrir os mais importantes aspectos a examinar na solução dos problemas que existem com relação aos critérios e procedimentos para organização do conhecimento, tanto no contexto de sua produção como no de seu uso (Paviani e Botomé, 1993, p.23).

    Frente a esse cenário de incertezas e indefinições, parece pertinente questionar como os profissionais estão produzindo e organizando os conhecimentos veiculados na área da saúde e que uso eles estão fazendo desses conhecimentos. Que implicações para a convivência social decorrem dessa produção, organização e uso? Como o processo ensino-aprendizagem pode desenvolver nos profissionais a capacidade de produzirem conhecimentos e os utilizarem, de pensarem, agirem e dialogarem em uma perspectiva interdisciplinar quando tende haver insuficiente clareza sobre o que isso seja ou requer?

    Se o processo ensino-aprendizagem entendido como transmissão fragmentada de conteúdos não está em consonância com as exigências/características contemporâneas, o processo ensino-aprendizagem baseado na interdisciplinaridade parece igualmente ainda não estar, devido à insuficiente clareza conceitual, epistemológica e metodológica relatada na literatura e às incertezas em termos de operacionalização da proposta interdisciplinar na graduação. Nesse sentido, Gondim (2002, p.300) relata que

    a ênfase numa formação generalista e a ampliação das possibilidades de experiência prática durante o curso superior são avaliadas como alternativas para atender a exigência de um perfil multiprofissional e proporcionar a maturidade pessoal e a identidade profissional necessárias para agir em situação de imprevisibilidade, realidade a que estão sujeitas as organizações atuais. A dúvida é como isso está sendo concretizado na formação universitária.

    Frente a esse cenário de dúvidas e incertezas, parece importante o exame da relação ensino-aprendizagem na graduação na área da saúde, da forma como se organiza e se desenvolve atualmente, e seus possíveis desdobramentos na atuação profissional.

Possíveis desdobramentos da relação ensino-aprendizagem na graduação em saúde na atuação profissional

    Vieira, Baggio e Maraschin (2007) mencionam que as concepções orientadoras da formação do fisioterapeuta parecem coincidir com as mencionadas na literatura sobre a formação dos profissionais da saúde de uma forma geral, demonstrando certa tendência à regularidade. As concepções construídas pelos acadêmicos revelam tendências tais como:

    Desse modo, a formação do fisioterapeuta (e dos profissionais da saúde) tende orientar-se pela idéia de fragmentação do indivíduo (corpo/mente, saúde/doença, cura/prevenção) e do conhecimento (disciplinas delimitadas em seus conteúdos sem o estabelecimento de inter-relações, objetivo/subjetivo, tecnologia/indivíduo). Nessa perspectiva, durante a formação, os conhecimentos sobre o indivíduo são transmitidos em termos de estrutura anatomofisiológica e sobre esses conhecimentos são desenvolvidas habilidades técnicas de reconhecimento, manutenção e recuperação de alterações dessa estrutura (Centurião, 1996, p. 9). Partindo de uma formação orientada por concepções dessa natureza, o profissional tende conceber o indivíduo enquanto “máquina estragada” a ser “consertada” pelo profissional.

    Como conseqüência desse modelo, observa-se tendência à construção de relações entre profissional e paciente distantes, com pouco ou nenhum contato entre eles, baseado na dependência de exames ou procedimentos terapêuticos sofisticados e muitas vezes, desnecessários, desconsiderando a complexidade de fatores sociais, culturais, psicológicos, econômicos que envolvem a saúde do indivíduo (Vieira, Baggio e Maraschin 2007; Gava, 2000).

    A partir disso, “rever o processo de formação profissional parece ser um dos caminhos para a humanização das ciências médicas”. (Vieira, Baggio e Maraschin, 2007, p.47). Stedile e Friendlander (2003, p.792) corroboram com essa perspectiva quando mencionam que o modelo tradicional “professor-centrado” no ensino em saúde “parece insuficiente para a formação de profissionais que necessitam muito mais do que reproduzir técnicas e conhecimentos”. Tende ser necessário deslocar o foco principal do ensino para a aprendizagem. Entretanto, esse deslocamento não constitui tarefa fácil porque exige uma alteração substancial na lógica tradicional de conduzir a aprendizagem, especialmente na área da saúde, que utiliza a transmissão vertical (do professor para o aluno) de um grande número de informações como metodologia básica (Stedile, 2002).

    Parece inegável, assim, a necessidade de superar esse modelo dada a sua influência no exercício profissional e as mudanças quanto ao entendimento dos fenômenos contemporaneamente. Nicida (2004, p.16) propõe que a formação profissional em saúde precisa transcender “a transmissão de técnicas para se tornar uma possibilidade de desenvolvimento da humanidade dos envolvidos, construindo um profissional capaz de uma atuação correta, eficaz e afetiva, fundamentada pelo conhecimento e pela ética”. Se o desejável acerca do comportamento do profissional da saúde tende estar esclarecido, a mesma clareza, contudo, parece não estar evidente sobre o que é necessário para construí-lo.

    Isso porque ainda restam dúvidas sobre a própria definição de saúde, como deve ser entendida e que fatores a determinam e influenciam (Stedile, 2002). Segre e Ferraz (1997) e Scliar (2001) ressaltam a discussão ainda vigente sobre o conceito de saúde proposto pela OMS, centrando suas reflexões em termos da utopia, excessiva abrangência e insuficiente clareza desse conceito, tornando-o “pouco prático e pouco operacional” (Scliar, 2001, p 90.). Segre e Ferraz (1997, p.539) mencionam que “trata-se de definição irreal por que, aludindo ao ‘perfeito bem-estar’, coloca uma utopia. O que é ‘perfeito bem-estar’? É por acaso possível caracterizar-se a ‘perfeição’?” Deliberato (2002, p.3) nessa mesma perspectiva comenta que “a definição do próprio termo saúde não é uníssona; se não é possível conceituar saúde, como fazer para conceituar prevenção em saúde”? Como desenvolver nos profissionais uma possibilidade de atuação diferente da tradicional tendência curativa se falta clareza sobre o que seja saúde, prevenção, e prevenção em saúde?

    Ainda, é possível definir um conceito de saúde comum a todos os indivíduos? Osório e Enders (2001, p.13) em estudo sobre as percepções de um grupo de adolescentes sobre saúde, observaram que, para aqueles, esta “é sinônimo de jovialidade e energia, representada pela alegria, despreocupação, liberdade, felicidade e disposição para correr e pular”. Será que os idosos percebem a saúde de forma semelhante aos adolescentes? E quanto aos deficientes físicos? E os doentes mentais, os diabéticos, os hipertensos, os obesos, os homens, as mulheres, as crianças? Será que para cada um deles os fatores que influenciam e determinam a saúde são semelhantes? Em que aspectos? Há diferenças? Quais? As percepções de saúde dos diferentes grupos interferem/deveriam interferir na formação e nas ações dos profissionais?

    Assim, a compreensão da complexidade e da totalidade dos fenômenos, de sua interdependência, a prevenção, a ética, as preocupações ambientais, enquanto características/exigências contemporâneas tendem ampliar o entendimento sobre a saúde. Para Garcia et al (2007, p.147) ela “apresenta-se como campo interdisciplinar com alta complexidade, pois requer conhecimentos e práticas de diferentes áreas: ambientais, clínicas, epidemiológicas, comportamentais, sociais e culturais”.

    Se for considerado conceito de saúde dessa natureza, então como o profissional pode, com sua atuação e conhecimentos, intervir de modo a contribuir com a assistência integral prevista pelo Sistema de Saúde do Brasil? O que esse profissional pode fazer quanto ao atendimento das necessidades dos idosos nas unidades de básicas de saúde? Que outras necessidades, além das que os idosos referem, o profissional é capaz de identificar e intervir? E quanto às necessidades dos hipertensos, dos diabéticos, dos pacientes com câncer, dos deficientes, dos obesos, dos doentes mentais, das crianças, dos homens, das mulheres? No que e como os profissionais da saúde podem interferir a partir de sua atuação? Com que finalidades?

    A pertinência desses questionamentos pode ser revelada diante do que menciona Baduy e Oliveira (2001, sem paginação), sobre a relação entre o Sistema Único de Saúde (SUS) e profissionais da saúde:

    O Sistema Único de Saúde tem apresentado resultados positivos nos propósitos de universalização, descentralização e ampliação de cobertura dos serviços de saúde. Avança com mais dificuldade na garantia da qualidade, eqüidade e na resolutividade da assistência ambulatorial e hospitalar. Ainda é um dos maiores desafios dispor de profissionais de saúde que efetivem a disseminação em todas as regiões do país da prestação de cuidados integrais de saúde.

    Esse desafio está relacionado ao processo de formação dos profissionais da saúde. Feuerwerker (2001) menciona que a inadequação desse processo está se tornando um obstáculo poderoso à reorientação do modelo de saúde centrado no hospital e no consumo abusivo da tecnologia, à conquista de mais qualidade e humanização da atenção, o que tem levado ao posicionamento a favor das mudanças na formação.

    Frente a esse posicionamento, à demanda crescente por profissionais capazes de atuar com qualidade, resolutividade, em trabalho multiprofissional/interdisciplinar e à luz de um conceito de saúde que permite considerar a influência de fatores como condições de trabalho, lazer, crenças religiosas, condição econômica, raça, país de origem, políticas públicas de atendimento dos diferentes segmentos, grupos e faixas etárias da população, parece importante o reconhecimento, pelo profissional da saúde, da interferência desses fatores nas condições de vida dos indivíduos que pretende abranger com sua atuação. E frente a esse reconhecimento questionar, em termos da atuação, o que pode, deve, é capaz de fazer e como deve agir a respeito do que não pode/ não deve/não é capaz de fazer sobre a saúde das pessoas.

    Assim, o que é necessário desenvolver no profissional da saúde, durante sua formação, para que ele desenvolva tais competências e seja capaz de agir, pensar, dialogar em uma perspectiva interdisciplinar? Sobre essa perspectiva, Gomes e Deslandes (1994, p.111) mencionam que

    Para que se avance na questão da interdisciplinaridade, é importante lembrarmos que essa não anula a disciplinaridade. Assim como não significa a justaposição de saberes, também não anula a especificidade de cada campo de saber. Ela, antes de tudo, implica numa consciência dos limites e das potencialidades de cada campo de saber para que possa haver uma abertura em direção de um fazer coletivo. Um fazer interdisciplinar, por outro lado, pode envolver recortes no conjunto do conhecimento. O problema é como recortar e para que recortar. Um recorte deve ser sempre visto como tal e não pode substituir o todo.

    Parece inegável a necessidade de uma formação profissional em saúde que possibilite ao profissional desenvolver esse fazer. O desafio, contudo, talvez resida em descobrir no que consiste e implica essa “consciência dos limites e potencialidades de cada campo do saber para que possa haver uma abertura em direção de um fazer coletivo”. Também no concomitante esclarecimento sobre a operacionalização dessa consciência em termos da relação ensino-aprendizagem durante a formação, considerando-se o contexto de insuficiente clareza sobre os conceitos de saúde e de interdisciplinaridade.

Considerações finais

    A construção de um panorama contemporâneo da relação ensino-aprendizagem na formação universitária dos profissionais da saúde pode contribuir para que essa relação seja pautada pelo diálogo, pelo respeito, comprometida com a ética nas relações humanas. Ainda, pode revelar que o entendimento da relação profissional-paciente enquanto relação “mecânica” apresenta dificuldades em responder aos apelos crescentes, veiculados diariamente nos meios de comunicação, por uma convivência social pautada pela ética, pelo respeito ao outro, com vistas à redução/eliminação da violência em suas diversas formas.

    É muito provável que a saúde coletiva no país continue padecendo das mesmas mazelas se a relação ensino aprendizagem na formação dos profissionais da saúde, permanecer fundamentada em concepção demasiado específica e fragmentada de saúde e de educação. O entendimento da saúde exclusivamente enquanto ausência de doença, apenas do ponto de vista biológico e a atuação profissional vista apenas do ponto de vista curativo e de reabilitação, desconsiderando a complexidade de fatores que determinam e influenciam o processo saúde e doença na contemporaneidade, parece necessitar ser superada. Se por um lado parece haver consenso a respeito da necessidade de um olhar integral sobre a saúde dos indivíduos, tanto na formação quanto na atuação profissional, de outro, restam dúvidas sobre o que seja e como deve ser organizado esse olhar integral.

    Do ponto de vista pedagógico, a literatura reforça a necessidade de superação do modelo tradicional de relação ensino-aprendizagem na área da saúde. Centrado no professor e baseado na cópia, reprodução e memorização de forma mecânica, irrefletida, sem preocupação nenhuma com os aspectos éticos da convivência social e da atuação profissional ou a necessidade de uma visão crítica da relação entre o que dizem os livros e o que acontece na realidade, esse modelo se revela insuficiente frente às demandas sociais contemporâneas.

    Dificilmente haverá transformação das condições de saúde se os profissionais valerem-se do "princípio da autoridade", dado pelo seu título, ou de sua habilidade de reproduzir o que dizem os livros. Se a mudança de hábitos de saúde das pessoas ocorresse apenas em função desses aspectos, não haveria mais pessoas fumando no Brasil, dadas as inúmeras campanhas antitabagismo já desenvolvidas pelos profissionais da saúde no país, por exemplo.

    Se há o desejo de formar profissionais da saúde preocupados com as conseqüências de suas ações na vida das outras pessoas (sejam elas idosos, jovens, adultos, crianças, diabéticos...), com uma convivência social mais ética e solidária, capazes de uma atuação consonante com a compreensão de saúde do país, há que se esclarecer melhor que entendimento da relação ensino- aprendizagem a formação está adotando e que competências profissionais estão sendo desenvolvidas. Se a interdisciplinaridade constitui o caminho para a efetivação desse desejo, um repensar sobre o que se compreende e se preconiza como formação e atuação interdisciplinar nessa área parece, no mínimo, pertinente.

Referências bibliográficas

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