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Construindo uma nova realidade: passando de ‘porcos espinhos’ 

a construtores/gestores de uma nova cultura organizacional

Construyendo una nueva realidad: pasando de ser ‘puerco espines’ a constructores/gestores de una cultura organizacional

 

*Pedagoga. Especialista em Gestão Educacional. Mestranda em Educação, UFSM

**Doutor em Educação e professor do Programa de Pós-Graduação, UFSM

***Doutoranda em Educação, UFSM. Prof. da Universidade de Cruz Alta, UNICRUZ

****Especialista em Psicopedagogia. Oficial do Exercito Brasileiro

Escola de Aperfeiçoamento de Sargentos das Armas, EASA

(Brasil)

Nilta de Fátima Hundertmarck Graciolli*

niltinhagr@hotmail.com

Celso Ilgo Henz**

cihenz@terra.com.br

Vaneza Cauduro Peranzoni***

vaneza.cauduro@terra.com.br

Lincoln Nogueira Andrade****

mormai66@hotmail.com

 

 

 

 

Resumo

          Nessa pesquisa buscou-se investigar de que maneira as histórias infantis podem, ou não, contribuir na aprendizagem de uma cultura organizacional democrática e humanizadora no ambiente escolar. Realizou-se este estudo em uma escola de ensino fundamental, da rede municipal de ensino de SM/RS, localizada na Zona Rural no Distrito de Boca do Monte, atendendo uma turma do 3º ano com dezesseis alunos. Para isso foram utilizados alguns instrumentos: a observação participante, entrevistas, questionários e atividades a partir de histórias infantis trabalhadas. A partir disso se fez uma reflexão a respeito da transposição de uma cultura da apatia para uma cultura participativa, onde “porcos espinhos” passam a ser construtores/*gestores de uma nova cultura organizacional. No entanto, a participação não acontece automaticamente; é necessário que o educando se sinta sujeito, seja integrante do grupo, das decisões, seja responsável e, com isso, vão se criando espaços para o exercício da autonomia, que é resultado do envolvimento, comprometimento, da vontade de ver o grupo, o trabalho, a organização escolar crescer e se tornar um espaço para a construção de uma cultura organizacional humanizadora/democrática.

          Unitermos: Histórias infantis. Cultura organizacional. Democracia.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Año 17 - Nº 168 - Mayo de 2012. http://www.efdeportes.com/

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Pesquisa desenvolvida

    Construir um ambiente democrático, humanizador se constitui em um desafio para a educação, uma vez que as histórias infantis podem ser subsídios para a libertação, despertando nos educadores e educandos leitores a compreensão de que a sua participação é fundamental nas decisões e discussões, a fim de que contribuam para a construção de uma cultura organizacional democrática na escola. Assim, aponta-se as histórias infantis como recursos preciosos para proporcionar essas vivências democráticas-humanizadoras. Observamos que os educandos que se consideravam "porcos espinhos", modificaram muitas atitudes, melhorando a (con)vivência e a participação. No decorrer do trabalho, as famílias, educadores, equipe diretiva começaram a participar, ajudando na confecção de recursos e na montagem de uma biblioteca. Isso sinaliza que as possibilidades para a construção de culturas democrático-humanizadoras se ampliam quando a comunidade escolar se une, cada um com a sua história de vida, construindo juntos, a história coletiva.

    Era uma vez uma menina que cursou a 5ª série em uma escola pequena, situada na zona rural, pertinho de sua casa e teve muitas experiência positivas. Sentia-se sujeito da história dessa escola porque ajudava a organizar ambientes, atividades e as relações estabelecidas entre os colegas e com a educadora eram de afetividade, carinho, dedicação e participação.

    Esta Escola que era um lugar para ser feliz se chamava Escola de Ensino Fundamental João Hundertmarck, situada na localidade do Passo da Ferreira- 7º Distrito do Município de Santa Maria, na região oeste do Município que se localiza na região central do Estado do Rio Grande do Sul. Embora essa escola seja até hoje pequena com cinco salas de aula, uma secretária, uma biblioteca improvisada, uma pequena cozinha foi/é/será um lugar que esta menina/mulher quer contribuir para a construção de uma cultura organizacional democrática a partir de vivências com as histórias infantis democráticas e humanizadoras.

    Por acreditar que as mudanças ocorrem a partir do ambiente próximo, a menina/mulher escolheu esta escola que muito contribuiu na construção da sua cultura para trabalhar durante a pesquisa de campo, a fim de colher dados para a sua monografia de Especialização em Gestão, e também tinha o intuito de contribuir para a reflexão, para a busca, caminhada rumo a uma nova cultura organizacional democrática e humanizadora dessa escola que contribuiu muito para a construção do seu conhecimento e de sua história de vida.

    Sendo assim, a parte prática da pesquisa iniciou, com 13 alunos. O trabalho foi interrompido durante alguns meses, dando continuidade no decorrer do outro, onde continuaram (pesquisadora e orientador) o trabalho com a mesma turma que estava no 4º ano, com mais 3 crianças, totalizando 16 alunos. Começamos com observações para investigar o contexto e, a partir dele, conhecer que histórias eram trabalhadas, por quem eram trabalhadas, quais as dinâmicas utilizadas. Nesse período, a pesquisadora conversou com alunos, professores, supervisora escolar, diretora, ouviu sugestões, participou das aulas para observar, analisar e discutir se a proposta vinha ao encontro das necessidades e realidade do grupo escolar.

    O início do projeto foi desafiador, uma vez que a turma era muito agressiva, se comparavam entre eles a "porquinhos-espinhos" porque diziam que ao se aproximarem soltavam espinhos. Nessa turma, além da agressividade estar presente na maioria dos integrantes, uma menina que entrou na turma estava desmotivada, deslocada da turma, sendo que se percebia que seus interesses não tinham nada a ver com os dos demais, talvez por ser repetente. Outro caso que se destacou foi o de um menino que parecia muito resistente quanto à participação nos dois primeiros encontros. Para nossa surpresa, tanto ele como a menina, a partir do terceiro encontro, se tornaram lideranças durante a realização das histórias ou atividades.

    No primeiro encontro, os alunos conheceram a história infantil publicada “Dona Lagarta Pipoca” Graciolli (1999), de autoria da pesquisadora. A história foi contada usando fantoches com lixas colocadas em cima de um pedaço de pano que ficou no centro da rodinha organizada por eles; logo após os alunos espontaneamente iam se levantando do círculo e recontando a história. Essa história nos levou a refletir sobre o papel de cada educador, de cada ser humano na “floresta” ou escola como sujeito e que, deve contribuir para a mudança das suas culturas, para que outras pessoas percebam que um novo mundo, com uma nova cultura, é possível; mais ainda: não somos os donos das verdades, mas aprendentes de uma cultura que vai se construindo a partir dos saberes acumulados e renovados, através de ações pessoais e da coletividade. Nesse sentido, Alencar (2001, p 111) diz que

    [...] a professora não ensina, estimula a aprender. E só consegue isso se incorporar novos saberes ao já acumulado. [...] Ler o mundo, escrever sua própria palavra, e contar o que, de fato, conta para a vida, não são aprendizagens fáceis: exigem explicadora apaixonadas pela inteligência humana e com o sentimento do mundo.

    Para que ocorresse o estímulo, o incentivo, o vislumbramento da possibilidade de todos e todas se tornarem autores de suas histórias infantis e histórias de vida, no segundo encontro trabalhamos uma história com os mesmos personagens do livro Dona Lagarta Pipoca, acrescentando outros personagens novos. Essa história também é de autoria da pesquisadora, só que ainda não foi publicada.

    A intenção ao levar uma história não publicada era problematizar algumas questões com os educandos. Todas as histórias que criamos se transformam em livros? Por que é tão caro publicar um livro? Quem de nós é um escritor? No decorrer da discussão as crianças perceberam que todos somos escritores; o que diferencia é que alguns conseguem publicar e outros não, em função das questões econômicas, falta de oportunidades, de esclarecimento e incentivo.

    O ato de contar histórias é tão empolgante e gratificante que contagia tanto a quem conta como a quem ouve. Após a interrupção do ano letivo, voltamos no início do outro ano para continuar o projeto na escola investigada e ficamos fascinados com aplausos; foi interessante acompanhar as referências que os alunos que já participavam das aulas davam aos alunos novos, demonstrando interesse, vontade de participar do projeto.

    Na realidade, não era só a pesquisadora que recebia a manifestação, mas também as histórias infantis que se tornavam uma promessa de continuarem presentes na vida desses alunos. As manifestações de receptividade às histórias infantis nos envolveram, pesquisadores/educadora/educandos, de maneira comovente, onde cada oportunidade de encontro para contar e ouvir história se tornava uma expectativa, pois

    a força da história é tamanha que narrador e ouvintes caminham juntos na trilha do enredo e ocorre uma vibração recíproca de sensibilidades, a ponto de diluir-se o ambiente real ante a magia da palavra que comove e eleva. A ação se desenvolve e nós participamos dela, ficando magicamente envolvidos com os personagens, mas sem perder o senso crítico que é estimulado pelos enredos (COELHO, 1997, p.11).

    A força da história é tamanha e tão significativa que ao sugerirmos a eles uma retrospectiva do que havíamos feito no ano anterior, nos surpreendemos porque os alunos lembravam detalhadamente as histórias que foram contadas e as atividades que foram realizadas a partir das histórias. Isso nos levou a refletir sobre a seguinte questão: por que os alunos não lembram com tanto carinho das outras aulas e atividades?

    Isso nos motivava a continuar trabalhando histórias que viessem a contribuir com reflexões e aspectos que pudessem ser vivenciados e contribuíssem para a modificação da cultura organizacional daquela escola, sendo este o principal objetivo do trabalho.

    Procurando dar continuidade a esta caminhada, trabalhamos a história infantil: O Reino das Borboletas Brancas (PEREIRA, 2007). Com essa história as crianças foram descobrindo e relendo a realidade na perspectiva de transformarmos nossa sociedade, de (re)criarmos nossa cultura e novas culturas, pois era culturalmente repassado para as borboletinhas que elas deveriam nascer, crescer, viver no canteiro de sua cor, sem se misturar com outras culturas.

    É possível, a partir desta história, levantar hipóteses, pensar em novas alternativas, ver que existem novos mundos, novas visões e experiências, levando a perceber que as mudanças começam pelo nosso “canteiro”, local onde vivemos: família, sala de aula, escola. Consequentemente, nossas atitudes se tornarão exemplos positivos e viáveis para que a sociedade se insira neste projeto.

    Uma amostra disso pode ser percebida quando, ao construirmos fantoches com litrões de refrigerantes para contar e recontar histórias, observamos crianças de outras turmas espiando através das básculas com olhares cheios de intenções de participar da aula. Recebíamos visitas destas crianças e de professores que trabalhavam com outras turmas, onde os alunos faziam questão de contarem tudo o que fazíamos, inclusive falavam da rodinha da novidade, onde cada um contava uma coisa boa que fez durante a semana para melhorar o trabalho em grupo; contavam algo que aconteceu durante a semana que se assemelhava com a história trabalhada anteriormente.

    É importante salientar que não trabalhamos as histórias pensando na velha pergunta ao final da história: qual a mensagem que a história transmitiu? Mais importante que ouvir uma história para devolver uma resposta é experimentá-la, interiorizá-la e aguçar a participação, a possibilidade de dizer a sua palavra como direito e não como imposição, manifestando a sua visão de mundo a partir da história. Para isso usamos o diálogo, o ato de contar, criar histórias e recursos lúdicos produzidos com materiais recicláveis ou mesmo brinquedos que muitas vezes foram produzidos pelos próprios alunos antes ou após conhecerem a história. O fato de os personagens serem construídos por eles possibilita maior significação e pré-disposição para interiorizar a história. Também a possibilidade de contar, recontar e criar histórias aproveitando os mesmos recursos que os pesquisadores utilizaram, tornava esse trabalho prazeroso e não imposto.

    Surgiram momentos em que os alunos fizeram novas propostas, como por exemplo, criar outras histórias, outros personagens, inclusive para montar o presépio de Natal, adaptando personagens confeccionados anteriormente com “garrafas pet”. Alguns educandos-leitores espontaneamente trouxeram revistas com novas idéias, criaram em casa, com a família, novas sugestões de personagens e histórias, estabelecendo uma troca recíproca entre quem ensina e também aprende. Estas trocas nos possibilitam compreender que...

    [...] ensinar não é transferir a inteligência do objeto ao educando, mas instigá-lo no sentido de que, como sujeito cognoscente, se torne capaz de inteligir e comunicar o inteligido. É neste sentido que se impõe a mim escutar o educando em suas dúvidas, em seus receios, em sua incompetência provisória. E ao escutá-lo, aprendo a falar com ele (FREIRE, 1998, p. 134).

    Desse modo, a escuta por parte da família e da educadora se transforma em ajuda para que a incompetência provisória seja ponto de partida para a pesquisa, a busca, a autonomia, a partilha, características necessárias para a construção de uma nova cultura organizacional, onde estejam presentes a humana docência (ARROYO, 2002) que escuta, orienta, instiga e aprende, construindo com o educando novos conhecimentos e novas culturas.

    Por isso, trabalhando a história “A cidade que mudou de nome” (CONCIEL, 2005), procuramos vivenciar a história, apontando possíveis alternativas de como efetivar mudanças em uma cidade onde vivem pessoas rancorosas, raivosas, mal-humoradas, acomodadas... transformá-la em um lugar onde as pessoas sejam comprometidas com a cultura do amor, da igualdade, da participação. “A cidade que mudou de nome” conta como as pessoas da Cidade de Trovoada influenciavam com o mau humor, egoísmo para que a cidade se tornasse triste, e, conseqüentemente os moradores também. Até que certo dia, contagiados pelo sentimento da amizade, ficaram irradiados de coisas boas e reconstruíram a cidade, tornando-a um lugar muito agradável para viver.

    Para proporcionar maior envolvimento entre os leitores e a história, reaproveitamos “litrões pet” de refrigerante na confecção dos personagens pelos educandos. No entanto, não falamos na reciclagem, no meio ambiente, mas eles puderam vivenciar uma das maneiras de proteger o planeta, reaproveitando recursos. Após a história, foi sugerido que fizéssemos novos personagens e novas histórias que tratassem sobre a importância de sermos amigos, trabalharmos em equipe, cuidarmos de nossas ações para não prejudicarmos a nós mesmos e aos outros, o que pode ser percebido em alguns resumos de suas produções (grupos com três alunos).

    Foram criadas cinco histórias com temas livres, sem que fosse solicitado que as histórias deveriam ter presentes valores, atitudes ou questões morais. Mas o interessante é que em todas as histórias apareceram as problematizações levantadas nas histórias anteriores, encaminhando possíveis soluções. A autonomia, a participação, a desenvoltura, a improvisação, o envolvimento, o entusiasmo para apresentar as histórias permearam estes momentos, possibilitando a todos participarem espontaneamente.

    Já a história “Romeu e Julieta” (ROCHA, 2000) foi contada com caixas de ovos, litrões, fios de nylon, papéis coloridos e cabides. Esta história fala de um jardim em que as borboletas viviam apenas em seu canteiro, conforme suas cores: Borboletas brancas só podiam viver no canteiro das flores brancas, as borboletas pretas no canteiro das flores pretas, borboletas vermelhas no canteiro das flores vermelhas, borboletas amarelas no canteiro das flores amarelas, borboletas azuis no canteiro das flores azuis. Porém, certo dia nasce uma borboleta diferente que busca novos canteiros, novas convivências e ajuda as borboletas a entenderem que viver com as diferenças enriquece cada um.

    Após a história, foi problematizada a importância da valorização e do respeito à cultura de cada canteiro, de cada ser, sendo que a felicidade acontece nas interações, na coletividade, nas trocas. Para conhecer o que cada um prioriza e sonha para construir uma cultura democrática e humanizadora foi proposta a dinâmica da flor, onde cada aluno recebeu uma pétala e deveria escrever dentro dela uma palavra que representasse para ele alguma coisa fundamental para ser feliz.

    Os educandos-leitores foram colando suas pétalas no quadro, expressando seus sentimentos em relação à palavra e ao significado para a sua vida, formando uma flor. Depois, cada um desprendeu a sua pétala, dando-a de presente para um integrante do grupo. Cada educando falou sobre a palavra (amor, alegria, justiça, solidariedade, honestidade, tolerância, felicidade, amizade, participação) que ganhou de presente e o que sentiu ao saber que o colega desejava algo maravilhoso para sua vida. Esta dinâmica possibilitou refletir sobre a alegria de se ganhar um presente e da dificuldade que o ser humano tem de se desprender do que construiu para partilhar com o outro, mesmo sendo alguém próximo, integrante de um mesmo grupo, de uma mesma caminhada.

    As palavras se repetiram como amor, esperança, amizade e alguns educandos começaram a discutir, dizendo que o colega havia copiado. Então, problematizamos essa situação: Será que apenas algumas pessoas sonham em ser felizes? Só uma pessoa no mundo pode sonhar em ter amor? Em ter esperança? Querer viver na amizade? Os educandos dialogaram, refletiram, argumentaram que alguns sonhos nós temos em comum, outros são individuais. Assim, a partir das construções pessoais é que se abre a possibilidade das construções coletivas, através do compartilhamento dos sonhos, expectativas, ações e respeito à palavra, à idéia do outro.

    No momento de colar as pétalas, nem todas ficaram ligadas ao centro da flor porque não havia espaço e, novamente surgiu a “concorrência”, a discussão, reclamações pelos alunos que ficaram com suas pétalas mais distantes. Então, foi levantado outro questionamento: O que faremos para todos ocuparem o seu espaço? Sempre seremos os primeiros? Sempre seremos os últimos? O que interfere a questão de estar mais próximo ao centro? Qual era o objetivo do trabalho? Todas as flores e pétalas são iguais?

    Buscando trabalhar estas questões foi proposta a dramatização do texto “O Jardim Encantado”, e foi surpreendente observar as mudanças nas relações entre eles, uma vez que esta atividade exigia aproximação afetiva, trocas de gestos, olhares, palavras, já que se julgavam “porcos espinhos”. Primeiramente cada aluno escolheu uma das cores: azul, verde, lilás, amarelo, vermelho... para construir uma flor com dobradura. Todas as pessoas ficaram em pé e em círculo. A pesquisadora foi contando a história e sempre que chegava a ação das flores, os educandos realizavam essa ação com todos os participantes. Mesmo os dois alunos mais agressivos e menos participativos se propuseram a participar e se envolver na dinâmica, criando um momento muito especial, equilibrado, com harmonia e afetividade, vivenciando momentos de coletividade, participação, cooperação e humanização.

    Já na história infantil “Lúcia-Já-Vou Indo” (PENTEADO, 1999), que aborda a iniciativa do ato voluntário de cooperar quando escreve a história de uma lesma chamada Lúcia que, por ser muito lenta, chegava sempre atrasada nas festas. Esta atitude pode despertar no sujeito o respeito às diferenças, a reciprocidade, a solidariedade, a coletividade. Nesse sentido, para que uma educação seja libertadora e democrática se faz necessário possibilitar o uso da palavra, da participação, a capacidade de saber ouvir o outro, de defender suas idéias e também respeitar diferentes pontos de vista.

    Perceber a importância do outro, e até mesmo ajudá-lo em suas limitações, nos conduz ao reconhecimento de que somos seres inacabados e nos fortalecemos, nos construímos, nos constituímos no entrelaçamento de nossa linguagem, emoções e, conseqüentemente, interagimos para a transformação, construção da nossa cultura pessoal e da cultura coletiva.

    Culturalmente, falamos muito, ouvimos e observamos pouco; somos pouquíssimo empáticos e muito centralizadores, querendo sempre que nossas idéias sejam seguidas. Porém, não é fácil modificar nossa prática, sendo necessária ação-reflexão-ação permanentemente. Diante da crescente busca de significado para as coisas e da reflexão de que valores devem ou não permanecer no nosso cotidiano, surge a necessidade de saber ler sabiamente, ou seja, ler o que está escrito nas entrelinhas. Isso nos dará a capacidade de nos modificarmos, passando de receptores para construtores, produtores, autores não somente de textos, histórias, mas da nossa própria história. Mas é preciso começarmos a despertar desde cedo para o gosto salutar da leitura e, da mesma forma, oportunizar espaços para a participação .

    Como educadores, observamos que a nossa história como leitores depende do recebimento, ou não, de incentivo, das oportunidades vivenciadas, do contato com os livros; de que livros nos foram oferecidos e a maneira como conhecemos os mesmos. Da mesma forma, a maneira como vivemos, dialógica ou impositivamente, reflete na nossa participação ou passividade na construção da organização do ambiente onde estamos inseridos.

    Nesse sentido, é de suma importância que sejamos sujeitos históricos de busca e de curiosidade, de inquietações sobre que recursos ditos “lúdicos” estão sendo trabalhados com os educandos, de que maneira trabalhamos com os nossos alunos e como organizamos o ambiente escolar. Pouco resolve o educador contar uma história falando de participação, libertação, união, solidariedade, se no próprio ambiente escolar ainda se reforça a cultura de que só se aprende escutando, olhando a nuca do colega, um sentado atrás do outro sem poder partilhar idéias, materiais, sonhos... histórias...

    A leitura do olhar, do gesto, da expressão facial, corporal, tão esquecidos por nós adultos é fundamental para irmos ao encontro do outro, (educandos, colegas, pais...), sendo empáticos, compreendendo, valorizando a cultura que cada um traz consigo e que contribui como ponto de partida, de apoio, de construção do conhecimento e da organização escolar, pois é com as diferenças que iremos tecer, constituir, o grupo no qual vivemos, convivemos e aprendemos.

    É imprescindível nos desafiarmos mutuamente para ajudar na construção de um mundo mais solidário, humano, onde cada um se perceba como sujeito. Portanto, para acontecer esta construção necessitamos entender que o ser humano primeiro fala, age, depois escreve, sendo a linguagem indispensável para que o ser humano interaja no mundo e com o mundo, seja ela verbal ou não-verbal.

    Nos velhos tempos, as crianças conviviam, aprendiam com os pais, avós que se assentavam ao redor do fogão, nos banquinhos e dedicavam tempo para conversar, contar causos, histórias para as crianças. Normalmente as histórias eram incorporadas à cultura local e as crianças pediam repetidas vezes para contar de novo. Nos dias atuais, devido à correria pela sobrevivência e até distorção de valores, a família se encontra cada vez menos, e a escola pode ir propiciando espaços para o diálogo, para a manifestação da sua palavra, mas também da escuta, da invenção, da criação de histórias; momentos em que é permitida uma maior aproximação entre ouvinte e contador. Nessas horas, pode-se estimular a fala, manifestar pensamentos, idéias, sentimentos, possibilidades; despertar no universo infantil sensibilidades, esperanças e buscas.

    Como as histórias infantis fazem parte do universo da criança, podem tornar a aprendizagem mais significativa, provocando desafios, alegrias, beleza, desacomodações dos sentidos e reflexão; consequentemente, saber pensar é o primeiro passo para pensarmos em democracia. Falar em democracia é viver a democracia diariamente e o melhor caminho é aquele que é construído na coletividade, democraticamente. A palavra democracia é muito pronunciada, principalmente, no que se refere à educação, mas na prática ainda temos dificuldades em vivenciá-la, tanto dentro das escolas como na nossa vida pessoal, devido à nossa pouca cultura e experiência democrática.

    Não fomos educados para sermos democráticos e nem educamos com e para a democracia; o autoritarismo ainda está impregnado em nossa prática educacional, pois “a maioria dos professores e das professoras da Educação Básica foram formados para serem ensinantes, para transmitir conteúdos, programas, áreas e disciplinas de ensino” (ARROYO, 2002, p. 52). Desta forma, “reduzimos a escola a ensino e os mestres a ensinantes” (Ibidem, p. 23). Em muitas escolas ainda se reproduz uma educação fragmentada, alienante; para que outra realidade se torne possível, precisamos de educadores comprometidos, com objetivos, perspectivas teóricas, que caminhem pelo mesmo ideal: contribuir com a emancipação das pessoas, comprometidas com a transformação social.

    Por outro lado, sabemos que existe uma grande acomodação por parte dos educadores usando desculpas para justificar, manter as suas práticas; ouve-se, ainda, dos educadores que após os alunos lerem livros, que retiram semanalmente na biblioteca da escola, apenas dão uma folha em branco para que registrem as suas conclusões, objetivando despertar neles a autonomia. Esta atitude do educador que pensa em permitir autonomia, liberdade, pode retirar o seu comprometimento em auxiliar a leitura, a escrita, não aguçando o educando para uma leitura de mundo, visão de mundo; pode também desvalorizar o processo que levará o aluno a gostar ou não de ler, a interagir com a leitura, a construir hipóteses.

    A autonomia não acontece espontaneamente, precisa ser proporcionada, instigada, permitida através de um ambiente favorável. A possibilidade de imaginar novos rumos para as histórias, de recriá-las, recontá-las e reinventá-las desperta para a curiosidade tão necessária para construir hipóteses, possíveis alternativas, possibilidades e um outro mundo, com relações interpessoais e sociais diferentes. Nesse sentido, Freire (1998) aborda a necessidade de experimentarmos um confronto entre autoridade e liberdade, aprendendo como torná-las presentes no fazer pedagógico, pois muitas vezes, na intenção de não usarmos o autoritarismo, oscilamos entre formas silenciosas e autoritárias, ou até usamos ambas as formas.

    É desafiando a viver com criticidade, responsabilidade, autonomia e democracia as incumbências como educando, que vai se preparando a criança para ser um homem ou mulher, adultos e profissionais com tais qualidades. O clima de respeito mútuo, das relações justas, democráticas e cooperativas, oportunizadas nas interações a partir das histórias infantis, são significativas para que se construa uma cultura organizacional democrática.

    Freire (1998) nos anima no sentido de resgatar uma cultura humanizadora e democrática ao dizer que “me movo como educador porque primeiro, me movo como gente”. Isso solidifica a idéia de que não se pode separar educando de ser gente, o ato de ser educador é um testemunho ético porque a educação não é neutra e é essencialmente uma ação humana e humanizadora. O ato de ensinar, de aprender e de ser democrático são simultâneos, interligados, pois se falo e ajo é no grupo, com o grupo, onde o sentir/pensar/agir de cada sujeito não é isolado.

    O espaço pedagógico pode contar com a ajuda das histórias infantis, democráticas e humanizadoras, mas precisa com elas e a partir delas também "ler" nos gestos, olhares, palavras, ações, decisões das pessoas; e quanto mais dialogicidade houver entre educadores e educandos, mais possibilidades de aprendizagem democrática se efetiva na escola. Sendo assim, os educadores precisam "ler", "observar", “escutar”, quais as histórias que ajudam a aguçar o gosto pela leitura e oportunizar o acesso às histórias infantis humanizadoras.

    Porém, muitas escolas, ainda não possuem espaço para uma biblioteca. A maioria dos alunos disseram: "Retiro livros da biblioteca da escola, mas nem sempre leio!” (Aluno C); e a professora A declarou que pouquíssimos educandos recebem incentivo da família para a leitura: "Pouquíssimos educandos trazem livros de casa porque a maioria das famílias não compram livros. Desta turma temos uns quatro alunos que são estimulados pela família para lerem” (Professora A)" .Para construirmos uma cultura de educandos-leitores, com visão de mundo e uma convivência democrática, onde seja repensada esta cultura dominante e reconstruída a nossa organização escolar, é preciso que o processo de ensino-aprendizagem proporcione espaços para a leitura, para o contato com histórias infantis democráticas e humanizadoras, trabalhando as habilidades, as individualidades, as diferenças e inclusões com todos sem distinções, favorecendo a vivência de novas experiências em termos de relações humanas, de gostar de ler, de querer ler; possibilitando aos educadores e educandos saírem do marasmo, estaremos construindo e reconstruindo relações de respeito, escuta, fala, igualdade e cooperação.

    Na busca da construção de ambientes e relações cooperativas e democráticas, as histórias infantis fazem a diferença nesta caminhada. Porém, é necessário um certo cuidado na seleção de quais histórias propor, vendo se elas favorecem a construção de relações democráticas, ou se servem para reforçar a coação, a geração de medos, a inibição, a manutenção do sistema vigente nesta sociedade através de uma cultura do medo e da exclusão.

    A partir da investigação realizada e vivenciada, acreditamos que a partir das histórias infantis, democráticas e humanizadoras, pode-se romper com o perverso processo de exclusão, negação do outro, negação da própria cultura e modificar a cultura vigente que mantém o poder hierárquico, imposto inclusive pelos educadores na sua relação com os educandos, considerando-se o detentor de todo poder e saber. Para uma valorização de cada ser humano integrante da comunidade escolar, apostamos em escolas e educadores que assumam...

    [...] uma educação que rompa com a clássica história do "Patinho Feio" (para se dizer de forma mais leve), com o perverso processo de transformação de cisnes em patinhos feios. Uma educação que seja capaz de, não só com a razão mas com o coração, com todos os sentidos e todo o corpo, permitir a existência e promover patos, cisnes, gansos, galos, galinhas... e que esses se reconheçam, se respeitem, se preservem, dialoguem, se mesclem, se hibridizem, sem, contudo deixarem de ser eles mesmos. (TRINDADE. Disponível em http://wwww.tuebrasil.com.br/salto/mee/meetxt3)

    Através das interações com as histórias infantis a criança poderá se colocar no lugar do outro, procurar entender as pessoas, começar a ter limites e respeitar diferentes pontos de vista. Por outro lado, se as histórias ouvidas, vivenciadas desde pequenos forem de exclusão, de desrespeito às diferenças culturais/sociais, de inibição, ela poderá se tornar um possível adulto que preservará valores desumanizadores.

    Nesse sentido, busca-se uma educação que não se preocupe só com o processo cognitivo no sentido da aprendizagem de conteúdos ou psicomotores, mas que possibilite uma reflexão da criança sobre seus próprios atos e dos outros, proporcionando um relacionamento interpessoal que ajude a construir uma sociedade mais humana, onde cada um tenha comprometimento com a coletividade.

    Ademais, se o professor, assumindo-se como gestor, usar a palavra para a promoção do outro, estará semeando uma cultura de humanização e transformação social. Na história infantil “As coisas a gente fala” (ROCHA, 2000), diz que as palavras são como folhas que voam ao vento; uma vez que saem da nossa boca jamais voltarão e se as pessoas se conscientizassem do poder da palavra, cuidariam mais o que dizem, pois uma palavra bem dita constrói, promove, liberta, mas se a palavra for mal pronunciada pode destruir e aprisionar.

    Para construirmos uma gestão democrática as pessoas precisam ser sujeitas, com o poder da palavra para discussões, sugestões e comprometimentos e que o linguajar(entrelaçamento emoção-linguagem) permeie as relações. As palavras defendidas com embasamento, com objetivos claros, a favor de uma mudança possível, viável, transformadora, sugerindo novos rumos, novas expectativas são como folhas cheirosas ao vento que acabam entrando em cada ser e transformando as relações de poder e construindo uma cultura organizacional onde a democracia, o amor ao próximo, a pedagogia do bem-querer ocupem e construam novos espaços.

    A preocupação em tornar a sociedade mais humanizadora e democrática passa também pela escola, que pode possibilitar o convívio dos educandos com histórias infantis humanizadoras, dando uma atenção especial para o desenvolvimento crítico do aluno, para as relações interpessoais e afetivas. Nesse processo de construção de uma cultura organizacional democrática, o educador/gestor é um dos dinamizadores, que pode inovar sua metodologia, permitindo a manifestação do aluno, de suas emoções, modificando o ambiente escolar, afinal a escola pode ser “um lugar para ser feliz”.

    Para que a escola seja um lugar para ser feliz, a cultura a ser construída não pode ser de "porcos-espinhos", inspirada nas histórias marcadas pela casa-grande e pela senzala, pelo senhor e pelo escravo; transformando o senhor em empresário, em diretor, gestor e o escravo em trabalhador, professor alienado, aluno discriminado. Talvez necessitemos rever nossa prática pedagógica, nossa visão de educação, de leitura, de mundo, nossa participação nas decisões escolares e comunitárias... para sermos professores/gestores de uma escola e uma sociedade onde o imaginário das histórias infantis se configure numa cultura e numa prática democrática e humanizadora.

Referências

  • ARROYO, Miguel G. Ofício de Mestre: imagens e auto-imagens. 6. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, 2002.

  • ASSUNÇÃO, Gomes. O Reino das Borboletas Brancas. São Paulo: Paulinas, 1997.

  • COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil. São Paulo: Moderna, 2000.

  • CONCIEL, Silva & RIBEIRO Nye. A cidade que mudou de nome. São Paulo: Editora do Brasil, 2005.

  • DINORAH, Maria. O livro em sala de aula. Porto Alegre: L8PM, 2000.

  • FARIA, Ana Lúcia Goulart de & MELLO, Suely Amaral. Linguagens infantis: outras formas de leitura. São Paulo: Autores Associados, 2005.

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EFDeportes.com, Revista Digital · Año 17 · N° 168 | Buenos Aires, Mayo de 2012  
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