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A dança em interface com os discursos 

midiáticos: um olhar sobre as produções acadêmicas

La danza en relación con los discursos mediáticos: una mirada sobre las producciones académicas

 

*Licenciada em Educação Física pela PUC Goiás, Especialista

em Educação Física Escolar pela ESEFFEGO/UEG e mestranda

em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás

**Licenciado em Educação Física pela UFG, Especialista

em Educação Física Escolar pela ESEFFEGO/UEG

Mestrando em Educação Física pela Universidade de Brasília

Professor do Instituto Federal de Goiás – Campus Luziânia

Ana Júlia Rodrigues Carvalho*

ana.r.carvalho@hotmail.com

Guenther Carlos Feitosa de Almeida**

guenther.carlos@gmail.com

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          O presente artigo busca analisar alguns artigos que tratam a discussão da dança junto aos diferentes olhares e discursos midiáticos, apresentando então o tratamento dessas produções nas áreas de conhecimento Educação Física e Dança. Atualmente, várias são as produções na Educação Física que discutem o fenômeno da indústria cultural como foco central ou como categoria de análise. Essas produções lançam seus olhares em diferentes dimensões, como por exemplo, a influência desse fenômeno nos eixos que sustentam a cultura corporal: dança, lutas, esporte, jogos e ginástica, na Educação Física Escolar, nas práticas corporais em estabelecimentos não escolares, bem como na consolidação de um padrão de corpo útil as exigências do mundo moderno. Tendo em vista tais produções, nosso olhar se lança a analisar aquelas que discutem a dança junto a tal fenômeno. Aqui nos restringimos a fazer o recorte de um artigo da Revista Brasileira de Ciências do Esporte (RBCE), um artigo da Revista Lições de Dança, e uma tese de doutorado em Educação Física pela Universidade Gama Filho (Rio de Janeiro). Inicialmente faremos uma discussão sobre o que entendemos sobre o fenômeno indústria cultural, a seguir apresentaremos nosso olhar sobre dança, sendo a mesma um dos eixos temáticos da cultura corporal. Finalmente faremos um percurso sobre tais artigos que discutem a dança junto ou sob os olhares e discursos midiáticos. Como ocorre o tratamento dessas discussões? Ao analisarmos as produções acadêmicas a respeito do que estas entendem como dança e seu papel social, encontramos que a dança, como os autores afirmam, é potência, possibilidade e fruição ao mesmo tempo em que é resistência, subversão aos valores socialmente e moralmente aceitos como assépticos e aceitáveis para a sociedade.

          Unitermos: Dança. Discurso midiático. Análises.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 15, Nº 166, Marzo de 2012. http://www.efdeportes.com/

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O que se entende por Indústria Cultural?

    O estudo acerca da teoria da Indústria Cultural ocorre a partir dos autores da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno e Max Horkheimer. Adorno e Horkheimer afirmam ser a indústria cultural o “braço do capitalismo” na produção cultural para as massas. Os autores discutem essa produção cultural como uma alienação das massas, em que pela soberania dessa mesma indústria sobre a sociedade, o indivíduo nem percebe a sua falta de autonomia, cuja opinião que emite não é sua, e sim uma inculcação padronizada pela mediação dos meios de comunicação de massa.

    Por esse raciocínio, o que impera na contemporaneidade são as relações sociais mediadas pela mercadoria. Sobre a sociedade de consumo e a mudança de valores e condutas, Pedroso afirma:

    Esta ilusão refere-se à promessa de felicidade oferecida pela comercialização de bens materiais e culturais, pois a inserção social do indivíduo depende de sua identificação com os valores e produtos transformados em mercadoria, cuja necessidade de consumo é imposta pelos apelos da indústria cultural. (2002, p.7).

    Pedroso (2002) ainda pontua o quanto o processo de globalização tem contribuído para o empobrecimento cultural no contexto de vida atual, onde cada vez mais se perde a identidade das culturas locais para valores e opiniões padronizados e engendrados. O que se observa é a internalização de comportamentos que tenham o respaldo do consumo.

    É nesse bojo que se encontra o fitness, tendência dentro da Educação Física, fruto de um conhecimento de práticas corporais mecanizadas, que objetivam a venda de produtos que dão todo um aparato para tal discurso, e que se dissemina cada vez mais nos ambientes das práticas corporais por um discurso alienante e a-crítico. Tais práticas inculcam a busca por um corpo apático, padrão, reto e estandardizado, sem pensar na imensidão das diferenças e da história que cada corpo carrega, apelando para uma prática efêmera e consumista. Assim como afirma Silva (2001, p.94):

    A partir de um padrão de existência urbano ocidental feliz, fundado na ideologia do consumo e de um certo narcisismo (Lasch, 1983), vemos constituir-se um modo de vida normativo e, por isso, homogêneo e estereotipado, que tende a estender pelo mundo sobrepondo– se a riqueza da diversidade humana e cultural.

    Por essa via, segundo os teóricos de tal fenômeno, não se pode esperar uma cultura autêntica, mas uma cultura industrializada, concebida por ‘encomenda’ de quem se interessa por esse contexto. Pedroso (2002) assim afirma:

    Além de globalização econômica, cabe destacar, também, o crescimento da sociedade de massa, na qual a ‘pasteurização’ das criações culturais promovida pelas novas formas de comunicação possibilitadas pelas recentes tecnologias, impõe pseudo-necessidades de consumo e aperta o círculo que condiciona a emergência de novas criações culturais, relacionamentos sociais e organizações políticas capazes de superar as desigualdades, as injustiças e, por que não dizer, a extinção do planeta”. (p.10)

    É pertinente fazer uma breve reflexão sobre o que a autora diz acerca das pseudo-necessidades de consumo, onde Ventura (2009) esclarece que na sociedade capitalista há toda uma ‘trama’ para que a gama de produtos veiculados pela mídia e outros meios passem a ser concebidos como necessidades ‘imediatas’. E essa é realmente a essência constatada nas entrelinhas das campanhas publicitárias: a impossibilidade de se viver sem este ou aquele produto. O papel da indústria cultural é então transformar essas abstrações em verdades absolutas, ocultando o que realmente está implícito nas relações sociais: a mercantilização das mesmas.

    Corroboramos com os autores o fato de que o discurso midiático tem sido compartilhado com muita naturalidade, fazendo com que o indivíduo tenha a sensação de ser um pensamento criado a partir de suas próprias subjetividades. Isso ocorre devido ao fato de tais opiniões estarem tão bem sedimentadas e cristalizadas. É inegável que vivemos hoje na estandardização dos valores capitalistas. Às vezes, temos a sensação que nada escapa aos olhos da indústria cultural, pois tudo tem sido adequado ao seu discurso. Segundo Batista:

    A indústria cultural não retira de seus produtos apenas o caráter autônomo, mas também o senso crítico, imprimindo um nivelamento cultural por baixo: suas produções (mercadorias) se limitam ao que pode ser facilmente apreendido (e consumido) pelas pessoas, sem que estas tenham que despender suas energias psíquicas para tal. (2002, p.16)

    Neste trecho, a autora ressalta o jogo duplo da indústria cultural, em que ao mesmo tempo em que mobiliza um sentimento de onipotência ao indivíduo, priva-o de sua emancipação. A finalidade desse maquiavélico jogo nada mais é que tutelar os sujeitos em seus pensamentos, enfim, em suas representações. Batista nos diz que:

    Esse jogo duplo e perverso que a indústria cultural promove, serve a interesses ideológicos que nada mais almejam do que a transformação do ser individual em mero objeto de manipulação das forças sociais vigentes, conduzindo-os a um processo de submissão total a elas. (2002. p.26)

    E por essa via não há mais subjetividades. Batista esclarece que:

    A subjetividade individual, que deveria respaldar a autodiferenciação dos indivíduos e incrementar sua autonomia, acaba sendo capturada pela cultura de massa e sujeitada a uma totalidade social, configurando-se, a partir daí, em uma subjetividade coletiva e homogênea. (2002, p.27)

    A cultura de massas pode ser comparada aos moldes do modelo fordista de produção, onde o fim é possibilitar que o produto chegue aos diversos públicos na sociedade. O problema nesta seriação é a perca da criatividade, da arte que perpassa a produção cultural. Do contrário, essa, antes de tudo, é pensada a partir dos mecanismos capitalistas, pois, o que importa não é a riqueza da cultura, enquanto produção humana e produto de um pensamento mediado1, mas sim o valor de troca da mesma. E nesse contexto, Loureiro (2003, p.56) afirma que “o processo de repetição, quase ad infinitum, dos produtos pode ser observado nos programas de televisão, nas programações das rádios e em toda a indústria do entretenimento”.

    Loureiro (2003) interpreta que tal momento ao qual passa a humanidade, de obscurantismo pela alienação, é o resultado da busca por desmistificar o pensamento medieval. O autor diz que a humanidade, ao contrário de esclarecer, tornou a realidade obscura pelo ‘infeliz casamento’ da ciência positivista com a sociedade burguesa:

    Na modernidade, a razão se subjetiva, mas continua heterônoma. Não é mais orientada pela Igreja ou pelo monarca, por isso os indivíduos se agarram à figura da experiência fria do cálculo matemático que se configura como a linguagem unificadora das ciências. Forçosamente, a racionalidade da ciência moderna, ‘filha’ da sociedade burguesa, passou a representar a própria instrumentalização da razão subjetiva. O caráter altamente repressivo da sociedade que se auto-estima. (LOUREIRO: 2003, p.54)

    Mesmo que constatamos de fato um processo cada vez mais presente da homogeneização das culturas, pensamos que há também um equívoco entre os pesquisadores de tal fenômeno em ignorar as subjetividades que se manifestam na realidade. Nem tudo está perdido, a alienação está presente, mas, o sujeito ainda dentro dessa amálgama massificadora, tem o poder de criar, de se lançar no lúdico e gratuito, independente do que ocorre na TV, rádios e jornais.

    As incursões sobre a mídia e suas relações com a dança têm produzido algumas reflexões sobre o papel da dança enquanto atividade humana e seus significados apresentados pelos veículos de comunicação, de tal maneira, buscamos analisar estes significados.

Dança como potência, fruição e subversão

    Ao analisarmos as produções acadêmicas a respeito do que estas entendem como dança e seu papel social, encontramos que a dança como os autores afirmam, é potência, possibilidade e fruição ao mesmo tempo em que é resistência, subversão aos valores socialmente e moralmente aceitos como assépticos e aceitáveis para a sociedade.

    Assis (2003) apresenta a dança como uma atividade que produza no indivíduo que a pratique um estado de prazer, de domínio e poder sobre seu corpo e as possibilidades de movimentação que este possua.

    A dança se apresenta como gratuita, sem finalidade a não ser a experimentação de movimentos, conhecimento do próprio corpo, sem compromisso em atingir algum objetivo que seja externo ao próprio dançar. A potência criativa do corpo é que então deveria assumir as “rédeas” dos movimentos corporais e a partir da subjetividade dos que dançam e das suas experiências e experimentações, poderia se desenvolver o dançar.

    Assis (2003) busca em Nietzsche um diálogo que justifique a dança como um lugar de potência. Este autor defende um retorno do trágico por pensar que é este que dá o tom da intensidade de cada momento da vida. O mesmo condena a consciência por ser reativa às forças trágicas, pois essa, segundo o mesmo, impede o corpo de gozar mais do que é capaz. É nesse sentido que Assis (2003) pensa a dança, por um caráter desmedido.

    A dança é permeada de prazer, que por meio da ludicidade permite ao indivíduo a graça, a leveza, a sedução, a brincadeira e a imaginação. De acordo com Assis (2005):

    O palco é o lugar da representação, da expressão, é onde se dá o grande prazer de mascarar-se, travestir-se e se fazer passar por outra pessoa, como se o disfarce fosse liberar o sujeito de seu lugar social e libertar sua imaginação. (p. 109)

    Este distanciamento do real, do que é ou se representa na sociedade, produz em quem dança uma possibilidade de experimentação de movimentos, que em situações de realidade este sujeito jamais conseguiria vivenciar. A dança permite visitar lugares de vertigem, da mímica, da imitação e de percepção corporal nunca sentidos antes.

    È a partir do deleite com a capacidade de se relacionar junto ao movimento dançante que surge a capacidade de criação.

Um percurso pela relação dança e mídia

    Várias são as produções na Educação Física que transitam por esse diálogo, resultando em diferentes análises. Algumas delas não partem exatamente da teoria frankfurtiana de Adorno e Horkheimerlogo, porém, não perdem de vista o olhar crítico dirigido a interpretação da mídia ao discorrer acerca do significado da dança. Este é o contexto que encontramos em Assis (2003). A autora, em sua tese, faz o recorte do arquivo do Jornal O Globo, entre 1998 e 2002, referente aos projetos que propõem o ensino da dança a jovens das favelas e comunidades carentes da cidade do Rio de Janeiro. Para fazer a análise do discurso jornalístico sobre tais projetos localizados nesses espaços, a autora busca o diálogo com Orlandi (1993), em que essa afirma que tal discurso “é posto a serviço da manutenção de valores já produzidos no imaginário social”. (ASSIS: 2003, p.131)

    A autora parte da concepção da dança como espaço de fruição e deleite, do lúdico, como abordado anteriormente, se opondo então ao significado veiculado pelo discurso jornalístico, em que aponta a dança como benévola aos indivíduos dessas comunidades. A dança então é concebida como um instrumento moralizante desses sujeitos, que pelo fato de habitarem as favelas, ou lugares não “nobres” da cidade do Rio de Janeiro, estão condenados automaticamente à marginalidade e a miséria. Assis (2003, p.135) pontua que “partindo dessa denúncia quase automática da miséria, o discurso jornalístico produz uma imagem do jovem ‘carente’ que o pressupõe como ser destinado ou já incluído no desvio social”.

    Esses projetos são inculcados no imaginário social pelo discurso jornalístico como uma correção aos vícios encontrados na rua, em que na favela “é dominada pela criminalidade”, deixando de ser então um espaço público livre para o lazer, para o ir e vir. Na ausência desse espaço público “sadio”, os lugares onde se localizam esses projetos seria então um espaço educativo, de correção dos vícios das ruas, de disciplinarização desses corpos. Assis (2003, p.136) assim interpreta:

    ..., a recorrência enfática de termos como disciplina, postura, limite, rigidez, entre outras expressões normativas de apaziguamento dos instintos e controle da desmedida, demonstram o quão forte tem que ser uma ação oposta para conter o potencial vulcânico de irrupção dionisíaca da arte e do jogo.

    A autora faz uma analogia desses espaços a uma lógica de aprisionamento desses corpos que se submetem a essas instâncias: “O bailarino se transforma em soldado e o projeto em quartel, nos moldes foucaultianos.” (ASSIS: 2003 p.146).

    Tomados por esse discurso, os alunos desses projetos também o emitem buscando serem pertencidos e reconhecidos pela sociedade. Assis (2003, p.138) afirma que:

    A mídia, na verdade, reproduz a fala de jovens que, mesmo tendo tido o “infortúnio” de terem nascido favelados, pobres, pretos e a um passo da marginalidade, já encontraram algumas pontes de comunicação com o asfalto, mesmo que para isso sejam obrigados a conscientemente adequar o seu discurso para enquadrar-se a algumas normas importantes para a manutenção da organização social.

    A autora também aborda a dualidade ócio e trabalho, em que os projetos de dança são voltados a preencher o tempo denominado ocioso dos sujeitos neles inseridos, sendo que estes (ócio x trabalho) se polarizam como negativo e positivo, perdendo de vista a dança como fim em si mesma, como oportunidade de vivenciar algo novo, e despertar os impulsos artísticos e dionisíacos, partindo de uma abordagem nietzscheana. Assis (2003, p.139) pontua que “assumindo muito mais o papel de uma atividade contra o ‘perigo do ócio’ do que o de uma prática de descoberta artística e de vivência corporal subjetiva”, os projetos se traduzem como moralizantes para tais comunidades. A mesma ainda afirma que nas entrelinhas de tais discursos podemos também identificar o caráter liberal burguês, em que o sucesso ou o fracasso está exclusivamente nas mãos dos indivíduos. Dessa forma, o sucesso é fruto do talento e o fracasso fruto da preguiça, e da falta de capacidade. Isso nada mais é que a transferência de responsabilidade coletiva para a responsabilidade individual, muito comumente presente nos discursos políticos e publicitários.

    Os sujeitos, meninos ou meninas, são vistos como sortudos e sortudas de uma oportunidade tão benévola. Assis (2003, p.140) sem rodeios diz que “ser bailarina significa não ser prostituta, não ser drogada, não ser bandida, enfim, não estar no desvio, como se o balé as livrasse de todas as máculas”. Percebemos que no discurso jornalístico, o balé, assim como o esporte possui a mesma representação, pois ambos no senso comum, não possuem outra finalidade que não seja a ascensão social dos sujeitos que o praticam.

    A autora também aborda o fato de que a dança nesses projetos está na maioria das vezes associada ao balé clássico, ainda que aqueles não tenham esse foco. Assis (2003, p. 143) diz que:

    Parece existir um certo encantamento do discurso jornalístico ao relacionar a imagem elitizada, disciplinada e européia do balé com uma possível mudança de vida para crianças que são descritas como pertencentes a uma realidade pobre, caótica e subdesenvolvida. Neste sentido, mesmo que tal fato não ocorra na prática de todos os projetos, os textos revelam como os elementos de uma cultura dominante ainda atuam como referencial na formação e em um possível “resgate” de crianças e jovens das classes populares.

    Mesmo na tessitura de um discurso que parece não abrir brechas para uma dança lúdica e gratuita, fruto de um impulso artístico como deveria ser, espaço do jogo e da fruição, Assis (2003) diz que é no silenciamento dessas possibilidades que há outras significações. A autora diz que:

    Este ocultamento define uma política de significação que não se manifesta através do calar, mas no fazer dizer uma ‘coisa’ para que não se possa dizer outras, ou seja, há uma formulação ideológica do discurso que dá a impressão de que este discurso possui um sentido único e verdadeiro. (ASSIS: 2002, p. 144)

    No ensejo de tirar da dança o sentido trágico de sua vivência, a vertigem, o desafio e mimese, Assis (2003, p.147), pontua categoricamente que “o discurso jornalístico lineariza o que é contraditório, apazigua o que é potência e tenta organizar de uma forma socialmente aceitável o que está na dimensão do caótico e do individual”.

    Concordamos com a autora que o discurso jornalístico, que é também midiático, tenta dar um tom a arte, e mais especificamente aqui, a dança, um “quê” de retidão, de um ser comedido, um tom que não se adequa as manifestações artísticas. Ocorre então o ensejo de cientificizar, de apaziguar os instintos, as instâncias dionisíacas defendidas por Nietzsche, pela consciência, pela razão. Há o ensejo de inculcar a moral em algo que é profano, que está no lugar do deleite, e porque não diríamos, do ser hedonista.

    Em seu artigo “O zoológico dançante da TV: lacraias, cachorras, tigrões, e outros bichos”, Tomazzoni (2005) propõe uma análise das danças midiáticas a partir de um olhar desprovido de preconceitos, além do determinismo do discurso da indústria cultural. O mesmo afirma que: “A dança que, na sua insistente, incômoda e transgressora existência, vai, no ambiente midiático, exigir um outro olhar para que se possa dar conta da problemática que se configura na cultura contemporânea.” (p.40).

    Assim, é necessário que a problemática da mídia e da cultura seja analisada de forma mais densa para compreender todas as “faces” sociais, econômicas e estéticas que fazem parte deste fenômeno que é a dança na mídia, buscando fugir dos determinismos ou idealismo que sempre permeiam as discussões deste problema.

    O autor aborda a dança sobre o ponto de vista das constantes tensões que sempre permearam a dualidade: dança culta e dança popular. É a partir desta tensão e relação que os padrões de dança têm sido determinados. Ao mesmo tempo que ocorria a padronização da técnica de dança, sendo o balé a representação deste parâmetro ocorria também a estandardização do corpo que “poderia dançar” (TOMAZZONI, 2005, p. 46).

    Porém, as danças populares sempre estiveram ao longo da história presentes na sociedade, em grupos tradicionais e populares. A aparição de danças diferentes do balé em filmes, em musicais e na TV desde o início do século XX, trás às danças “excluídas” uma nova combinação com as danças socialmente aceitas, produzindo assim novas interpretações e olhares sobre a dança. A mídia neste período, segundo Tomazzoni (2005), promove esta miscelânea que gera novas possibilidades e uma nova rede de significados à dança, tecendo à esta o interesse do grande público por diferentes possibilidades de movimentação dançante.

    Tomazzoni (2005) ainda aborda a perspectiva de que a dança não se limita a uma modalidade ou outra, não se limita às danças acadêmicas (Balé, Contemporâneo, etc.), mas, que essa potência pode ser encontrada também nas danças difundidas pela grande mídia, como funk, axé, pagode e etc. Podendo o público ter o acesso e a possibilidade de executar a dança divulgada pela mídia, democratizando então as escolhas. O autor afirma que:

    Ao observar ou mesmo experimentar os passos dessas danças, o espectador também constrói a sua própria rede de interpretações, tanto ao deixar-se seduzir quanto ao estabelecer outro tipo de interação e até mesmo contrapor-se a elas. (TOMAZZONI, 2005, P.48)

    Tomazzoni (2005) é muito feliz ao ampliar seu olhar às danças veiculadas pela mídia. Para o mesmo a cultura não tem fronteiras, portanto, ao contrário da maioria dos teóricos frankfurtianos, o autor não profana a Lacraia, as tchutchucas, as cachorras e os tigrões do zoológico da TV, pois, diz que: “opor-se aos fatos antes de identificar o que eles nos demandam pode ser fatal para a crítica cultural”. (p.51). Propõe então uma miscelânea da cultura dita culta e a cultura popular: “E se formos olhar além da bisonhice da Lacraia, logo vamos nos deparar com Caetano Veloso incluindo o refrão da funqueira MC Beth ‘um tapinha não dói’...” (p.52).

    Tomazzoni (2005) entende que este fenômeno, a disseminação da danças populares na mídia, deve ser interpretado como “uma operação cultural multicondicionada” (p.52). Sendo assim, antes de ignorarmos tais manifestações, é preciso analisá-las, compreendê-las e ressignificá-las, afinal nada mais é do que a democratização das culturas, onde o popular não pode ser simplesmente tomado como o populesco.

    Diferente de Assis (2003) e Tomazzoni (2005), Sborquia e Gallardo (2002) se propõem a fazer uma classificação ético- moral das danças, a fim de que sirva de parâmetro para o que pode ser ensinado na escola.

    Inicialmente os autores apresentam a discussão sobre mídia, que em muito se aproxima da teoria frankfurtiana da indústria cultural. Segundo os autores, uma das grandes características da comunicação de massa é o caminho da mensagem como uma via de mão única, ou seja, “há uma dissociação estrutural entre a produção das formas simbólicas e a sua recepção”. (SBORQUIA e GALLARDO: 2002 p. 107). E nesse contexto, a capacidade de intervenção do conteúdo da mensagem pelos receptores da mesma é restrita. A mensagem deveria ser ressignificada e transformada, o feedback, expressão comumente usada, que significa apresentar o parecer, a opinião de uma mensagem emitida, não ocorrem. É como se o receptor da mensagem fosse ignorado, partindo do pressuposto que o mesmo não possui autonomia.

    Os autores destacam a televisão como uma das mídias mais importantes da atualidade, que tem alcançado todas as classes sociais, devido ao avanço da tecnologia bem como sua popularidade. Sborquia e Gallardo (2002, p. 108), afirmam que “hoje, a televisão levou ao extremo, ao seu limite, uma contradição que obseda todos os universos de produção cultural”. Esse extremo, segundo Bourdieu (1997), citado por Sborquia e Gallardo (2002), ocorre devido a pressão de venda, influenciada pela audiência dos programas. Na corrida pela mesma, os canais de televisão tem investido cada vez mais em programas “apelativos, populescos e consumistas” (p.110). Junto a isso, os autores alertam sobre a superexposição das crianças a tais programações, que segundo eles influenciam na estimulação da sexualidade nas mesmas. Ao justificarem o alerta, afirmam que “a sexualidade precoce impede que a criança mergulhe nas suas vivências lúdicas, que são a base para o desenvolvimento da criatividade e para o estabelecimento nas relações afetivas entre as crianças.” (SBORQUIA e GALLARDO: 2002, p, 109).

    Em seguida, junto à análise sobre a televisão, abrem um parêntese nos programas nacionais, que segundo os autores, são de “baixa qualidade”. Sborquia e Gallardo (2002, p. 111) afirmam que:

    Os programas de televisão a cada dia promovem mais concursos infantis, nos quais as crianças têm a tarefa de imitar cantores e artistas que acabaram se tornando símbolos sexuais destes tempos modernos. A mídia vem estimulando abertamente este deplorável processo de erotização infantil.

    Partindo então de uma análise mais engendrada e rígida, julgam, como uma “patrulha ideológica”, as danças veiculadas pelos programas televisivos como profanas. Os autores não perdem de vista a “moral”, que segundo os mesmos, é corrompida pelos modismos dançantes. Pontuam que: “Esgotados e chocados com o padrão atingido pelas músicas de sucesso, as quais são ditadas pela indústria cultural como um trator sobrepujando estilos, a ascensão do gênero funk vem afrontar ainda mais a moralidade no país.” (SBORQUIA e GALLARDO: 2002, p. 111).

    Os autores estão certos ao se remeterem a Eco (1998), quando este diz que tais manifestações de música e dança satisfazem apenas as demandas do mercado, porém, não enxergam ricas possibilidades que surgiriam a partir destas mesmas manifestações.

    Ao analisar a função social da escola em confronto ao ensino da dança nesta instituição, os autores apontam para a tarefa do desenvolvimento do conhecimento científico em contraponto ao conhecimento popular, onde a escola seria responsável pelo conhecimento elaborado e não pelo conhecimento espontâneo. Esse, segundo os autores, é o ponto de partida do caminho ao conhecimento científico. Os mesmos ainda pontuam que a escola seria a “bússola” para a emancipação do sujeito.

    Ao contrário de Tomazzoni (2005), Sborquia e Gallardo (2002) são rígidos ao classificarem as danças por um cunho ético moral. Essas são divididas em: danças representativas, sensoriais, sensuais, sexuais, eróticas e pornográficas, imputando às mesmas um significado restrito. A partir disso determinam o que deveria e o que não deveria ser tratado na escola. Pensamos que, independente desta classificação, os alunos levarão sim suas vivências e significações de seu cotidiano, dentro disso não se limitariam a praticar este ou aquele tipo de dança circunscrito ao seu universo em detrimento a uma classificação determinada a priori.

Considerações finais

    A discussão tratada nesse artigo não se esgota, pois, aqui foi feito o recorte de apenas algumas produções acadêmicas.

    Pensamos ser pertinente se posicionar assim como Tomazzoni (2005). O mesmo nos alerta para olharmos a realidade assim como ela se apresenta, ou seja, perceber as “brechas” que indicam as possibilidades de novas significações. Sem querermos banalizar o estudo dos frankfurtianos Theodor Adorno e Max Horkheimer, em que os mesmos alertam sobre a massificação das culturas, ocorrendo assim a produção cultural análoga aos moldes fordistas de produção, não podemos desconsiderar as potencialidades de intervenção humana na realidade. Ainda que a barbárie esteja instalada para Adorno, ela pode ser contornada, pois, ainda que o sujeito esteja apático à realidade em sua volta, ele ainda pode criar, ressignificar, porque nada se compara as potencialidades humanas, que para Nietzsche, em Assis (2003), se compara à um vulcão em eminente erupção.

Nota

  1. Mediação é uma categoria filosófica dentro do raciocínio dialético materialista. Segundo Mészáros (2008, p.121), as mediações são práticas identificáveis entre o presente e o futuro sustentável.

Referências bibliográficas

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  • BATISTA, M. I.F.C e S. Indústria Cultural e Ideologia: O primado da Heteronomia na Configuração das Massas. In: Indústria Cultural e Educação (reflexões críticas). Pedroso, L.A. e Bertoni, L.M. (org.), Araraquara: JM Editora, 2002.

  • LOUREIRO, R. Indústria Cultural e Educação em tempos “pós- modernos”. Robson Loureiro, Sandra Soares Della Fonte. Campinas, SP: Papirus, 2003.

  • PEDROSO, L.A. Indústria Cultural e Educação: Situando o Tema. In: Indústria Cultural e Educação (reflexões críticas). Pedroso, L.A. e Bertoni, L.M. (org.), Araraquara: JM Editora, 2002.

  • SBORQUIA, S. P. e GALLARDO, J. S. P. As Danças na Mídia e as Danças na Escola. In: Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v.23, n.2, p.105-118, jan. 2002.

  • SILVA, A.M. Corpo e Diversidade Cultural. In: Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v.23, n.1, p.87-98, set.2001.

  • TOMAZZONI, A. O Zoológico Dançante da TV: lacraias, cachorras, tigrões e outros bichos. In: Lições de Dança 5, p.39-53, Rio de janeiro: UniverCidade, 2005

  • VENTURA, P.R.V. Reuniões do Grupo de Estudos e Pesquisa Corpo e Mente (DEFD/UCG-ESEFFEGO/UEG), 2009.

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