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O olhar que desvia, diferencia e estigmatiza o corpo

La mirada que desvía, diferencia y estigmatiza el cuerpo

 

Graduado em Educação Física pela Universidade Estadual

Paulista, UNESP/Presidente Prudente. Mestrando do Programa

de Pós-Graduação em Educação Especial pela Universidade Federal

de São Carlos - PPGEES/UFSCAR. Atualmente é professor efetivo

de Educação Básica II da Secretaria da Educação do Estado

de São Paulo e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas

em Educação Especial - GÉFYRA/UFSCAR

Everton Luiz de Oliveira

evertongalera@hotmail.com

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          Neste ensaio procuramos discorrer sobre inúmeras indagações/reflexões/constructos teóricos desenvolvidos e cunhados em dois textos da autora Ligia Assumpção Amaral, a saber: “Sobre crocodilos e avestruzes: falando de diferenças físicas, preconceitos e sua superação” (tratando-se de um capítulo do livro Diferenças e Preconceitos na escola, organizado por Julio Groppa Aquino, editora Summus Editorial, ano de 1998) e “Corpo desviante/olhar perplexo” (artigo publicado pela Revista Psicologia da USP, no ano de 1994), sem a pretensão de esgotar os apontamentos e idéias, construídas com peculiar maestria pela autora. Seus esforços acadêmico-científicos possibilitaram entender de maneira sensível e profunda a diferença, a deficiência, o desvio, a anormalidade e a monstruosidade, construídas e naturalizadas, prioritariamente, por uma vertente social e legitimada historicamente por meio dos preconceitos, estereótipos e estigmas, que foram por vezes assumidos e declarados, e outras, ocultados e não (ou seria mal?) intencionados.

          Unitermos: Ligia Assumpção Amaral. Desvio. Deficiência. Preconceitos.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 16, Nº 163, Diciembre de 2011. http://www.efdeportes.com/

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1.     Introdução

    Por se tratar de textos que embora possuam suas singularidades e nuances encravadas em palavras sólidas e vividas, acreditamos que os mesmos se complementam e por determinados momentos até encontram uma similaridade ardente e penetrante. Isto posto, sentimos a necessidade de não estabelecer uma linearidade e rigidez para as reflexões e apontamentos frente à ordem cronológica das obras da referida autora, as quais subsidiaram essa produção teórica, permitindo, neste sentido, transitar com fluidez, flexibilidade e liberdade pelos textos.

    Mediante expressiva incógnita social, histórica e cultural, centrada nas questões do corpo e sua condição de diferença/deficiência/desvio, Ligia Amaral nos presenteou com uma incomparável e majestosa construção teórico/conceitual, a partir da qual podemos iluminar os paradigmas e ocultamentos que permeiam o universo da pessoa com deficiência.

    Ligia Amaral apresenta de maneira muito hábil suas reflexões, posicionamentos e inquietações pertinentes ao espaço das diferenças/deficiências, salientando a importância de o leitor ser informado a respeito do lugar de onde ela fala, esclarecendo que falar de algo interno a si próprio amplia a validade e significação do discurso.

    Destarte, a autora expõe que:

    por um lado tenho um certo esclarecimento, teórico-conceitual, da questão da deficiência pois a ela venho me dedicando profissionalmente há quase vinte anos, estudando, pesquisando, escrevendo, dando palestras e assessorias; por outro tenho também esse conhecimento num âmbito “prático”, por viver a condição de deficiência, pessoalmente, há cinqüenta e poucos anos, uma vez que tenho seqüela da pólio que contraí recém-caminhante, aos quinze meses de idade. (AMARAL, 1998, p.12)

    Assim a autora explica que o lugar de onde fala (duplo), acaba levando-a ao que chamou de “eventuais arroubos” e este movimento pode fazer com que o leitor a acuse de advogar em causa própria. Humildemente pede ao leitor que use sua generosidade e a desculpe se esses arroubos vierem a acontecer efetivamente no decorrer da sua produção teórico-conceitual. (AMARAL, 1998)

2.     Diferente/deficiente: a (des)construção do “outro”

    Como ponto de partida, Ligia Amaral torna urgente, ao tratar do termo diferença, primeiramente, seu esforço no sentido de colocar sob os holofotes aquilo que apreende como diferença em seus textos, visto que esta pode fazer referencia a inúmeras manifestações/estados/coisas.

    Então, pontua que a diferença a que se refere é a “diferença física”, aquela que pode ser “absorvida” pelo olhar do outro, enfatizando a amplitude desta idéia, fazendo-nos pensar a respeito de tão vasto é esse contexto, utilizando como exemplos de diferenças físicas o obeso, o baixo, o negro, aquele que utiliza óculos, o surdo, o cego, o paraplégico etc. No entanto, evidencia que o lugar da diferença, inegavelmente, é o corpo. (AMARAL, 1998)

    Debruçando sobre essa construção conceitual, intencionando enveredar por caminhos mais significativos e relevantes, mas não menos tortuosos, a autora apresenta o conceito de “significativamente diferente” ou “diferença significativa” como sinônimo de deficiente/deficiência.

    Segundo Amaral (1998) ser apenas “diferente” pode fazer menção apenas a determinadas características ou opções, que mesmo sendo dessemelhanças, não criam relações ou estados extremamente conflitivos (com pequenas exceções), ao ponto que, tal cenário modifica-se quando pensamos em relações humanas que se estabelecem mediante uma identificação do “significativamente diferente”.

    A autora elenca alguns parâmetros que, possivelmente, definiriam a diferença significativa, os quais pressupõem “a eleição de critérios, sejam eles estatísticos (moda e média), de caráter estrutural/funcional (integridade de forma/funcionamento), ou de cunho psicossocial, como o do tipo ideal”. (AMARAL, 1998, p.13)

    O critério estatístico possui duas vertentes, sendo uma delas a “média” (variável matemática obtida pelo coeficiente da soma de n valores por n), que nos fornece, por exemplo, a altura do homem brasileiro; desta maneira, todos aqueles que se distanciam – muito acima ou muito abaixo – são desviantes, anormais, diferentes. A outra vertente é denominada “moda” (variável matemática que diz respeito a um número máximo de freqüência numa curva de distribuição), a qual fornece, por exemplo, a maior incidência de professores do 1° Grau como sendo mulheres, ao passo que, os homens que atuam nesta modalidade da Educação Escolar seriam desviantes, anormais, diferentes. (AMARAL, 1998)

    O critério estrutural/funcional trata do que a autora convencionou chamar de “vocação” dos componentes da natureza – onde se incluem os seres humanos – e das coisas/objetos construídos por nós. Destarte, além da integridade da forma, a competência da funcionalidade são parâmetros que podem desenhar modalidades de diferença significativa. Mesmo não existindo a universalidade ou naturalidade de todas as características estruturais e funcionais, é inegável a existência de uma “vocação” para determinadas características da estrutura/função que definem a espécie humana. (idem)

    Ainda, para a autora, quaisquer alterações de maior importância nessa “vocação” acabam por

    caracterizar a pessoa que vive essa condição como significativamente diferente, desviante, anormal e com deficiência. De qualquer forma, entendo que essa modalidade de categorização de desvio é a menos impregnada de crenças, valores, opiniões (...) Mas sublinho o menos pois isso pode ocorrer – e ocorre – mediante especificidades de caráter econômico, religioso, científico, político. (AMARAL, 1998, p. 14)

    Com relação ao terceiro e último critério, Ligia Amaral indaga, que o mesmo, por vezes apropria-se de maneira perversa dos dois anteriores, definindo então, uma “comparação entre uma determinada pessoa ou um determinado grupo e o “tipo ideal” construído e sedimentado pelo grupo dominante”. (idem, p.14)

    Dialogando com esse último posicionamento, que se refere ao terceiro critério para eleição da diferença significativa, identificamos a construção social da diferença/deficiência, revelando a partir deste ponto, que ser diferente/deficiente deixa de se apresentar apenas como uma expressão da diversidade da natureza e da condição humana que brindam nosso mundo, ocupando o lugar da

    própria encarnação da assimetria, do desequilíbrio, das des-funções. Assim, sua desfiguração, sua mutilação, ameaça intrinsecamente as bases da existência do outro. Seu existir põe em movimento uma gigantesca pá de moinho que, descontrolada, subitamente, ameaça transformar a energia costumeiramente gerada com tranqüilidade numa torrente quase incontrolável, num caudal de águas turbulentas. O outro, o diferente, o deficiente, representa muitas e muitas coisas. Representa a consciência da própria imperfeição daquele que vê, espelha suas limitações, suas castrações (...) Representa ainda uma ferida narcísica em cada profissional, em cada comunidade. Representa um conflito não camuflável, não escamoteável – explícito – em cada dinâmica de inter-relações. De qualquer lado que se olhe, representa uma chaga em pele idealizadamente de alabastro. Representa ameaça, perigo. (AMARAL, 1988, p.10-11)

    Para Omote (2004) deveríamos pensar na diversidade como um fator natural, decorrente da variabilidade própria da espécie humana, de alterações ocorridas no organismo e de possíveis variações no ambiente, contudo, ressalta que não basta entende-las como universais e inerentes à espécie; mas, concomitantemente, é necessário analisar a forma como a sociedade se coloca frente às mesmas.

    Nessa relação dicotômica entre deficiente/normal ou diferente/igual, a autora nos mostra que, historicamente, houve inúmeros esforços para ocultar ou naturalizar esse dualismo, já que uma das partes “sempre” será alvo de valorização e a outra (outro) aviltada, ferindo os princípios éticos e morais tão proclamados por nossas sociedades.

    Para Woodward (2000) nesse dualismo, onde a diferença é expressa através de oposições cristalizadas, como natureza/cultura, corpo/mente, paixão/razão, mesmo aqueles autores que criticam a oposição binária, argumentam que os termos em oposição recebem importância diferente, sendo que um deste é sempre mais valorizado ou mais forte que o outro. E ainda, utilizando como referência os trabalhos de Cixous, este autor afirma que nessa relação onde um é mais valorizado que o outro: um é a norma e o outro é o “outro”. Validando a idéia de Ligia Amaral, já apontada aqui, que trata do terceiro critério que define as diferenças significativas, de cunho psicossocial ou do “tipo ideal”, onde aqueles que se afastam da norma são diferentes, anormais, deficientes, desviantes.

    Amaral (1994) faz inúmeras inferências a respeito do percurso histórico, traçado pelos “modelos ideais” ou “padrões ideais”, pontuando que

    as idéias e a busca de harmonia e perfeição, guardadas as especificidades de tempo e espaço, parecem - de uma ou outra forma - acompanhar a história do mundo. Mas é a partir da Idade Média que isso se faz especialmente presente e constatável, pois sabe-se o quanto esse momento histórico busca incansavelmente a perfeição. (p. 249)

    Permitindo-nos um caminhar acelerado pela história, apresentamos o ideário de perfeição, harmonia e normalização que povoa o imaginário coletivo, expresso nas palavras pulsantes de Ligia Amaral, como sendo:

    jovem, do gênero masculino, branco, cristão, heterossexual, física e mentalmente perfeito, belo e produtivo. A aproximação ou semelhança com essa idealização em sua totalidade ou particularidade é perseguida, consciente ou inconscientemente, por todos nós, uma vez que o afastamento dela caracteriza a diferença significativa, o desvio, a anormalidade. (AMARAL, 1998, p. 14).

    Intencionando clarificar as definições de “modelos ideais” que se conectam com os entendimentos até aqui explanados, sem a pretensão de encerrá-los nestas pequenas conceituações, apresentamos uma valiosa definição de corpo ideal, admitindo que:

    modelo de corpo ideal, é aquele valorizado em suas medidas esbeltas e condizentes com os modelos estéticos da época, ou seja, um corpo magro, esguio, resistente, esbelto, belo, gracioso, forte e jovem. Um corpo quase fabricado pelas máquinas da beleza e da estética: que cultua a imagem de que ser belo significa ter todas essas qualidades, mesmo que, para isso acontecer, seja necessário uma remodelagem do corpo utilizando os avanços da cirurgia plástica.(BARROS, 2001, p.62)

    Recorrendo a algumas reflexões do antropólogo Gilberto Velho, a autora, com muita propriedade, aponta para um fenômeno denominado: a patologização do desvio – sendo este manifesto de maneira corrente em nossa cultura, justificando a carga depreciativa que se fixa no núcleo, da proclamada, diferença/deficiência.

    Para representar com mais vigor e ardência a diferença significativa, deficiência, desvio ou anormalidade, Ligia Amaral utiliza a metáfora do “monstro” e evidencia todos os preconceitos, estereótipos e estigmas que perpassam e por muitas vezes, cristalizam-se na vida e no cotidiano destas pessoas.

    Neste movimento, ou melhor, neste jogo de palavras e figuras de linguagem, a autora caminha com singular destreza pelos conceitos e teorias, mostrando como essa figura do mostro sempre esteve presente em nossas vidas, desde os personagens mitológicos e personagens folclóricos até aqueles que poderiam estar na condição de pares, mas que são relegados à condição de “outro”, de “forasteiro”, de “mostro”.

    Dialogicamente, Kappler (1986, p.255) externa que “para o homem normal, os monstros são, antes de mais nada, formas diferentes dele mesmo”.

    A marcação das diferenças, tanto as apreendidas pela autora como diferenças significativas, quanto as que tratam dos mais variados e diversos estados/manifestações, são de vital importância para o desenvolvimento das identidades.

    Segundo Woodward (2000, p.11) a “identidade é marcada pela diferença”. Portanto, nossa identidade, para existir, dependeria de alguma coisa exterior a ela própria, sendo “uma identidade que ela não é (...) mas que, entretanto, fornece as condições para que ela exista”. (WOODWARD, 2000, p.9)

    A grande barreira a ser transposta seria a da marginalização desta diferença, como já explanadas até aqui, em alguns momentos, pela patologização da diferença ou oposições binárias, que deslocam o diferente/deficiente sempre para o lugar de estrangeiro ou forasteiro.

    Aprofundando essa reflexão e intencionando encaminhamentos finais a esta linha de raciocínio, revisitamos Woodward para entender que

    a diferença pode ser construída negativamente – por meio da exclusão ou da marginalização daquelas pessoas que são definidas como “outros” (...) Por outro lado, ela pode ser celebrada como fonte de diversidade, heterogeneidade e hibridismo, sendo vista como enriquecedora: é o caso dos movimentos sociais que buscam resgatar as identidades sexuais dos constrangimentos da norma e celebrar a diferença. (WOODWARD, 2000, p.50).

    Para Amaral (1998) mediante manifesta diversidade, e considerando sua proclamada legitimidade, o pensamento a respeito da diferença significativa ou deficiência, possivelmente, encontrará uma nova mentalidade. A autora revela, desta maneira, uma das idéias nucleares desse caminho tortuoso, que pode nos levar, não somente a entender, respeitar e aceitar o “outro”, mas, e principalmente, se colocar no papel do “outro” ou permitir ao “outro” ser “eu”, assim

        dessa nova mentalidade talvez surja uma nova configuração no jogo de poder. E dessa nova configuração poderá brotar uma nova dinâmica nas interações sociais, quando o “cetro do poder” estará então, e só então, dinamicamente passando (nas relações mistas e de acordo com as circunstâncias) de um pólo a outro. (AMARAL, 1998, p.26).

    Conclusivamente, Ligia Amaral salienta que o conhecimento e demais contribuições teórico-conceituais não podem ser encerradas apenas na retórica e nos pensamentos, mas, concomitantemente, servir de base para (des)construção das relações interpessoais, fazendo eclodir uma verdadeira revolução e uma consequente mudança radical nas interações sociais. E ainda, salienta que mesmo sendo constituído e configurado, majoritariamente, a partir de uma vertente social, cada um de nós pode e deve subverter alguns postulados vigentes, refletindo sistematicamente sobre as questões conceituais e cotidianas das pessoas com diferenças significativas/deficiência, infiltrando profundamente na rede de significações e simbolizações que as configuram.

3.     Os (des)caminhos do emocional

    As emoções e sentimentos expressos pelo dito “normal” frente ao “diferente” acabam, indiscutivelmente, dando a “coloração” (na maioria das vezes em tons de cinza) a essas relações interpessoais, as quais, como visto anteriormente, sempre estiveram permeadas por uma dualidade, onde as relações de poder se apresentam desigualmente distribuídas.

    Esses sentimentos são constituídos e estabelecidos mediante as influencias e contatos com os preconceitos, estereótipos e estigmas, que se desenvolveram social e historicamente. A partir da leitura que o “familiar” faz do “forasteiro”, ou melhor, da que “eu” faço do “outro”, evidenciamos toda a carga negativa e depreciativa depositada na “diferença física significativa”.

    Na definição de Omote (1999) essa relação seria orientada por três fatores, que agindo combinadamente, levariam a construção das idéias e valores a respeito das diferenças (que derivam de algum atributo, comportamento ou afiliação grupal), sendo eles: o portador ou ator, a audiência ou o juiz e as circunstancias sob as quais acontecem tais julgamentos.

    Amaral (1994) enfatiza que as emoções são onipresentes nas interações e que sem elas, o próprio estado de interação seria inexistente, e desta forma, conscientes ou inconscientes, admitidas ou inconfessas, permeiam intensamente as relações entre “normais” e “diferentes”. Assim, “medo, cólera, desgosto, atração, repulsa – juntas ou isoladamente, fortes ou moderadas – são possibilidades reais e freqüentes”. (p.262).

    Segundo Amaral (1998) entre a superação do mito pela realidade, existe um fosso repleto de crocodilos (estes fazendo referencia aos preconceitos e estereótipos) que precisa ser superado. Toda oportunidade de encontro entre aqueles que vivem essas questões, o progresso teórico-científico, a vitória no contexto prático, a superação de impasses, formariam juntos a ponte movediça que possibilitaria escapar destes ferozes crocodilos e conhecê-los a uma distancia segura.

    O preconceito é uma construção conceitual estabelecida anteriormente à nossa experiência. Constituindo duas dimensões principais: uma é a atitude, definida a partir de nossas predisposições psíquicas favoráveis ou desfavoráveis (para o nosso discurso, desfavorável) em relação a algo ou alguém, sendo seus conteúdos emocionais a admiração, medo, raiva, repulsa, amor, ódio etc; agindo com filtro para nossas interpretações e percepções. E a segunda dimensão trata do desconhecimento, o qual deriva da desinformação dos fatos ou sentimentos/emoções não elaborados. (AMARAL, 1998).

    A partir do acionamento deste preconceito, temos um terreno fértil para o estabelecimento e fixação do estereótipo, que passa a ser

    a concretização/personificação do preconceito. Cria-se um “tipo” fixo e imutável que caracterizará o objeto em questão – seja ele uma pessoa, um grupo ou um fenômeno (...) encontramos também estereótipos particularizados em relação aos tipos de deficiência, como o deficiente físico ser “o revoltado” ou “o gênio intelectual”; o cego ser “o isolado” ou “impaciente”. (AMARAL, 1998, p.18).

    Estes preconceitos e estereótipos são desenvolvidos cultural e socialmente, disseminados consciente ou inconscientemente, povoando o imaginário coletivo e individual através de mecanismos, na maioria das vezes, subjetivos. Deste “diálogo” entre preconceito e estereótipo emerge o estigma.

    Omote (2004) explicita que o estigma sempre esteve atrelado aos conceitos depreciativos e manifestações de descrédito social. Sendo apropriado inicialmente na Grécia antiga, quando, naquele momento histórico era utilizado para designar as marcas físicas produzidas de maneira artificial no corpo de uma pessoa. Na atualidade, mesmo não tendo a presença das marcas físicas, já que estas foram substituídas pelas marcas simbólicas, “a palavra estigma é utilizada com um sentido semelhante ao original (...) refere-se à própria condição social de desgraça e descrédito (...) trata-se, portanto, da marca social de inferioridade social” (p.294)

    Identificados os crocodilos, prosseguimos pelos caminhos das subjetividades construídas no encontro com as diferenças significativas, objetivando desvelar outras nuances e obscuridades manifestas nas relações entre o “eu” e “outro” (diferente/deficiente/desviante/anormal).

    No contato com o “monstro”, o qual representa a materialização de toda carga negativa e desprezível que se finca na diferença/deficiência, podemos nos sentir ameaçados, assustados, perplexos, aflitos e inseguros.

    De acordo com Amaral (1994) esses sentimentos desencadeariam em duas grandes categorias de fenômenos atuantes: medo e necessidade de defesa. Concomitantemente, temos como resultado dois tipos básicos de possibilidades: o ataque e a fuga.

    Ao debruçar sobre a idéia de comportamento manifesto pelo ataque, temos

    o enfrentamento do “inimigo” atacando-o e, idealmente, destruindo-o (...) atitudes factíveis em nosso próprio universo cultural, quando forças mais poderosas que a moral vigente vencem: extermínio de bruxas, judeus, negros... por razões religiosas, econômicas, históricas... ataca-se o diferente, o inconveniente, e com isso liquida-se a ameaça por ele representada. (AMARAL, 1994, p.262-263)

    Contudo, esta não parece ser uma atitude comumente admitida ou aceita nas sociedades modernas ou pós-modernas, ao passo que a violência que se aplica ao diferente/deficiente mudou sua roupagem, deixando de ser aplicada fisicamente e configurando-se verbalmente e simbolicamente.

    Ligia Amaral revela seu desinteresse por esse tipo de comportamento, manifesto pela agressão, realizando em sua obra apenas uma breve explanação sobre o mesmo e direciona seus esforços para a compreensão da segunda possibilidade, a fuga. E assume que ao entrar em contato real com a diferença significativa e

    havendo a necessidade de “fugir” da questão, podemos assumir a postura de avestruz: enfiamos a cabeça na areia para não ver o que não queremos ou não podemos ver (...) Ou dito de outra forma: se reconhecer a diferença significativa do outro (ou nossa rejeição a ela) nos causa profundo mal-estar, tensão e ansiedade, uma das possibilidades é o acionamento do mecanismo de defesa da negação. (AMARAL, 1998, p.20)

    Para Amaral (1998) algumas expressões “clássicas” empregadas cotidianamente, servem como ilustração para três formas de negação. Quando dizemos (ou pensamos): “é paralítico, mas tão inteligente”, utilizamos o mecanismo de compensação, definindo assim que sua diferença é abjeta e a negamos ao contrapô-la a uma característica valorosa. Ao dizer: “não é tão grave assim” ou “podia ser pior”, utilizamos o mecanismo de atenuação. E por fim, o mecanismo de simulação, que ocorre quando negamos explicitamente a diferença: “é cego, mas é como se não fosse”.

    Envoltas por figuras de linguagem e um brilhante jogo de palavras, as idéias/reflexões/indagações/inquietações de Ligia Amaral nos transportam a novas possibilidades de “olhares”, antes cristalizados e enrijecidos pelas falácias e ideologias dominantes, que se não cegam, inegavelmente, acinzentam nossa visão.

    Conclusivamente, externamos a necessidade de sairmos da posição de avestruzes, transformando nossos pensamentos e anseios em objetivações, em ações práticas que se materializem no dia-a-dia, utilizando as pontes movediças do conhecimento teórico-científico para transitar de maneira segura pelo rio das relações intra e interpessoais, que estão repletas de crocodilos que levam a tonalidade e o peso do preconceito, do estereótipo e do estigma.

    Como “a identidade é, assim, marcada pela diferença” (WOODWARD, 2003, P.9). O que define nossa identidade como sendo uma somatória de todas as nossas diferenças, por isso, você passar a ser um conjunto daquilo que você não é.

Referências

  • AMARAL, L. A. Do Olimpo ao Mundo dos Mortais. São Paulo, Edmetec, 1988.

  • ______________. Corpo Desviante/Olhar Perplexo. Revista Psicologia USP, São Paulo, v. 5, n. 1/2, p. 245-268, 1994.

  • ______________. Sobre Crocodilos e Avestruzes: Falando de Diferenças Físicas, Preconceitos e Sua Superação. In: AQUINO, J. G. (org.). Diferenças e preconceito na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 1998, 5ª edição, p. 11-30.

  • BARROS, Daniela Dias. Estudo da Imagem Corporal da Mulher: corpo (ir)real x corpo ideal. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Educação Física, UNICAMP, Campinas, 2001.

  • KAPPLER, C. Monstruos, demônios y maravillas a fines de la Edad Media. Madrid, Akal, 1986.

  • OMOTE, S. Deficiência: da diferença ao desvio. Em: MANZINI, E.J. e BRANCATTI, P.R. (orgs). Educação Especial e Estigma: corporeidade, sexualidade e expressão artística. CAPES-UNESP/Marília. Publicações, 1999, p. 3-21.

  • _________. Estigma no tempo da inclusão. Rev.Bras. Educ. Espec., Marília, set.-dez., 2004, v.10, n.3, p.287-308.

  • WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. Em: SILVA, T.T.da; HALL, S. e WOODWARD, K. (orgs). Identidade e Diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Editora Vozes, 2003, 2ª edição, cap.1, pp. 7-72.

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