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Tienes que tener un corazón de leona: empoderamento

e ação feminina no hóquei de grama da Argentina

Tienes que tener un corazón de leona: el empoderamiento y la acción de las mujeres en hockey sobre césped de Argentina

Tienes que tener un corazón de leona: women empowerment and action in Argentina's grass hockey

 

*Pesquisador do Grupo de Pesquisa de Semiótica do Esporte, da Universidade Gama Filho (UGF/RJ)
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação Física (UGF/RJ)
Mestrado em Lingüística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Doutorado em Lingüística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Pós-Doutorado em Sociolingüística pela Universidade da Pensilvânia, EUA
Pós-Doutorado em Lingüística Funcional pela Universidade da Califórnia, EUA
Livre-Docência em Lingüística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
Pós-Doutorado em Sociolingüística pela Universidade de Essex, ING
Pós-Doutorado em Lingüística pela Universidade de Laval, CAN
Pós-Doutorado em Sociologia do Esporte, na Universidade de Strathclyde, Escócia
**Professora do Departamento de Fundamentos da Educação Universidade Estadual de Maringá (UEM/PR)
Realiza Estágio Pós-Doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ) e Universidade
Gama Filho (UGF/RJ) sob supervisão do Dr. Sebastião Votre. Formada em Educação Física
pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel/RS), Doutora pelo Programa de Pós-Graduação
em História (UnB/DF), na área de Estudos Feministas e de Gênero. Autora do livro:
"Mulheres à Venda", editado pela EDUEL
***Professora dos cursos de Graduação em Licenciatura em Educação Física
Bacharelado em Educação Física e Pedagogia das Faculdades Integradas Maria Thereza
Coordenadora do Centro de Educação Física e Esporte da FAETEC, Niterói
Graduada em Licenciatura plena em Educação Física pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)
Mestre em Ciência da Motricidade Humana pela Universidade Castelo Branco (UCB) e Doutora pelo programa de
Pós-Graduação em Educação Física pela Universidade Gama Filho (UGF), na área de Estudos da Cultura e de gênero
****Acadêmica de Educação Física pela Universidade Estadual de Maringá (UEM/PR)
Atleta de Hóquei da equipe Associação Maringaense de Hockey)



Dr. Sebastião Votre*

sebastianovotre@yahoo.com

Dra. Patricia Lessa**

mafalda_cat@yahoo.com.br

Dra. Sandra Bellas de Romariz***

sbellas@ig.com.br

Gda. Caroline Picoli****

carolinepicoli@hotmail.com

(Brasil)


 

 

 

 

Resumo

          A agenda feminista para os esportes trabalha de forma propositiva pontuando ações e práticas em prol do protagonismo, visibilidade e empoderamento das mulheres visando minimizar avaliações depreciativas que historicamente recaíram sobre as atletas. Neste artigo propomos visibilizar à atuação da equipe de hóquei de grama Las Leonas, da Argentina, através da análise narrativa de materiais publicados em jornais escritos e televisivos argentinos após a vitória das mesmas no Mundial de Hóquei 2010. Entendemos que Las Leonas podem representar a quebra do mito da feminilidade, e; suas narrativas contribuem para o empoderamento das mulheres nos esportes de confronto.

          Unitermos: Hóquei. Mulheres. Empoderamento. Argentina.

 

Resumen

          La agenda feminista de los deportes trabaja de modo propositivo puntuando acciones y prácticas en pro del protagonismo, la visibilidad y el empoderamiento de las mujeres, para reducir al mínimo las consideraciones despectivas que históricamente recayeron sobre las deportistas. En este artículo nos proponemos visibilizar la actuación del equipo de hockey sobre césped Las Leonas, de la Argentina, través del análisis del material narrativo publicado en los periódicos y en la televisión argentinos después de la victoria de este equipo en el Mundial de Hockey 2010. Entendemos que Las Leonas pueden representar la ruptura del mito de la feminidad, y, sus narrativas contribuir al empoderamiento de la mujer en los deportes de oposición.

          Palabras clave: Hockey sobre césped. Las mujeres. Empoderamiento. Argentina.

 

Abstract

          The feminist agenda for sports working on a scoring purposeful actions and practices in support of the leadership, visibility and empowerment of women, to minimize disparaging assessments that historically fell on those athletes. In this article we propose to visualize the performance of grass hockey team Las Leonas, Argentina, through the analysis of narrative material written in newspapers and television Argentines after the victory of those in the World Hockey 2010. We understand that Las Leonas may represent the breaking of the myth of femininity, and, their narratives contribute to the empowerment of women in sports clash.

          Keywords: Hockey. Women. Empowerment. Argentina.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 16, Nº 161, Octubre de 2011. http://www.efdeportes.com/

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Notas introdutórias para uma história narrativa das atletas

    CENA 1: Nervosismo. Mãos suadas. Relógio na hora. Olhares que procuram. Somente algumas horas separam, elas e suas garras, do que mais esperaram e desejaram. Por trás da preparação para este momento e pelo que estava por vir na competição mais importante de suas vidas e dos que estão ali, tão próximos, estão seus familiares e amigos, que não tiveram que fazer uma longa viagem de avião para poder viver este Mundial com elas (FAIJA, 2010, p. 20).1

    As Teorias Feministas que surgem no universo desportivo questionam a evidência da naturalização das mulheres que atreladas ao biológico, foram excluídas de atividades consideradas masculinas. A fragilidade, a docilidade, a submissão e a vulnerabilidade são atributos nada próximos daqueles exigidos no universo dos esportes, efetivamente, não aparecem na trajetória histórica e no momento atual do esporte masculino, mas estiveram e continuam presentes nas práticas discursivas, que imprimem modelos a-históricos para as mulheres atletas.

Las Leonas. Foto: canchallena.com.ar

    Essas teorias contribuem com uma crescente produção teórica e conceitual sobre a desnaturalização dos corpos e a performance dos gêneros, que atravessa as várias áreas do conhecimento, e é crescente na área da Educação Física e dos Esportes.

    No quadro brasileiro, as novas idéias suscitam duas questões importantes quando pensamos como são mostradas as mulheres atletas no cenário nacional. No país do futebol quem são as nossas craques? Porque não possuem a mesma visibilidade e salário que os homens? As duas questões emergem da perspectiva epistemológica fornecida pelos feminismos contemporâneos. Com este texto objetivamos problematizar as questões referentes a um esporte pouco divulgado no Brasil, porém prestigiado em nossa “hermana” vizinha argentina: o hóquei de grama.

    Em nossa análise trabalhamos com os discursos produzidos por e sobre as atuais campeãs mundiais conhecidas como Las Leonas (As Leoas). Com base nas fontes selecionadas, investigamos as representações e as auto-representações que conferem materialidade aos sujeitos representados ou auto-representados nas matérias e entrevistas concedidas pelas atletas aos jornais desportivos da Argentina por ocasião do Mundial em 2010. Nos discursos que analisamos procuramos os valores e as representações sociais cujos efeitos de sentido traduzem as experiências das atletas. Portanto, nosso corpus constitui-se da história e das memórias das atletas na forma de narrativas. Nossa meta é construir uma história feminista dessas mulheres e, nesta perspectiva teórica, procuramos desvendar no social os mecanismos que ordenam suas relações humanas em termos de sexo biológico e de práticas corporais em torno de materialidades constituídas à margem do sistema hegemônico. Os marcos metodológicos para atingir tais objetivos serão explicitados a seguir, uma vez que trabalhamos na perspectiva segundo a qual o/a perquisador/a constrói seu objeto (LESSA, 2006).

    Partiremos dos jogos, semifinal e final, do Mundial de Hóquei realizados na Argentina em 2010 para expressar de forma narrativa o que entendemos como possibilidade de protagonismo, empoderamento e visibilidade feminina nos esportes. A perspectiva da abordagem das narrativas adquire novos ares com os estudos de Sandra Jovchelovitch & Martin Bauer (2002) que a entendem como forma de expressão da experiência humana. Dizem:

    O estudo das narrativas conquistou uma nova importância nos últimos anos. Este renovado interesse em um tópico antigo – interesse com narrativas e narratividades - tem suas origens na Poética de Aristóteles e – está relacionado com a crescente consciência do papel que o contar histórias desempenham na conformação de fenômenos sociais (JOVCHELOVITCH, BAUER; 2002, p. 90)

    As narrativas estão longe de serem reduzidas a um novo método de pesquisa, podem ser entendidas como um gênero, uma forma discursiva, pois; narram histórias de vidas, de sociedades e culturas, e são abordadas de modos diversos por filósofos, literatos, antropólogos e historiadores. Com essas premissas explicitadas discutiremos a seguir no hóquei feminino, a trajetória histórica da equipe campeã mundial Las Leonas, que sinaliza a quebra do mito da feminilidade através de algumas matérias divulgadas na imprensa escrita e oral, a saber: os jornais argentinos Clarín e Canchallena e a rede de televisão canal 6 (desportos argentinos). Os três veículos estavam empenhados em manter a população informada sobre as disputas e eventuais conquistas que estavam por vir nesse mundial.

Hóquei feminino, um esporte de confronto: uma afronta à dominação masculina?

    O hóquei é uma modalidade desportiva que entra na classificação dos esportes coletivos de confronto e, é muito praticado em alguns países como o Canadá, Estados Unidos e Inglaterra. Existem várias modalidades de hóquei e, em cada uma, existem federações desportivas especificas que regulamentam o esporte. Assim temos o hóquei de grama, o hóquei sobre patins e; o hóquei no gelo. Vamos nos deter no hóquei de grama, que é jogado entre duas equipes com onze jogadoras que se dividem em: uma goleira, jogadoras de defesa e atacantes. As atletas devem usar equipamentos de proteção projetados especificamente para o hóquei. As jogadoras de campo devem usar equipamentos de proteções para canela, tornozelos, boca e mãos; para a goleira é permitido o uso de proteção para o corpo todo: braço, antebraço, cotovelo, mão, coxa e joelho, caneleiras, bem como proteção para pés e cabeça. Os recursos de proteção denotam que esse é um jogo de confronto corporal intenso, com possibilidade de lances violentos.

    Entre os equipamentos específicos, o item central é o stick (taco): em sua forma tradicional, tem um pegador e a cabeça arredondada que é lisa no seu lado esquerdo. As jogadoras podem ser substituídas a qualquer momento e quantas vezes tal se fizer necessário. O campo é retangular, com 91.40 metros de comprimento e 55m de largura, e pode ser de grama ou material sintético. A bola deve ser esférica, tendo uma circunferência entre 224 e 235 milímetros, ter um peso entre 156 e 163 gramas, deve ser branca ou de outra cor que contraste com a superfície de jogo, deve ser dura com uma superfície lisa, ou com pequenas reentrâncias. O jogo é composto de dois períodos de 35 minutos e um intervalo de 10 minutos. As jogadoras não podem levantar o stick acima da altura dos ombros e nem usá-lo de forma perigosa, não podem mexer, tocar ou interferir nas outras jogadoras, não podem tocar com a parte arredondada do stick na bola, não podem jogar a bola de forma perigosa ou de forma a favorecer uma jogada perigosa. As características acima tornam o jogo complexo e caracterizado por muitos detalhes técnicos (CBHP, 2001).

    As jogadas características dessa modalidade são: o flick que é um movimento que a atleta faz para levantar a bola e é muito usado para bater um pênalti o hit, que é o movimento feito para longas jogadas ou ataque ao gol. A atleta bate na bola de forma mais forte. E o push: movimento usado quando o atleta pretende fazer lançamentos numa distância curta. Ela gruda a bola no taco e faz a jogada (HONÓRIO, 1988).

    As origens do hóquei são pouco precisas, Grieco & Fortti (1998) afirmam que a palavra hóquei é derivada da palavra hoquet que significa cajado de pastor em francês. Sobre as mulheres do hóquei encontram-se poucos artigos, porém há alguns dados nos documentos da Federação de Patinagem de Portugal; lá se lê que o hóquei feminino se desenvolveu mais ou menos simultaneamente em vários países; e que em 1927, foi fundada a Federação Internacional das Associações de Hóquei Feminino, tendo Dinamarca, Inglaterra, Irlanda e Escócia como alguns dos membros fundadores (ALVEZ, 2003). Mas foi somente na década de 1980 o hóquei feminino começou a se estruturar na Europa e em 1991 foi reconhecido como uma categoria nas modalidades de hóquei, surgindo desde então competições regionais, nacionais e internacionais. A primeira competição foi realizada na Europa e contou com a participação de 10 países.

    O hóquei feminino é bastante conhecido no mundo, mas; menos na America Latina, onde a equipe de maior sucesso são Las Leonas, equipe argentina e atual campeã mundial. Com influência das escolas inglesas, o esporte desenvolveu-se na Argentina com maior divulgação que no restante da America Latina. A imagem da leoa representada com destaque para o coração flamejante e as garras afiadas fez dessa equipe um símbolo para os esportes de confronto, indicando novas expectativas para as atletas e colocando-as no centro da mídia desportiva.

As alemãs diziam: “temos que ganhar das leoas”. As leoas diziam: “temos que ganhar o mundial”

    O segundo semestre de 2010 agitou os noticiários argentinos com a possibilidade visível de novas conquistas para a equipe de hóquei feminino. No início de setembro o canal 6 noticiava que, após a eliminação da equipe de futebol masculino na Copa do Mundo e da equipe de Basquete masculino no Mundial, havia uma nova possibilidade de festa para o povo argentino. Em 9 de setembro as Leoas enfrentariam as alemãs nas semifinais do hóquei de grama. Antes de chegarmos à final desse jogo vamos conhecê-las um pouco mais.

    O hóquei na América Latina vêm adquirindo visibilidade graças à equipe Las Leonas, que possui um histórico de vitórias internacionais, que as coloca à frente das melhores seleções do mundo. Suas mais importantes conquistas são: em 2010, o primeiro lugar no Mundial; em 2009, o primeiro lugar na Liga dos Campeões; em 2008, o terceiro lugar nos Jogos de Pequim, o primeiro lugar na Liga dos Campeões, o primeiro lugar no Campeonato Sul-Americano; em 2007, o segundo lugar na Liga dos Campeões, o primeiro lugar nos Jogos Pan-Americanos; em 2006, o terceiro lugar na Copa do Mundo, o quarto lugar na Liga dos Campeões, o primeiro lugar no Campeonato Sul-Americano; em 2005, o quarto lugar na Liga dos Campeões; em 2004, o terceiro lugar nos Jogos Olímpicos; em 2003, o quarto lugar na Liga dos Campeões; em 2002, o primeiro lugar no Mundial; em 2001, o primeiro lugar no Champions Trophy; em 2000, o segundo lugar nas Olimpíadas de Sydney e o quarto lugar na Liga dos Campeões (SAÚL, SONEYRA; 2010).

    No texto Las Leonas: once años de protagonismo (SAÚL, SONEYRA; 2010), os autores recuperam parte da história dessa equipe e lançam a tese segundo a qual las leonas são líderes de um protagonismo social, entendido aqui como estratégia política que objetiva subverter a ordem dominada pelo masculino. O aparato conceitual feminista propõe uma mudança paradigmática para dar conta de novas perspectivas para a corporeidade feminina, pensando as atletas como fortes e determinadas, com destrezas e habilidades impensadas no limiar do século XX (VOTRE, 1996; PFISTER, 2003; HARGREAVES, 2000; BUTLER, 2000). Votre (1996, p. 60), comentando Mangan (1994) diz que:

    Mangan insiste em que os conceitos culturais de masculinidade, estreitamente associados ao esporte, estão prestes a mudar, porque caminhamos para uma sociedade andrógina, em que o poder estará nas mãos da mulher, também conquistado via esporte.

    Os noticiários da Argentina são um exemplo dessa conquista ao relatar a semifinal contra a Alemanha, realizada dia 09 de setembro de 2010. Antes do jogo a mídia esportiva local preocupou-se em saber o que pensavam as atletas de ambos os times. Nas falas, o resultado do jogo já podia ser inferido, pois enquanto as alemãs diziam: “temos que ganhar das Leonas Argentinas”, as leoas argentinas tinham uma meta muito além das expectativas das adversárias: “temos que ser campeãs mundiais” (CANAL 6). Após um jogo tenso veio o resultado desse trabalho: 2 X 1 para Las Leonas, e o melhor, a garantia de vaga para a final contra Holanda no dia 11 de setembro de 2010, cujo resultado mostraremos no curso dessa narrativa. O melhor estava por vir!

Diversidade nos esportes, desconstruindo o mito da feminilidade

    CENA 2: Dia 07 de setembro de 2010 o canal 6, na cidade de Buenos Aires, na Argentina, noticiava que uma conhecida tenista pedia desculpas às atletas de hóquei pelos comentários preconceituosos, ao dizer que esse não era um esporte feminino, a tenista foi a mídia pedir desculpas nas vésperas da final (CANAL 6).

    A idéia de feminilidade assombrou e num certo sentido continua a assombrar os esportes olímpicos e não olímpicos. A imagem da mulher submissa, frágil e mesmo, passiva foi trabalhada pelos poderes médicos, jurídicos e psiquiátricos ancorados no discurso científico. A “naturalização” das mulheres vinculadas à procriação levou a medicina desportiva a postular, por longos anos, que o treinamento desportivo e os exercícios físicos para mulheres, sobretudo nos esportes de força e de confronto, deveriam exigir moderação. Com o pretexto de preservar a saúde das mulheres, tais propostas formulam e consolidam uma tradição discursiva sobre a “natureza específica” da mulher, localizando no corpo feminino as causas da interdição.

    Assim, aprisionadas a seus corpos, as mulheres só fizeram suas primeiras aparições desportivas reconhecidas publicamente, muito depois dos homens (GOELLNER, 2003). Pois a matriz de sentido que define o tipo de atividade que as mulheres podem realizar se dá em função de um conjunto articulado de saberes biomédicos, que estabelecem a maternidade como o objetivo central na vida de qualquer mulher e, além disso, criam o estigma da fragilidade inata e da vulnerabilidade anátomo-fisiológica decorrentes da sua suposta predestinação para procriar, pois a referência é a heteronormatividade, representada pelo par binário homem e mulher universais.

    Entretanto se a participação feminina nos esportes é demarcada por proibições e empecilhos, é também, o lócus de resistências e lutas ao longo da história. Em diferentes épocas e culturas encontramos indícios de práticas desportivas e de treinamento de lutas armadas realizadas por mulheres, bem como de restrições às mesmas. Em Esparta, essas práticas eram constantes, porém não podemos dizer o mesmo de Atenas, onde os esportes eram práticas masculinas. Tais restrições atingiam também o meio acadêmico, pois algumas das primeiras escolas de educação física excluíam a participação das mulheres com o argumento da fragilidade e vulnerabilidade anátomo-fisiológicas.

    Uma das evidências da incompatibilidade do ideário da feminilidade com os esportes de força e de confronto foi a criação do fitness na década de 1980. Esse movimento que ampliou os espaços das academias, antes quase exclusivas para homens, incluiu as mulheres que tiveram entrada pela porta dos fundos. Enquanto nas academias norte-americanas o bodybuilding já havia registrado a presença de nomes como Arnold Schwarzenegger e Lou Ferrigno, as mulheres entravam na onda da ginástica, representadas por Barbie Allen. A ginástica aeróbica foi uma das responsáveis pela participação das mulheres nas academias. Em 1985 o livro "A dança aeróbica" da professora americana Barbie Allen prometia perda de 500 calorias por hora e dava o teor da presença feminina nas academias, um dos alicerces do mito da feminilidade construído nos esportes. A idéia de feminilidade nos esportes foi uma das chaves da entrada do fitness no universo das academias de musculação, ou seja, as mulheres ingressaram não nas atividades de força, mas através do fitness.

    Feminilidade e masculinidade são palavras que carregam demandas e expectativas sociais, tanto em comportamentos corriqueiros quanto na presença ou ausência de mulheres em algumas modalidades desportivas. Votre (1996) pergunta sobre os mecanismos culturais de reprodução na configuração discursiva do homem e da mulher. Em sua revisão da contribuição de James Mangan para os estudos na área ele encontra uma pista nas associações entre masculinidade e violência, diz:

    Os imperativos sexuais, o militarismo e a mitologia da masculinidade, segundo James Mangan, foram realidades construídas. Mangan concebe o esporte como uma forma de desenvolvimento da agressão no homem e na mulher. Na Inglaterra imperial, o esporte foi crucial na socialização e na agressão em relação à masculinidade. Agressividade masculina e feminina cooperavam no sentido de formar o homem, que era construído como instrumento de guerra (VOTRE; 1996, p. 60).

    A marginalização é uma das estratégias que a mídia utiliza para retratar as atletas, celebrando os esportes masculinos e deixando as experiências femininas relegadas a desfile de corpos, projetando as atletas a partir da exploração da beleza e da sensualidade acima de suas conquistas e performances desportivas. Transformar atletas em caras e corpos torneados serve para construção cultural do corpo feminino heteronormativo, instituído sob as bases da hegemonia masculina e da submissão feminina a partir de critérios biológicos, relegando fatores sociais e culturais a um segundo plano. No caso do fisiculturismo isso se torna evidente quando os homens atletas são transformados em heróis cinematográficos e as mulheres com grande muscularidade são excluídas das competições denotando um problema interno ao esporte, pois se as próprias federações criam o estigma, o que esperar da imprensa? (LESSA; 2007).

    No mesmo mês em que a seleção masculina voltou para casa sem participar das semifinais, o Brasil foi representado pela carioca Viviane Romaguera no Mundial de Fisiculturismo NABBA (National Amateur Body Building Association) na ilha de Malta ao sul da Itália. A atleta, da categoria Figure II, enfrentou ilustres figuras da Europa e trouxe o troféu de primeiro lugar para o Brasil. Ela estava disposta a ir além e, no confronto final, nomeado overall (a melhor de todas as categorias) venceu a belíssima russa Maria Bulatova (Figure I) (LESSA; 2010). Alguém no Brasil a viu na grande imprensa nacional? Na Inglaterra, França e Itália Viviane Romaguera é celebridade. Devemos lembrar que a imprensa nacional estava mais preocupada em atacar los hermanos latinos e, assim, não havia espaço para falar de uma mulher musculosa. Quem diria que uma mulher musculosa teria melhor colocação que os milionários craques em confrontos internacionais na mesma época! Somente tivemos notícias dos fracassos do futebol masculino, pois a grande imprensa nada noticiou sobre o troféu máximo do fisiculturismo feminino.

    Goellner (2003) diz que algumas características como suor excessivo, esforço físico, competição, práticas comuns do universo da cultura física, quando relacionadas às mulheres parecem abrandar certos limites que contornam a imagem idealizada de feminilidade. A postura da tenista argentina, mesmo sendo uma mulher, provavelmente, não tenha a dimensão dos danos causados pelo comentário contra Las Leonas de um modo especifico, e contra os esportes femininos em geral. Seu pedido público de desculpas é mais uma encenação nesse grande espetáculo midiático que cria heróis e bandidos. Mas parece-nos que tal comentário pouco afetou as feras do hóquei mundial, que de vitória em vitória chegaram a mais uma final, agora contra as laranjas da Holanda.

Narrativas da mídia desportiva: construindo novos caminhos para o empoderamento feminino nos esportes

    As narrativas da mídia argentina mostram uma postura de empoderamento, quando destacam em seus principais veículos informativos as partidas, os depoimentos e expectativas da seleção de hóquei feminino. Nos mesmos cadernos encontramos noticias do tênis e basquete, entre outros esportes. Entre o dizer o e silenciar existem implicações que dão sentido às práticas sociais. A Argentina já havia fracassado nas competições internacionais do basquete e do futebol feminino, mas teve fôlego para fazer uma grande festa com a presença das Leonas nas finais de hóquei mundial.2

    Uma noticia do jornal Le Monde Diplomatique, da França, veiculada dia 11 de junho de 2010 salta aos olhos e nos faz pensar sobre a questão da divulgação dos esportes femininos na mídia hegemônica. Ficamos sabendo pelo noticiário francês que em 2011 está previsto o Mundial de Futebol Feminino organizado pela FIFA. Quando a seleção feminina francesa disputou a vaga entre as equipes europeias, o incentivo às atletas era noticiado de modo entusiástico: “la cohésion: nom féminin. 1. Solidarité exprimée à chaque instant par Les Bleues”. A Équipe de France Féminine iria disputar dia 20 de junho uma vaga para as finais contra a equipe da Croácia, e a notícia convidava o povo a assistir à partida na rede Direct 8, a realizar-se no Estádio Léo-Lagrange em Besançon (PIRONET, 2010, p. 22).

    No caso francês, a palavra coesão aponta para visibilidade e empoderamento do futebol feminino. Na gramática soletrada no feminino ela vincula-se a solidariedade e, por sua vez, à seleção francesa de futebol feminino, sob a sigla FFF. A notícia veiculada pelo jornal da França, bem como, as narrativas argentinas vistas anteriormente, sinalizam para o que Pfister (1997, p. 92) nomeia de “herstory”:

    Por muito tempo houve muita “history” (história deles) – mas muito pouca “herstory” (história delas). Em grandes estudos sociais, políticos, artísticos ou até mesmo sobre a história do esporte, as mulheres são encontradas, quando muito, nas entrelinhas. Intenções notáveis, conquistas pioneiras, decisões cruciais e grandes feitos parecem ter sido criados exclusivamente para os esforços masculinos.

    E quanto às atletas brasileiras? Onde estão? O que fazem? Existem campeonatos internacionais dos quais elas participam? Onde andará e o que tem feito a jogadora de futebol Marta, cinco vezes indicada como melhor jogadora do mundo pela Féderation Internationale de Football Association (FIFA)? Será que seleção feminina irá participar desse mundial? Silêncio! O silêncio por vezes diz mais que as palavras. A próxima batalha das atletas é com relação à visibilidade na mídia, pois a mesma promove os esportes enquanto espetáculo público. Com a presença marcante na mídia as mulheres atletas ampliam suas possibilidades de patrocínio diminuindo assim a dificuldade pela qual passam os pequenos clubes para investirem nas atletas. O exemplo das Leonas é fundamental para incentivar os esportes femininos nas escolas, clubes e academias.

Considerações finais: rumo ao empoderamento feminino nos esportes

    CENA 3: O sábado ensolarado do final do inverno argentino reuniu milhares de espectadores ao vivo e nas emissoras de televisão. A seleção da Argentina venceu a Holanda por 3 X 1 neste sábado, em Rosário e conquistou pela segunda vez o Mundial feminino de hóquei sobre a grama. Os gols das leoas, como são conhecidas as atletas na seleção argentina, foram marcados por Rebecchi (dois) e Barrionuevo. Cerca de 12 mil pessoas acompanharam a final no estádio em Rosário (CANCHALLENA, 2010).

    Para Hargreaves (2000) o futuro está na união e o segredo do sucesso está na solidariedade feminista. Estas duas afirmativas podem ser lidas, tanto no noticiário francês que anunciava a partida da seleção feminina de futebol como nas noticias sobre as conquistas da seleção feminina de hóquei de grama.

    Notamos a crescente participação das mulheres, tanto em número de atletas como de modalidades, porém, mudanças urgentes precisam ocorrer em relação às barreiras culturais, econômicas, políticas e religiosas que, estão atuantes e, impedem que mulheres adotem a prática esportiva como parte de suas vidas. Além disso, elas ainda estão longe de assumir posições de comando na mídia, administração e treinamento do esporte (HARGREAVES, 2000; PFISTER, 1997). É praticamente insignificante, a presença das mulheres nesses contextos.

    A representação das mulheres atletas em alguns casos e culturas específicas reproduz rótulos historicamente construídos quanto ao gênero. Assim, percebemos que a imprensa contribui intencionalmente ou não, para que preconceitos deste tipo contra as atletas continuem existindo, pois aparecem camuflados pela valorização da estética feminina e pela exigência de conformação com um padrão hegemônico instituído e mantido.

    A maior beleza é a do corpo livre, desinibido em seu jeito próprio de ser, gracioso porque o ser humano é gracioso quando não vive oprimido e com medo. As políticas afirmativas para as atletas estão na ordem do dia é preciso sensibilidade e coragem para trabalhar em prol da visibilidade e empoderamento feminino, lutando, no caso do Brasil em especial, contra o mito da feminilidade que tem sido usado para excluir mulheres que estão fora do padrão hegemônico de beleza e sensualidade.

Notas

  1. Tradução livre do original: “Nerviosismo. Manos transpiradas. Relojes en hora. Miradas que los buscan. Horas, sólo eso, las separan a ellas y a sus garras de lo que más esperaban y deseaban. Ya quedó atrás la preparación para este momento y lo que está por delante es la competencia más importante de sus vidas y los que están ahí, tan cerca, son todos sus familiares y amigos, que no tendrán que hacer largos viajes en avión para poder vivir este Mundial con ellas” (FAIJA, 2010, p. 20).

  2. Uma das questões mais intrigantes na mídia hegemônica do Brasil é a tendência a uniformidade, enquanto em diferentes lugares do mundo a mídia desportiva é variada, fala de esportes.

Referências

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  • CANCHALLENA. El mundial de Hockey en Rosario: Leonas 3 x 1 Holanda. Disponível em: http://www.canchallena.com.ar. Acesso em 13 de setembro de 2010.

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  • GOELLNER, Silvana V. Bela, maternal e feminina: imagens da mulher na revista educação physica. Ijuí: EdUNIJUÌ, 2003.

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  • HARGREAVES, Jennifer. Heroines of sport: the politics of difference and identity. London: New York: Routledge, 2000. 284p.

  • HONÓRIO, E. Aspectos específicos da modalidade. Hóquei em patins. 1988 Disponível em: http://www.esdrm.pt/ensino/licenciatura/programas/MODALIDADE%20DESPORTIVA%20I.pdf. Acesso em: Nov 2010.

  • JOVCHELOVITCH, Sandra; BAUER, Martin. Entrevista narrativa. In:______; GASKELL, George (org.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes, 2002.

  • LESSA, Patrícia. Bodybuilders ou cyborgs? A reinvenção do corpo feminino. Seminário Corpo, Gênero e Sexualidade: discutindo práticas educativas. Anais... Porto Alegre: UFRGS, 16-18 mai 2007. CD-Rom.

  • ______. Viviane Romaguera. Disponível em: http://www.fisiculturismo.com.br/newsletters/materias/viviane-romaguera.php. Acesso em nov. de 2010.

  • PIRONET, Olivier. Coupe du monde de football: passion, diversion, répression. Le Monde Diplomatique. França, 11 de junho de 2010.

  • PFISTER, Gertrud. Lideres femininas em organizações esportivas: tendências mundiais. Movimento. v.9, n.2, Porto Alegre, p. 11-35, mai./ago. 2003.

  • SANTOS, Eugênio. Comunicação e cultura: uma abordagem. 1999. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/5028.pdf. Acesso em: nov. de 2010.

  • SAÚL, Javier; SONEYRA, Santiago Peluffo. Las Leonas y once años de protagonismo. Disponível em: http://www.canchallena.com/1152039-las-leonas-y-once-anos-de-protagonismo. Acesso em: set de 2010.

  • VOTRE, Sebastião. Alternativas teóricas e metodológicas de análise do discurso da representação social da mulher na educação física, esporte e lazer. ______ (org.). A representação social da mulher na educação física e no esporte. Rio de Janeiro: Editora Central Universidade Gama Filho, 1996, p. 11-60.

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EFDeportes.com, Revista Digital · Año 16 · N° 161 | Buenos Aires, Octubre de 2011
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