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A atualidade da educação na perspectiva de John Locke

La actualidad de la educación en la perspectiva de John Locke

 

Graduado em Filosofia pela Unifra/RS, Mestre em Educação

pelo Programa de Pós-Graduação em Educação

da Universidade Federal de Santa Maria (PPGE/UFSM), no Brasil

Doutor em Educação pela PUC/RS. Atualmente, professor

de filosofia, Filosofia da Educação na Universidade do Oeste

de Santa Catarina/Campus de São Miguel do Oeste (UNOESC/SMO)

Autor do livro Locke e a educação, editado

pela Argos (Editora da UNOCHAPECÓ, SC)

Organizador do livro Leituras sobre Nietzsche e a educação,

Juntamente com o Prof. Dr. Altair Alberto Fávero.

Clenio Lago

cleniolago@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          Esta pesquisa trata sobre a relação conhecimento, política e educação, em especial, em John Locke, por entendermos que a forma como pensamos e julgamos conhecer orienta a ação pedagógica em torno de ideais as serem formados. Inicialmente, localizamos o contexto vivido pelo filósofo, o ideário filosófico do autor e sua proposta educacional; e por fim, procuramos evidenciar a relação entre a teoria do conhecimento de John Locke e a sua proposta educacional, no conjunto de seu pensamento. Disto, concluímos que de sua teoria do conhecimento e postura política depende toda sua proposta educacional, pautada pela disciplina em torno do ideal de homem liberal a ser formado, o que, para a época, significou um grande avanço.

          Unitermos: John Locke. Conhecimento. Política. Educação.

 

Abstract

          This research discusses the relation among knowledge, politics and education, particularly related to John Locke’s thoughts, because we understand that the way we think and believe we know determines certain pedagogical action around the ideals being formed. Initially, the author was placed along the history, as well as his philosophical ideas and his educational proposal; and finally, the relation between John Locke’s theory of knowledge and his educational proposal was demonstrated. From this we conclude that of his theory of knowledge and policy stance depends all his educational purpose, guided by the discipline around the ideal of liberal man to be formed, which, for the time, meant a great advance.

          Keywords: John Locke. Knowledge. Politics. Education.

 

          Este artigo é elaborado, com base na dissertação de minha autoria, cujo título é A teoria do conhecimento de Locke e a sua proposta educacional, defendida em agosto de 2000, junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria (PPGE/UFSM).

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Año 16 - Nº 156 - Mayo de 2011. http://www.efdeportes.com/

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1.     Introdução

    John Locke (1632-1704), filósofo empirista inglês, encontra-se na passagem do mundo medieval ao moderno, em um dos períodos mais turbulentos da história da Inglaterra, marcado pelo antagonismo entre a Coroa e o Parlamento, segundo Weffort (1991, p. 81), “[...] controlados, respectivamente, pela dinastia Stuart, defensora do absolutismo, e a burguesia ascendente, partidária do liberalismo”, do qual resultou o Estado Moderno, cujos reflexos se fizeram sentir nas mais variadas áreas, fazendo-se necessário para a compreensão do hoje.

    Descendente da pequena burguesia mercantil e filho de defensores do parlamentarismo, teve sua juventude marcada pela Guerra Civil e, quando na idade adulta, pela consciência de que a ordem não mais poderia estar separada da liberdade. Sua formação foi basicamente retórica e humanista, porém, fora do círculo acadêmico, interessou-se por experiências químicas influenciado por Roberty Boley, pela medicina, através de Sydenham, aprendendo a ler o livro da vida. Outro importante aspecto a destacar foi sua proximidade com o Conde de Shaftesbury, sem o qual, segundo Laslett (1998, p. 38), “[...] Locke não teria sido, em absoluto, Locke”. Ou seja, não foi o Locke catedrático que se transformou no filósofo, no economista, no pedagogo, no teórico da tolerância e num cientista inovador da medicina, mas o Locke conselheiro de um importante político. Ainda nos últimos anos de sua vida, tornou-se conselheiro dos Wighs, ala liberal, e orientou a vida intelectual inglesa, indicando a direção a ser seguida.

    Locke escreveu sobre os mais variados temas, como religião, economia, política, filosofia, educação, etc. Suas obras representam tentativas de resposta aos problemas do seu tempo. Dentre elas, merecem destaque: Carta acerca da tolerância, publicada em 1667, que distingue os campos de ação da Igreja e do Estado; Dois tratados sobre o governo civil, publicados em 1690, os quais refutam o absolutismo e versam sobre a origem e extensão do governo civil; Ensaio acerca do entendimento humano, sua principal obra filosófica, publicada em 1690; Alguns pensamentos sobre a educação, publicados em 1693; A conduta do entendimento, publicada postumamente, em 1706.

    Frente ao exposto, entendendo que a forma como encaramos o mundo serve de referencial à nossa ação pedagógica; que a verdade não está dada e acabada, mas é fruto de um constante processo histórico de revisão e pesquisa, em que o homem é sujeito; que a relação entre o problema do conhecimento e da educação está diretamente ligada ao nosso dia a dia, este trabalho aborda o filósofo empirista inglês John Locke, visando a entender a relação existente entre a sua teoria do conhecimento, sua compreensão política e a sua proposta educacional. Não pretendemos, porém, esgotar o tema, senão propor um momento de reflexão.

2.     Ideário filosófico de John Locke

    Inscrito no círculo daqueles que não aceitavam a verdade como dada no sujeito, mas que depende do objeto pela experiência individual e a natureza a fonte de todo o conhecimento, tem o plano da multiplicidade como base do seu pensar. Sua teoria do conhecimento está exposta na obra Ensaio sobre o entendimento humano, que está dividida em 4 livros:

    No primeiro Livro, trata da refutação do inatismo, em que afirma que as capacidades são inatas, mas o conhecimento é adquirido. Assim, se certos princípios fossem inatos, deveriam subsistir na mente de todos os homens e orientar todas as suas ações, mas a história prova o contrário. Denuncia também que o inatismo leva seus adeptos a aceitarem certas doutrinas sem discussão, sem exame.

    No segundo Livro, aborda a origem das idéias, afirmando ser a mente humana um papel em branco à espera de inscrições e experiência (sensível e reflexiva), a fonte do conhecimento. Também classifica as idéias, percepções presentes na nossa mente, em simples, derivadas unicamente da sensação e da reflexão, não podendo ser criadas nem destruídas, senão que relacionadas e complexas, produto de nossa mente, representam classificações.

    No terceiro Livro, discute os problemas da linguagem (erros e exageros), seu significado e classificação, uma vez que as palavras resultam da necessidade de comunicação e representam idéias. Apresenta possíveis soluções, a fim de evitar confusões, tanto na esfera das relações sociais, como na esfera gnoseológica.

    No quarto Livro, trata da distinção entre conhecimento e opinião, apontando que o conhecimento nada mais é que “A percepção da conexão e acordo, ou desacordo e rejeição, de quaisquer de nossas idéias” (LOCKE, 1988, p. 135), sendo que onde não há percepção, há apenas opinião. Atenta também para o fato de que não devemos assentir qualquer opinião sem antes julgá-la à luz da razão, de forma sagaz e metódica, evitando, dessa forma, os abusos e descontroles da vontade.

    O problema da tolerância é outra questão abordada por Locke, a qual aparece como solução ao problema político-religioso que, em última instância, está ligado ao problema da verdade como a condição necessária ao desenvolvimento cultural e científico.

    O pensamento político, exposto nos Dois tratados sobre o governo civil, escritos com base na relação Locke/Shaftesbury, revela o anseio por uma nova ordem social. Parte da tese de que o indivíduo é o pressuposto a priori do Estado, que tem sua origem no contrato entre homens livres como forma de superar as complicações existentes no estado natural, devendo estar em função dos seus membros, pois os homens são livres por natureza.

    Podemos, por conseguinte, dizer que a verdade, para Locke, não está dada e acabada no sujeito, mas resulta da experiência individual, mediante a percepção dos acordos e desacordos das idéias que temos das coisas e que nos vêm através dos sentidos. A própria razão é uma capacidade a ser desenvolvida pelo treino, uma vez que somos dotados de capacidades inatas a serem desenvolvidas. Enfim, Locke, ao longo do Ensaio, trabalhando o campo do conhecimento, buscou refutar o inatismo e ao mesmo tempo, fundamentar as bases epistemológicas do novo mundo, o mundo burguês, para quem, a natureza é um espaço a se conhecido, transformado e controlado, levando ao cabo a máxima de que saber é poder, projeto já presente em Francis Bacon.

3.     A proposta educacional de John Locke

    Exposta na obra Alguns pensamentos sobre a educação, sua proposta educacional visa à formação do gentil-homem, o homem virtuoso, aquele capaz de agir segundo a razão. Parte do entendimento que o homem é pela educação recebida; que um espírito são em um corpo são é uma descrição breve, porém completa de um estado feliz neste mundo.

    Para tanto, entende que a educação deve começar desde cedo, através do desenvolvimento das capacidades individuais, da formação de “bons hábitos” e estar pautada pelos aspectos físico, moral e intelectual. O aspecto físico representa um conjunto de prescrições médicas, que trata da higiene, estética e fortalecimento do corpo, a fim de o corpo crescer forte e saudável para obedecer às ordens do espírito. Mas, chama a atenção de que o princípio do enrijecimento deve ser tomado com as devidas limitações, já que “a principal coisa que se deve atender na educação dos meninos são os hábitos que se chegam contrair em princípio” (LOCKE, 1986, p. 53) moral. Assim, a formação, em seu aspecto moral, traz consigo o principal objetivo da proposta educacional de John Locke, a formação moral do caráter através da disciplina dos desejos. Ou seja, visa a formar o homem capaz de agir segundo os ditames da razão burguesa. Esta “[...] a virtude somente, a única coisa difícil e essencial na educação [...]” (LOCKE, 1986, p. 102). Em outra passagem, afirma que esta é “[...] a primeira e a mais necessária das qualidades que correspondem a um homem ou a um cavalheiro” (LOCKE, 1986, p. 189). Assim, o que interessa é inculcar princípios, formar hábitos que continuarão exercendo seus benefícios pelo resto da vida. Com base na interpretação em Pierre Bourdieu, visa a formar os novos habitus (a estrutura estruturante do mundo burguês frente ao medieval). O aspecto intelectual visa a levar o espírito a aprender a aprender, tornar-se apto a qualquer conhecimento, a qualquer ciência, através do desenvolvimento das capacidades individuais, pelo exercício, para que, no momento oportuno, saiba fazer bom uso delas. A instrução em Locke não tem um fim em si, senão que ser um meio a qualidades mais altas, no caso do gentil-homem.

    Locke também propõe que a educação do jovem cavalheiro deve ser complementada com instruções de baile, de música, de esgrima, de equitação, com a aprendizagem de um ofício e coroada com viagens ao exterior, a fim de melhor aprender línguas estrangeiras e fazer-se mais sábio e prudente ante no convívio com os mais diversos tipos de homem. Nesse momento, ganha destaque a virtude da tolerância. Nesse meio, o educador tem o papel de modelar a conduta e formar o espírito do educando, inspirar-lhe o amor pela ciência, enfim, educar para a vida.

    Sua proposta educacional é, basicamente, de cunho moral com vistas à formação de “bons hábitos”, à constituição e à preservação da sociedade burguesa. Pensou a formação do homem burguês, da sociedade burguesa. De forma mais ampla, o habitus do novo mundo.

    Esse princípio de produção, incorporado nos próprios sujeitos, Bourdieu denomina “habitus”, entendido como sistema de disposições duráveis estruturadas de acordo com o meio social dos sujeitos e que seriam “predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações” (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004, p. 27).

    Nem por isso, devemos desconsiderá-lo, pois proporcionou muitos avanços no sentido de tornar o homem mais humano.

4.     Conhecimento, política e educação em John Locke

    Ao buscar estabelecer a relação entre a teoria do conhecimento de John Locke, sua visão política e sua proposta educacional, devemos ter presente que o pensador em estudo é um filósofo empirista inglês, homem do seu tempo, que combate o inatismo e suas decorrências; o qual entende que as capacidades são inatas e o conhecimento é adquirido, portanto, aborda a verdade como resultado de uma busca histórica, em que todos somos sujeitos do processo; e que o ideal de homem a ser formado é o gentil-homem, aquele capaz de conhecer, de estabelecer relações, enfim, de agir, segundo os ditames da razão, essa lei natural, que, acima de tudo, visa a formar o novo habitus. Para tanto, relacionou-se política e educação na inflexão com a teoria do conhecimento.

4.1.     A refutação do inatismo e a educação

    Locke entende por inatismo a doutrina que afirma que certos princípios se encontrariam impressos na alma humana desde o momento de sua concepção, subsistindo, estimulando e dirigindo as ações de todos os homens em todas as circunstâncias.1 Contra tal doutrina, afirma “[...] que a capacidade é inata, mas o conhecimento adquirido” (LOCKE, 1988, p. 14) e que “a maneira pela qual adquirimos qualquer conhecimento constitui suficiente prova de que não é inato” (LOCKE, 1988, p. 13), uma vez que se necessita de experimentação, de raciocínio, de discurso, que, por sua vez, requer o exercício da mente. A ignorância e a morosidade provam a não existência de princípios e verdades inatas e o conhecimento emerge da ação conjunta entre os sentidos e a razão, serve de referência à conduta humana.

    Dessa forma, buscou demonstrar contra Descartes e todos os que partem das idéias à realidade que todo o conhecimento provém da experiência (sensitiva e reflexiva), da realidade à idéia, do particular ao universal, do indivíduo à sociedade. Negou ser a mente pura substância pensante e o corpo apenas uma máquina apontando que o homem é, ao mesmo tempo, um ser sensível e racional. Mostrou que a razão2 é falível, não é criadora de princípios nem dos materiais do conhecimento, idéias simples, cuja unidade é uma conquista através da disciplina e do exercício, a instituir-se como guia de nosso saber e de nossa conduta, na medida em que se constitui no referencial à crítica radical da tradição, do saber por ouvir dizer.

    Segundo Abbagnano (1982, p. 61),

    A reforma radical que Locke operou no conceito da razão tem como finalidade adaptá-la à sua função de guia autônomo do homem num campo que não se restringe à matemática e à ciência natural, mas abraça todas as questões humanas. A própria investigação gnoseológica de Locke nasce num terreno que não é o do conhecimento teórico, mas o dos problemas humanos.

    Com essa inversão da lógica do processo do conhecimento questionou o jeito tradicional de fazer ciência; atacou o dogmatismo e a esterilidade científica por a ciência estar desligada do real e descomprometida com a verdade das coisas, senão que também voltada aos interesses pessoais; apontou que o mundo estaria mais avançado, se não fosse a mesquinhez a invalidar a ciência e a filosofia.3  Segundo Hernandes (1991, p. 6),

    O essencial da crítica aos preconceitos centraliza-se [...] no comportamento do sujeito epistemológico que acolhe ou professa certa opinião sem submetê-la a determinadas provas. É o caráter acrítico, antiético do preconceituoso que está em questão.

    Dessa forma, estando por uma postura ético-intelectual, libertou o homem, o saber das amarras tidas como “naturais” chamando-o, através do exercício dos seus próprios poderes, tanto na busca do conhecimento quanto na prática, à liberdade, a ser sujeito do processo histórico e não mais escravo das forças alheias. Reconheceu-se como o empregado que tem a função de limpar os entulhos do caminho do saber ao buscar analisar criticamente o processo do conhecimento, apreciar e justificar a nossa capacidade de certeza. Assim, sua solução ao problema do conhecimento privou os espíritos das idéias recebidas como sendo inatas, convidando-os a olhar o mundo de forma crítica, o que lhe rendeu a inimizade dos ortodoxos e conservadores. Segundo Ghiggi e Oliveira (1995, p. 20), ao negar o inatismo, Locke

    [...] assume um posicionamento crítico (político) diante do comportamento dos homens na construção do saber. [...] tece duras críticas ao dogmatismo metafísico vigente em seu tempo. Afirma que quando se descobriu que algumas proposições gerais não poderiam ou não deveriam ser questionadas, para que o poder não fosse abalado, tal defesa foi feita a partir da idéia de inatismo de tais proposições.

    Foi, conforme Sciacca (1966, p. 427), “[...] o primeiro destruidor consciente e sistemático da idéia no sentido do idealismo objetivo”, esperando, com isso, demolir os privilégios decorrentes dos princípios inatos aceitos com base na autoridade sem exame e reflexão. Abriu, assim, o caminho ao indivíduo que antes era obrigado a um sistema de submissão, intolerância e desrespeito e ao mesmo tempo, colocou em suas mãos o livre-arbítrio. A ruptura com o inatismo, promovida por Locke, processou-se também no campo político. Ao apontar que o poder não é inato e não tem origem divina, mas é originário do contrato entre indivíduos livres, estando o Estado para seus membros, destronou o absolutismo, posição advogada por Robert Filmer, defensor da origem divina do poder do monarca e do homem como sendo naturalmente escravo. Dessa forma, desempenhou importante papel na consolidação da nova ordem política. E os ataques de Locke contra o inatismo

    [...] foram causa, em grande parte, das críticas dirigidas ao seu Ensaio, pois Locke questionava as bases da religião e da moral, recomendando o livre exercício das faculdades e, nesta perspectiva, na política, Locke substituía a obediência cega pelo consentimento. [...] É, antes, esta maneira de circunscrever e de salvaguardar uma ilha do mar imenso onde o olhar se dissolveria (NODARI, 1999, p. 14).

    Dessa forma, ao tratar da refutação do inatismo feita por Locke, devemos ter presente que não era o inatismo enquanto tal que Locke atacava, mas “eram, especificamente, os princípios de conhecimento e de ação moral, com suas idéias concomitantes, que eram rejeitados como inatos” (YOLTON, 1996, p. 132), pois entende que a natureza infundira no homem o desejo de felicidade e de aversão à miséria, disposições inatas a serem consideradas e capacidades que, se desenvolvidas, trabalhadas, auxiliariam na conduta. Representou, assim, uma ruptura “necessária” ao avanço da nova ordem sociocultural.

    No campo educacional, a crítica ao inatismo também teve seus efeitos, efeitos que julgamos importantes, devendo, portanto, ser analisados neste momento, uma vez que representou a ruptura com o modelo educacional que sustentava a verdade como acabada, suas decorrências e, ao mesmo tempo, preparou o alicerce à nova proposta, tendo em vista a verdade como produto de uma constante revisão histórica, com base na experiência individual.

    A crítica ao inatismo, que tem por trás um ideal de homem e de sociedade, minou a idéia de que a criança é um adulto em miniatura, possuindo o mesmo equipamento intelectual fundamental que se encontra na mente do adulto, uma vez que Locke entende que o homem tem disposições, capacidades inatas a serem desenvolvidas pela educação e o conhecimento é adquirido.4 Rompeu também com a doutrina da depravação humana contida na doutrina das idéias inatas, defendida pela maioria dos educadores e pelos teólogos da época, cuja influência era marcante nas práticas educacionais ao entender que os homens nascem todos iguais e são o que são pela educação recebida e não maus por natureza. Abalou a idéia do homem plenamente passivo, por conseqüência, a de que a educação estaria basicamente centrada na memória. Abriu a possibilidade de a educação desenvolver o intelecto como instrumento de busca da verdade, de autocontrole e de autonomia ao desbancar o ideal de homem cortesão e propor o gentil-homem, o homem racional.

    Assim, quando concebeu o homem como potência, agente passivo e ativo, e a verdade como um conhecimento adquirido com base na experiência individual, abalou a idéia do professor ditador de verdades inquestionáveis e do aluno receptáculo5, pois agora a educação volta-se para a busca do conhecimento. Repudiou os abusos disciplinares e os castigos constantes e indevidos, evidenciando que “[...] a grande severidade nos castigos faz muito pouco bem e, pelo contrário, muito mal na educação; [...] os meninos mais castigados são os menos aptos para serem os homens melhores” (LOCKE, 1986, p. 75), uma vez que uma disciplina assim fará um homem submisso, sem iniciativas e/ou um profundo revoltado. E complementa dizendo que “o método que se segue de ordinário nos colégios para ensinar é tal, que, depois de refletido, não posso resolver-me a recomendá-lo” (LOCKE, 1986, p. 219).

    Como saída propôs uma educação centrada no prazer, no gosto, abrindo caminho à deposição da pedagogia do medo, pois

    A rígida disciplina do letágio está fundada sobre outros princípios, pois não tem atração alguma, no que diz respeito ao humor que o menino tem, nem estuda os momentos favoráveis em que se desperta a afeição. E, em efeito, quando se tem exercitado a aversão dos meninos pela violência e pelos golpes, seria ridículo esperar que abandone o jogo voluntariamente e por seu gosto, e que por si mesmo buscará as ocasiões de estudar (LOCKE, 1986, p. 106).

    Propôs uma nova estrutura curricular baseada não mais na especificidade lingüística da retórica e da lógica, mas na idéia de que a educação deve formar para a vida mediante o desenvolvimento das potências individuais com vistas ao fim desejado6, vinculando a instrução à educação ao prazer e à alegria, ao útil, ao agradável e não mais ao medo e à dor7. Segundo Eby (1976, p. 256),

    [...] a educação tem sido muito prejudicada pelo realce dado à aprendizagem das línguas e à aquisição de palavras sem um correspondente desenvolvimento do pensamento. Essa grave fraqueza fora apontada por outros reformadores; contudo, até a análise da linguagem feita por Locke, ninguém havia explicado claramente a dificuldade. Nenhum golpe maior foi jamais dirigido à tendência de tornar a educação predominantemente lingüística.

    Conforme Gilles (1987, p. 173), a crítica de Locke

    [...] se levanta contra o classicismo decadente que perdera toda a relevância social, e contra o sistema escolar que se recusava a pôr em prática novos métodos pedagógicos. [...] a introdução de técnicas pedagógicas baseadas numa melhor compreensão de processos psicológicos. Reconhece a necessidade de um programa de estudos muito mais rico em termos de conteúdo. Este deve incluir matérias científicas e estudos sociais.

    Locke mostrou que a educação deve estar voltada à vida; que o caráter é uma construção difícil que deve ser desenvolvida com muita atenção; que a faculdade racional emerge tardiamente na vida da criança e se desenvolve a partir do exercício da mente, sendo necessária a formação do hábito como o coroamento do processo educativo, que deve estar voltado à vida e não mais à erudição.

    Com sua crítica ao inatismo, Locke desbancou a idéia de que a verdade está dada como pronta e acabada, mas é resultado de um processo histórico, com base na experiência individual ética. Ao mesmo tempo, rompeu com o ideal educativo que sustentava a estrutura sociocultural vigente e preparou o terreno ao novo ideal de mundo, cuja base seria o homem racional burguês como condição à felicidade. Segundo Eby (1978, p. 250), o inatismo dava apoio “[...] a todos os princípios tradicionais e escolásticos que eram usados como justificativas para as condições decrépitas da Igreja, do Estado, da sociedade e da escola” e representava a barreira suprema ao progresso intelectual, moral e cultural da época.

    A ruptura promovida por Locke, que se efetivou não somente no campo gnosiológico, senão pelo menos no plano político, educacional e cultural, não foi uma ruptura inconsciente e inconseqüente, pois estava seguro de que, se os fundamentos dessa reforma não repousassem sobre a educação da juventude e sobre os bons princípios que esta deveria proporcionar, todos os esforços seriam supérfluos ou de nada adiantariam. Tal ruptura deu-se num momento suficientemente maduro para tal8, preparando o terreno ao novo ideal sociocultural, cuja base é a multiplicidade.

4.2.     A origem das idéias e a educação

    Inicialmente, devemos considerar que Locke entende o homem como criatura de Deus, naturalmente livre e racional, dotado de capacidades inatas, cuja mente é “[...] um papel branco, desprovida de todos os caracteres, sem quaisquer idéias [...] quarto escuro [...] um armário totalmente vedado contra a luz [...]” (LOCKE, 1988 p. 27, 49 e 50); que o conhecimento é adquirido, a experiência (sensação/externa e a reflexão/interna) como a fonte de todo o conhecimento e o homem racional.

    Assim, ciente da vulnerabilidade da alma humana e do momento histórico vivido, imaginando que “[...] o espírito dos meninos toma este ou aquele caminho tão facilmente como a água” (LOCKE, 1988, p. 32), que o conhecimento se dá de fora para dentro9 e que o homem é pela educação recebida, mais que depressa, Locke buscou trabalhar com a sugestionabilidade humana, pois conforme Hernandes (1991, p. 44), “a força dos costumes, das opiniões difundidas é de tal porte, que é capaz de romper, até mesmo, um instinto natural, um dos mais altos e universais interesses do homem [...] a existência do instinto de autopreservação [...]”.

    Como os instintos naturais de autopreservação são insuficientes para fazer frente aos costumes e às opiniões alheias, buscou vincular a sensação e a reflexão e torná-las base do processo educativo, reforçando e negando os caracteres naturais, segundo o ideal a ser alcançado. Sendo a experiência sensível, a porta de entrada às idéias simples, aos materiais do conhecimento, ela constitui-se no primeiro momento tanto da ação cognitiva quanto da ação educativa. Mas, chamou a atenção de que a ação pedagógica deve ser conduzida com cuidado e com sabedoria, segundo o desenvolvimento natural da criança, proporcionando experiências em vista do fim: por um lado, salvando e desenvolvendo as disposições naturais voltadas para o bem e disciplinando-as; por outro, freando as inclinações para o mal e incutindo-lhes os referenciais da ação humana, uma vez que o caráter germina e frutifica em torno da experiência individual, com base na relação bem/prazer e mal/dor. Conforme Locke (1988, p. 45),

    As idéias, porém, que na realidade marcam inicialmente as impressões de modo profundo e permanente, são as que vêm acompanhadas pela dor e prazer. Uma vez que a principal tarefa dos sentidos consiste em fazer-nos observar tudo o que causa mágoa ou proveito ao corpo, coube à natureza ordenar com sabedoria, [...] que a apreensão de várias idéias deve ser acompanhada pela dor, preenchendo, desta maneira, o espaço para a ponderação e o raciocínio nas crianças.

    Estes, o prazer e a dor, na obra Alguns pensamento sobre a educação, Locke (1986, p. 80) os concebe como “[...] os ferrões que excitam a ação e como as rédeas que guiam o gênero humano inteiro”, pois, como afirma em outra passagem, “a única coisa que tememos, naturalmente, é a dor ou a privação do prazer” (LOCKE, 1986, p. 161). Assim, sendo as crianças muito sensíveis aos elogios e ao desprezo, ao prazer e à dor, a educação deve proporcionar, cuidadosamente, a inculcação de referenciais à vida virtuosa, associando prazer à felicidade e vício à infelicidade.10

    Para Jorge Filho (1992, p. 277-278), a proposta educacional de Locke

    [...] antes, cumpre sensibilizar a criança para um critério de reputação em sintonia com a lei de natureza, mesmo que divirja dos costumes sociais. A educação lockiana tem como propósito, não a adaptação a estes, mas a libertação de sua influência corruptora. [...] possibilitar a ascensão gradual da razão ao governo do entendimento e da vontade.

    Se as alterações ocorridas em nosso corpo não forem percebidas e não chegarem até a mente, não teremos a matéria do pensamento a ser trabalhada e relacionada, não existindo conhecimento e nem educação, pois tanto o processo do conhecimento quanto o educativo se dá de fora para dentro. Como Locke visa a formar o homem virtuoso, o gentleman apto a buscar o conhecimento e comportar-se como é devido em sociedade burguesa, valendo-se deste processo lógico, preferiu a educação doméstica, a fim de melhor proporcionar e controlar experiências positivas relacionadas ao prazer e negativas relacionadas à dor, em torno do ideal a ser formado, criando o desejo de ser virtuoso, pela canalização das vontades ao ideal de sociedade burguesa. Para tanto, apontou que a educação deve começar desde cedo, visto entender que a maior parte dos homens é pela educação recebida. O que está em jogo é a vulnerabilidade humana, pois

    Quando as crianças chegam ao mundo pela primeira vez, encontram-se rodeadas por uma infinidade de coisas novas, que, por constante solicitação de seus sentidos, orientam a mente constantemente para elas, avançando para observar de novo, e se deliciando com a variedade cambiante de objetos. São, assim, os primeiros anos usualmente empregados e entretidos em olhar para fora. [...] assim, crescendo com a atenção constante para as sensações externas, raramente os homens fazem alguma reflexão considerável sobre o que ocorre com eles, até atingirem a idade adulta; e alguns raramente, e mesmo jamais (LOCKE, 1988, p. 29).

    Como não nascemos adultos, como nossas capacidades não se encontram desenvolvidas e somos muito vulneráveis, Locke propõe a formação de “bons hábitos” como a forma mais eficaz do processo educativo, sempre considerando o desenvolvimento natural da criança. Segundo Hernandes (1991, p. 70), “a preferência de Locke pelo hábito resulta do seu reconhecimento acerca da inutilidade de pretender-se moldar a mente infantil recorrendo-se à explicitação e à memorização de regras e preceitos. [...] Contra a ineficácia das regras, temos a eficácia da prática” (grifo é da autoria). Ainda conforme Hernandes (1991, p. 86), para Locke, o hábito “[...] tem, na realidade, qualificação positiva quando ligado a questões práticas, disciplinares ou de eficiência, tanto física quanto mental. Entretanto, o hábito não desfruta, em Locke, de status teórico, epistemológico”. Sua importância está vinculada à ação prático-pedagógica, proporcionando a armadura necessária à busca do conhecimento e à conduta ética, à medida que determina subordinar à razão todas as opiniões e instintos, mas não sua sustentação, pois é carregado de irracionalidade.

    Enfim, tanto no processo do conhecimento como no educativo, Locke vale-se da mesma lógica. Ambos se dão de fora para dentro, com base nas experiências individuais que, na ação pedagógica, devem ser orientadas a moldar a mente e o caráter em vista de um padrão ideal de comportamento, através da instauração de bons hábitos. Por exemplo, o de subordinar tudo aos pressupostos da razão. Não esqueceu, porém, de chamar a atenção às disposições naturais, às individualidades, como que se desculpando de ter tratado a mente humana como uma tabula rasa.

4.3.     A linguagem e a educação

    Considerando o problema da linguagem na sua relação com a educação, devemos ter presente que o pano de fundo é o problema do conhecimento e o das relações sociais. Assim, o mau entendimento pelo uso desconhecido ou abusivo das palavras,11 prejudicando o processo do desenrolar do conhecimento, bem como das relações sociais, já era descrito por Francis Bacon, ao sinalizar a necessidade de superar os ídolos da linguagem, a fim de que as relações não se constituam de forma errônea. É, portanto, necessário saber como se dá o processo de formação das palavras, uma vez que estas servem para registrar, com clareza, nossos próprios pensamentos, idéias, auxiliando nossa memória na comunicação e no bom entendimento do plano das relações sociais. “O essencial são as idéias, mas como as palavras são auxiliares preciosos e um véu perigoso (são sinais de sinais), faz-se necessário uma semântica. Locke se interessa, pois, pela linguagem como instrumento do conhecimento e possível fonte de distorção” (MICHAUD, 1986, p. 105). Acima de tudo, chama a atenção para o fato de uma linguagem ser clara e objetiva, projeto que constituirá a essência da linguagem na modernidade. Dessa forma, sugeriu tomar cuidado com o uso de palavras sem significados, no caso, sem correspondência com a realidade das coisas, a fim de usá-las de forma clara e distinta, com significado explícito. Apontou a definição das palavras como “[...] um meio pelo qual o sentido pode ser conhecido com certeza, sem deixar qualquer lugar para ser contestado” (LOCKE, 1988, p. 130), facilitando o convívio social e a promoção do conhecimento. Conforme Michaud (1986, p. 106), neste programa de crítica e correção dos meios da linguagem,

    Não se trata apenas de evitar os abusos. O programa empirista de observação e de história natural deve ser registrado e comunicado. Tal deve ser a tarefa de uma característica, de uma linguagem adequada para apreender e transcrever as propriedades das coisas. É uma das preocupações principais dos anos 1660-1670.

    Nesta perspectiva, ou seja, do empirismo, Locke (1988, p. 132) diz que

    Seria, portanto, desejável que homens versados em pesquisas físicas e familiarizados com vários tipos de corpos naturais estabelecessem estas idéias simples com as quais observam os indivíduos de cada classe concordar constantemente; isto corrigiria grande parte desta confusão que deriva de várias pessoas aplicarem o mesmo para uma coleção de maior ou menor número de qualidades sensíveis, proporcionalmente mais ou menos com o que tem sido sua familiaridade com eles, ou pelo exame acurado das qualidades de qualquer classe de coisas que estão sob uma denominação.

    Locke relaciona a educação à promoção do uso correto da linguagem, que emerge como meio e não mais como fim em si, a fim de evitar os mal-entendidos, os exageros e as distorções ao longo do processo do conhecimento e das relações sociais. Enfim, conforme Ghiggi e Oliveira (1995, p. 24), “[...] há de se educar o indivíduo para o uso disciplinado da linguagem que favorece a retidão do conhecimento” pois, segundo Locke (1988, p. 91), “quando um homem fala com o outro, o faz para que possa ser entendido; e o fim da fala implica que estes sons, como marcas, devem tornar conhecidas suas idéias ao ouvinte”. Contudo, neste campo, Locke sugere o exame da linguagem para o reto pensar, problema este que será desenvolvido mais tarde pelo empirismo lógico.

4.4.     Conhecimento, opinião e educação

    Parece-me, pois, que o conhecimento nada mais é que a percepção da conexão e acordo, ou desacordo e rejeição, de quaisquer de nossas idéias. Apenas nisso consiste. Onde se manifesta esta percepção há conhecimento, e onde ela não se manifesta, embora possamos imaginar, adivinhar ou acreditar, nos encontramos distantes do conhecimento (LOCKE, 1988, p. 135).

    A verdade consiste numa investigação de várias épocas. Assim sendo, todos os homens pesquisam ou pretendem pesquisar (LOCKE, 1988, p. 159).

    Se o conhecimento é a percepção dos acordos e desacordos entre as idéias presentes na nossa mente e a coisas, frente ao hipotético, à opinião e à possibilidade do erro, Locke (1988, p. 209) sugere o uso cauteloso e metódico da razão, apontando que “[...] todos devem cuidadosamente averiguar o que admitem por princípio, examiná-lo acuradamente, e ver se ele sabe com certeza que se trata da verdade de si mesmo, por sua própria evidência, ou se o faz apenas com a segurança de que acredita sê-lo, com base na autoridade de outros”. E continua afirmando: “[...] um homem deveria abraçar uma opinião quando já tem examinado [...]” (LOCKE, 1986, p. 334). Porém, o nosso conhecimento não alcança o julgamento baseado na probabilidade, por isso deve suprir “[...] o defeito de nosso conhecimento e orientando-nos onde ele falha [...]” (LOCKE, 1988, p. 192) tem em vista a conformidade com nossa experiência e o testemunho de outrem. Assim, o julgamento emerge como guia, “o meio em que o homem recorre em última instância, para dirigir seus atos [...]” (LOCKE, 1992, p. 3). Sendo assim, a educação está para o desenvolvimento das capacidades individuais, para formar o homem racional, consciente de si, conhecedor e capaz de, diante das paixões, agir conforme a orientação da razão, mas como base na verdade de que depende do mundo dos fatos. Para tal desenvolvimento, entendendo que os defeitos e as dificuldades do entendimento, como das demais faculdades, devem-se ao uso incorreto de nossa mente.

    Dessa forma, Locke propõe o desenvolvimento da mente, especialmente através dos exercícios matemáticos, parecendo cumprir as orientações presentes em O discurso de método de Descartes, embora negue seu inatismo. Locke diz ser necessário estimular a curiosidade respondendo às perguntas dos meninos com seriedade e não de forma enganosa, explicando o que desejam conhecer, sem confundir, falar dos grandes conhecedores do assunto e colocá-los, de vez em quando, diante de coisas estranhas e novas, a fim de provocar seu espírito investigativo e dar-lhes ocasião de encaminhar-se neste assunto. Assim, orienta como desenvolver um espírito investigativo, para não aceitar o conhecimento como inato, ao mesmo tempo em que desenvolve as habilidades racionais significativas à autonomia.

    Somente o que assim deseja orientar a mente para que investigue em todas as partes em busca da verdade pode estar seguro de que quando empenha o pensamento entrarão idéias claras em sua cabeça e de que não deixará de julgar, sem inclinações pessoais, o que recebe nos escritos ou discursos dos demais (LOCKE, 1986, p. 286).

    Enfim, propõe o desenvolvimento das faculdades da mente, com base na disciplina, visando ao correto entendimento, à correta percepção de acordos prováveis ou visíveis entre as idéias, noções claras e distintas das coisas, a fim de que o homem possa agir de forma correta e não segundo as paixões, pois entende a verdade como sendo “[...] absolutamente simples, absolutamente pura, não está mesclada com coisa alguma. É rígida e inflexível a qualquer interesse, e assim, deveria ser também o entendimento, cujo uso e excelência fundamenta-se em conformar-se à verdade” (LOCKE, 1986, p. 304).

    Embora John Locke represente o espírito de transição entre o mundo medieval e o moderno, foi, antes de tudo, o autor de uma obra de intuição, de percepção, imaginação e de profunda originalidade, com base na experiência do novo mundo que surgia. Sua construção é um sistema aberto, na medida em que revela a preocupação com a busca do não conhecido. “Este novo é definido pelos que sabem e têm condições intelectuais. No caso de Locke, o novo a ser construído fica a cargo da classe dominante. O autor marca a sua investigação com uma postura liberal e conciliadora. Sua obra é produzida em função do seu amor à tolerância e às ciências positivas” (GHIGGI; OLIVEIRA, 1995, p. 25). E, assim, expressando os anseios da burguesia ascendente, que já havia conquistado a independência civil e política e se preparava para dominar o mundo dos negócios, Locke propõe uma nova concepção epistemológica de mundo, de história e de educação, baseada na experiência.

5.     Conclusão

    Ao tecer as considerações, é importante considerar que John Locke é um filósofo empirista e um típico representante burguês, que se encontra no período de afirmação e fundamentação do Estado Moderno, do liberalismo ante o absolutismo, que tem suas bases tanto gnoseológicas, políticas e educacionais assentadas no inatismo. Ou seja, Locke viveu em um momento de profundo choque entre verdades que se pretendiam absolutas e o hipotético, propondo o conhecimento como probabilidade.

    No campo religioso, distinguiu a fé da razão, a Igreja do Estado. Atentou para a razão como o grande referencial, como forma de salvar o indivíduo e controlar as barbáries. Foi intolerante para com os ateus, pois a crença em Deus é, para Locke, o fundamento último da moral a assegurar a nova ordem, sobretudo, para com todos aqueles que, quer indivíduos ou seitas, reivindicavam para si as obediências dos demais sem ter-lhes sido dado este direito.

    No campo político, abalou a idéia do poder enquanto origem divina e a de que o homem é escravo por natureza, ao mostrar que o poder não é inato, mas resultado do pacto entre homens livres e que o Estado deve estar em função dos seus membros e não o inverso. Desempenhou, assim, importante papel na constituição da nova ordem política. Sua postura de conhecimento também serve de sustento a sua postura política, à medida que compreende que as idéias complexas resultam da associação entre as idéias simples e considera os indivíduos livres, em estado natural (substâncias simples), que, por livre vontade, associam-se e formam a sociedade liberal, o Estado Moderno. Este quadro é evidente, se considerarmos a postura de Locke frente ao contexto da época e seu quadro de relações, no caso, com Isaac Newton (física atômica) e Robert Boyle (química moderna), para os quais, o átomo ou a substância simples seria o elemento primordial indivisível em si, o que constituiria o indivíduo como uma unidade autônoma capaz de tomar suas decisões.

    No campo educacional, rompeu com a proposta educacional decorrente, predominantemente intolerante, que sustentava o ideal cultural inatista, em que a verdade aparece como sendo dada, o professor como ditador de verdades; o aluno apenas como ser passivo. Depositou na Educação grande confiança e responsabilidade, pois entendeu que os homens, em sua maioria, o são pela educação recebida.

    Assim, consciente das necessidades vigentes e de que o êxito da reforma deveria passar pela educação, buscou trabalhar com a sugestionabilidade humana. Orientou o processo educativo com vistas à formação do homem virtuoso, aquele capaz de conhecer, julgar e agir segundo os critérios da razão e não da emotividade, sem desconsiderar as individualidades, as disposições inatas. Para tanto, valeu-se da lógica de que o conhecimento se dá de fora para dentro, através da experiência sensitiva e reflexiva e, baseando-se na sensação de dor e de prazer, entendia como as molas da vontade e do querer, indicou que a Educação deveria proporcionar experiências positivas e negativas, necessariamente, controladas em vista de um comportamento ideal a serem reforçadas com exemplos e recompensas. Ainda, nesse sentido, orientou a educação à busca do conhecimento a partir do desenvolvimento das faculdades mentais, com base em exercícios matemáticos, no despertar da curiosidade mediante viagens e novas experiências, pois entendia que o novo homem deveria ser sujeito no processo do conhecimento, pois este se constitui no grande referencial à conduta humana. Também orientou a educação para o uso correto da linguagem, pois desta também dependia o avanço científico e as relações sociais na nova sociedade. Considerando a relação entre a Teoria do Conhecimento, política e educação, destacamos que a proposta educacional centrada na disciplina, com vistas a formar “bons hábitos” e através deste o ideal de homem burguês, depende diretamente de como o filósofo compreende o processo do conhecimento: de fora para dentro.

    Em síntese, o que move este estudo e confere sua atualidade está na compreensão de que, mesmo com a crise de valores vivida hoje em meio à globalização mercadológica, suas orientações educacionais centradas na disciplina (dor e prazer) constituem importantes referenciais às ações cotidianas. Estes parecem constituir a máxima seguida hoje, presente na expressão popular errônea: “Manda quem pode e obedece quem tem juízo”, o que desvirtua a noção de juízo, na medida em que associa juízo à subjugação, à força dominante, relação que não somente perpassa as macrorrelações, mas também as microrrelações de poder, pois como sinaliza Nietzsche: todo homem é uma vontade de poder. Ao contrário, concebemos juízo, aqui, como base da liberdade possível no jogo intersubjetivo, que exige reconhecimento mútuo e não unilateralidade absoluta. É nesse sentido que perguntamos a John Locke, através de seus textos, como podemos compreender a realidade de hoje, mesmo que multifacetada, ou como muitos a chamam, de pós-moderna, ou de modernidade líquida, ou ainda de período de crise. O diálogo com este sábio filósofo, que esteve, como é conhecido classicamente, nos primórdios da instituição do liberalismo político, revela as estratégias do poder, as quais perpassam não somente a educação, mas todas as instâncias da vida e recheiam as relações pedagógico institucionais, especialmente quanto à lógica da dominação. Estando, de forma sutil, nas ações coercitivas, ou de forma brutal, nas ações punitivas, pois a dor e o prazer são, para John Locke, as rédeas que guiam e excitam o gênero humano inteiro. É nesse viés que encontra sua profunda vinculação com a Educação Física, ao fazer sentir na carne e com isso, na essência, as reentrâncias do poder, com vistas à idealidade projetada no âmbito das relações de poder. Ou seja, está diretamente relacionado com o papel da educação hoje.

Notas

  1. “Consiste numa opinião estabelecida entre alguns homens que o entendimento comporta certos princípios inatos, certas noções primárias, Koinai‘énoia, caracteres, os quais estariam estampados na mente do homem, cuja alma os recebera em seu ser primordial e os transportara consigo ao mundo” (LOCKE, 1988, p. 13-14).

  2. “[...] é a faculdade pela qual o homem é suposto distinguir-se das bestas, e pela qual é evidente que ele as ultrapassa [...] Com efeito, como a razão percebe a conexão necessária e indubitável de todas as idéias ou provas entre si, em cada passo de qualquer demonstração que produz conhecimento, do mesmo modo percebe conexão provável de todas as idéias ou provas entre si, em cada passo do discurso, para o qual pensará que o assentimento é devido” LOCKE, 1988, p. 198).

  3. “Suponho que interromper o santuário da vaidade e da ignorância será de alguma utilidade para o entendimento humano, embora poucos estejam aptos a pensar que enganam ou são enganados pelo uso das palavras, ou que a linguagem e a seita a que pertencem tem qualquer defeito que deva ser examinado e corrigido” (LOCKE apud GHIGGI & OLIVEIRA, 1995, p. 16).

  4. Segundo Eby (1978, p. 254), “se as idéias não são inatas, então, a criança difere radicalmente do adulto, no tocante a seus dons intelectuais”.

  5. “Não é pequeno o poder conferido a um homem sobre o outro, ou seja, o de ter autoridade para ser o ditador de princípios, professor de verdades inquestionáveis e fazer com que uma pessoa tome por um princípio inato o que deve servir ao propósito de quem as ensina” (LOCKE, 1988, p. 24).

  6. Conforme LOCKE, (1986, p. 244), “o formalismo lógico conduz menos ao descobrimento da verdade que ao empenho sutil e sofístico das palavras equívocas; [...] de todas as maneiras de falar, esta é a menos útil e a mais desagradável e não há nada no mundo que menos convenha a um cavalheiro ou a um amigo da verdade”. E, na obra sobre a Conduta do entendimento, LOCKE (1986, p. 280), diz que “[...] para conduzir o entendimento, não bastam as normas que têm servido o mundo ilustrado durante os dois ou três mil últimos anos e as em que os homens instruídos têm confiado sem queixar-se dos seus defeitos”.

  7. Aponta, por exemplo, que “a aprendizagem da leitura deve proporcionar-lhe a menor moléstia e o menor esforço possível” (LOCKE, 1986, p. 213).

  8. Segundo Ghiggi e Oliveira (1995, p. 15), “na Inglaterra, salientamos, é que se encontra a raiz sistematizada do empirismo. Desde os séculos XVI e XVII, lá acontecem as grandes reações à mentalidade metafísica, tradicional, cristã e dogmática. A Inglaterra, assim, vai abrindo espaço para uma profunda e radical contestação do pressuposto da existência de uma ordem imutável e universal”. Dentre os representantes desse movimento, como já vimos, podemos citar Grosseteste, Roger Bacon, Duns Scot e Guilherme de Ockham, o mais radical.

  9. “Estas idéias simples, os materiais de todo o nosso conhecimento, são sugeridas ou fornecidas à mente unicamente pelas duas vias acima mencionadas: sensação e reflexão. Quando o entendimento já está abastecido de idéias simples, tem o poder para repetir, comparar e uni-las numa variedade quase infinita, formando à vontade novas idéias complexas. Mas não tem o poder, mesmo o espírito mais exaltado ou aumentado, mediante nenhuma rapidez ou variedade do pensamento, de inventar ou formar uma única nova idéia simples na mente, que não tenha sido recebida pelos meios antes mencionados; nem pode qualquer força do entendimento destruir as idéias que lá estão [...]” (LOCKE, 1988, p. 32).

  10. Segundo Hernandes (1991, p. 58), “o processo associativo é, no fundo, o processo criador de crenças, inibições ou modificações do comportamento humano”, podendo, assim, gerar bons ou maus frutos, em virtude do modo e das razões pelas quais for empregado.

  11. “[...] quem não recebeu antes em sua mente, pela entrada apropriada, a idéia simples que cada palavra anunciada, jamais pode chegar a conhecer o significado desta por quaisquer outras palavras ou sons, reunidos segundo todas as regras da definição. O único meio consiste em aplicar aos sentidos o próprio objeto, e assim, produzir esta idéia nele, acerca da qual ele já aprendeu o nome” (LOCKE, 1988, p. 103).

Referências

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