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As faixas nas lutas e nas artes marciais no contexto da escola:

um relato de experiência sobre a problemática das graduações

Los cinturones en las luchas y en las artes marciales en el contexto de la 

escuela: un relato de experiencia sobre la problemática de las graduaciones

 

Licenciado em Educação Física (FEF-Unicamp)

Mestre em Educação Física (FEF-Unicamp)

Faixa Preta Segundo Dan de Judô

Prof. Ms. Fabiano Filier Cazetto

fabianocazetto@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          As Lutas e as Artes Marciais são elementos da cultura corporal, eles têm muitas formas e muitos significados. Diferentes formas de graduações ocorrem em diferentes artes marciais. Inicialmente foram descritas todas as experiências sobre graduações, então as experiências foram divididas em subcategorias, este artigo é sobre o Judô enquanto uma atividade curricular: como disciplina independente ou como conteúdo na Educação Física. As 4 experiências descritas indicam que as Lutas e as Artes Marciais são possíveis na Escola. O trabalho como uma disciplina independente encontra maiores dificuldades sobre as graduações, porém ambos os tipos de trabalho são possíveis sem graduação.

          Unitermos: Artes Marciais. Educação Física Escolar. Educação.

 

Resumen

          Las luchas y las artes marciales son elementos de la cultura corporal, ellas tienen muchas formas e muchos significados. Existen diferentes formas de graduación en diferentes artes marciales. Inicialmente fueran descritas todas las experiencias sobre graduación, entonces las experiencias fueran divididas en subcategorías. Este artículo es sobre el judo como una actividad curricular: como una asignatura independiente o como contenido de la Educación Física. Las 4 experiencias descritas indican que las luchas y las artes marciales son posibles en la escuela. El trabajo como una asignatura independiente encuentra más grandes dificultades sobre las graduaciones, pero los dos tipos de trabajo son posibles sin las graduaciones.

          Palabras clave: Artes Marciales. Educación Física. Educación.

 

Abstract

          The Martial Arts are elements of the body culture, they have many forms and many meanings. Different kinds of grading occur in different martial arts. At first there have been described all the experiences about grading, then the experiences were divided in subcategories, this article is about judo as a curricular activity: as independent discipline or as content in physical education. The 4 experiences described indicate that Martial Arts are possible in the School. The work as independent discipline encounter bigger difficult concerning grading, but both kinds of works are possible without grading use.

          Keywords: Martial Arts. Scholar Physical Education. Education.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 15, Nº 153, Febrero de 2011. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    As Lutas e as Artes Marciais são elementos da cultura corporal com múltiplas formas e múltiplos significados (CAZETTO, 2009). Atualmente essas práticas sociais tem tido grande destaque no cenário acadêmico (CAZETTO, 2009B), e grande número de praticantes (DACOSTA, 2006).

    Observando esses elementos enquanto construções humanas, nos deparamos com diversos símbolos. Formas de tratamento, linguagem, hierarquia, valores, dão caráter tradicional e específico a cada um desses patrimônios humanos. Toda sociedade tem hábitos corporais que lhes são próprios (MAUSS, 1934).

    As graduações são signos específicos de muitas dessas práticas. No Judô, no Caratê, no Aikido, no Jiu-Jitsu e no Taekwondo temos as faixas, na Capoeira temos os cordões, no Muay Thai temos os kruangs. Neste artigo serão descritas algumas experiências na problemática específica das faixas para que seja possível contextualizar reflexões sobre o assunto.

    O tratamento adequado sobre o assunto é necessário para formulação de projetos pedagógicos uma vez que este é um elemento significativo neste “cenário”, não apenas para os alunos, mas também para as famílias e professores, dentre outros “personagens”.

    Os elementos da cultura, neste caso aqueles ligados às lutas e as artes marciais, acontecem em diferentes contextos: escolas, clubes, academias, ONGs, etc. Especificamente nesta publicação o foco foi centrado nas aulas escolares no contexto curricular.

Material e métodos

    Inicialmente foi construído um relato sobre todas as experiências vividas em 21 anos sobre a problemática das Faixas. Nas vivências ocorridas neste contexto foi possível observar o fenômeno sob diversos olhares, professor, aluno, pesquisador, etc. Durante o processo de memória foram divididos os relatos em grupos segundo o local de prática: dentro e fora da escola.

    A partir das experiências vividas foi feita uma divisão em grupos dos possíveis cenários do Judô entendendo que o contexto seria importante no processo pedagógico. Nem todos os contextos em que ocorre o Judô foram contemplados por essa divisão, por exemplo, o Judô pode acontecer em ONGs, porém essas não fizeram parte das vivências relatadas.

    Em uma estrutura hierárquica a divisão dos locais do Judô seria:

    Fora da escola foram feitas reflexões sobre clubes e academias. Dentro da Escola foram divididas as vivências dentro da grade curricular e fora da grade curricular. Nesta publicação são relatadas apenas as experiências dentro da grade curricular (como conteúdo de Educação Física ou como matéria autônoma).

    Durante o processo de relato das experiências foram feitas reflexões sobre o vivido e sobre suas consequências educacionais (conhecimentos e valores). Após o relato de cada experiência foram feitas reflexões em um contexto mais amplo.

    Embora o objetivo seja as questões no cenário escolar dentro da grade curricular as experiências vividas não foram segregadas, tão pouco a sociedade é construída dessa forma. Assim como as experiências vividas nos diversos contextos influenciaram a construção desse artigo em sociedade o imaginário popular é construído sob influência de todos esses locais.

Resultados e discussão. Relatos na escola no contexto curricular

    Todas as experiências aconteceram em escolas da região metropolitana de Campinas entre os anos de 2000 e 2008. Inicialmente foi apresentado um relato sobre cada uma das 4 instituições com reflexões específicas, em seguida foi apresentada uma síntese dos resultados com reflexões relacionando as diferentes experiências.

Escola 1

    Esta instituição era uma escola particular que atendia alunos de classe média e alta em um bairro privilegiado financeiramente. O atendimento aos alunos era feito para aqueles que optavam por estudar em período integral na escola.

    A idéia do período integral nesta escola era interessante em vários aspectos. Os alunos tinham aulas normais no período da manhã ou tarde. E no contra período eles participavam do chamado “integral”. O atendimento era feito para alunos de educação infantil, nível I e nível II.

    Os alunos almoçavam na escola com acompanhamento e orientação nutricional. Tomavam banho, faziam lição de casa, brincavam, plantavam e colhiam na horta. Eram também oferecidas aulas como o Judô e Ginástica.

    Na época em que fui chamado para a instituição, no meio do ano letivo, foi com a intenção de “salvar” um projeto que estava “ruindo”. Eu estava formado há aproximadamente seis meses, porém já dava aula em escolas há mais de cinco anos. No começo do ano houve a contratação de um professor para substituir um projeto que já acontecia há vários anos, porém as aulas não andaram bem.

    Por relatos da direção e de professores que estavam na época a postura do professor foi inadequada, não havia boas intervenções nas aulas e algumas brincadeiras inapropriadas eram constantes, a exemplo do “pedala Robinho”1. O fato mostra as dificuldades e os limites necessários na atuação profissional do professor, o que por vezes é esquecido.

    Por influência do conhecimento adquirido na faculdade e pela experiência positiva em escolas em que trabalhava sem faixa a primeira proposta foi um trabalho escolar sem faixa. Porém a tradição da escola era feita com a faixa já há muitos anos, pela primeira vez realmente tive que vivenciar a pressão institucional sobre as faixas.

    Com algumas conversas, colocando alguns pontos de vista e mostrando um bom trabalho na prática consegui convencer a escola a manter as faixas apenas no curso extra2 (fora do período de aula) e deixar o período integral sem faixas.

    Na época houve uma grande preocupação da escola em investir no projeto, todo o empenho da direção, coordenação, professores de outras matérias, e professor específico foram na direção do projeto e de que este funcionasse.

    Inicialmente a proposta de turmas do colégio era extremamente heterogênea, com turmas grandes e aulas longas independentemente da idade. Aos poucos foi possível convencer a escola de que era importante haver divisões por idade e variações no tempo de aula. Pela manhã dividiu-se em duas turmas, na primeira turma ficavam os mais novos (educação infantil) e na segunda ficavam os mais velhos (a maioria primeira à quarta série do ensino fundamental). Existia também a possibilidade de junções e trocas de turmas segundo necessidades pedagógicas. A tarde dividiu-se em quatro turmas, uma turma de educação infantil uma de primeira a quarta e outra de quinta a oitava séries. As turmas de educação infantil tinham aulas mais curtas de 25 a 30 minutos, os maiores tinham aulas de 50 minutos. Ambos uma vez por semana.

    Durante o primeiro semestre de (2005) o projeto voltou a funcionar e quase que 100% dos alunos do período integral participavam das aulas. No começo a grande maioria vinha sem quimono, com certo esforço foi possível conscientizar os pais e alunos que a utilização do quimono era importante, porém ainda com resistências, sobretudo dos mais velhos. No ano de 2006 tudo correu bem e manteve-se o mesmo sistema, porém com investimentos menores em atenção ao projeto por parte da instituição.

    Já no ano de 2007 houve troca na coordenação, a coordenadora que era extremamente experiente e competente se aposentou. Assumiram o cargo duas profissionais de outras áreas (não eram pedagogas nem atuavam com educação), seu envolvimento com a instituição era familiar. A escola assumiu uma estratégia de marketing agressivo que dobrou o número de alunos no integral. Para suprir a demanda foram contratados estagiários.

    Neste ano as aulas que contavam com a participação massiva dos alunos em um ambiente de respeito e aprendizado passaram a ser aulas com problemas de adesão e disciplina. Brigas entre os alunos, discussões, e acidentes eram constantes em um ambiente que por vezes era caótico. O número de alunos frequentemente era tão grande e inadequado que não cabia fisicamente para fazer as atividades dentro da sala designada. Muitas vezes não se conseguia silêncio para explicar as atividades. Diversas estratégias foram adotadas: divisão de turmas; troca de alunos de turmas; mudanças de conteúdo; mudanças de metodologia, etc.

    Alguns progressos foram alcançados em algumas turmas, porém não de maneira expressiva. Em síntese todo o integral sofreu com as alterações ocorridas. Alguns quadros que já eram presentes anteriormente se acentuaram. Deturpou-se o papel da escola para depósito de crianças, o papel do professor para recreacionista e das aulas para atividades recreativas.

    Nesta experiência é possível perceber que um sistema pedagógico depende de muitos fatores, sendo assim o bom ou mau aproveitamento educacional de um projeto não se resume única e exclusivamente à utilização dos sistemas de graduação. A realidade escolar é construída por inúmeros profissionais, indo além da atuação do professor.

    Um projeto intencionalmente construído sem a utilização de faixas a partir de princípios educativos considerados relevantes para o contexto funcionou muito bem em um ano. Porém, o mesmo projeto, construído através dos mesmos princípios deixou de funcionar no momento em que outros fatores foram alterados. Provavelmente mesmo com a utilização de faixas não se conseguiria contornar os problemas descritos.

Escola 2

    Está instituição era uma escola particular situada em um bairro de classe média alta e alta. O número de alunos era pequeno, naquele ano 34 alunos entre berçário e educação infantil. O projeto foi de um ano, a proposta era trabalhar com educação física, naquele momento eu já era licenciado em educação física e desenvolvia mestrado na área.

    Neste ambiente o Judô era trabalhado como um conteúdo da Educação Física escolar, neste contexto algumas séries trabalhavam com o conteúdo Judô enquanto que outras trabalhavam com outros conteúdos.

    Os alunos participavam das aulas com quimonos e faixas brancas, as professoras de sala ajudavam durante as aulas. A proprietária da escola e coordenadora também era professora, portanto entendia e sabia das dificuldades da docência. O processo era feito pensando o Judô em uma perspectiva cultural, ou seja, não se restringia a ensinar movimentos de Judô, mas sim via todo um universo simbólico envolvendo principalmente os valores inerentes à prática do Judô: o respeito ao próximo, a estética do Judogui (roupa de Judô), a disciplina em aula, a auto-confiança, entre outros.

    As faixas utilizadas eram apenas as brancas, não existia qualquer intenção de gradação entre os alunos. O conteúdo era trabalhado de maneira anual e o Judô era um dos conteúdos, dessa maneira em outros anos outros conteúdos poderiam ser o foco. Nas mesmas turmas os alunos trabalhavam com os mesmos conteúdos não havendo divisão por níveis de conhecimento ou habilidade.

    A estratégia tinha como principal vantagem a coerência com o cenário escolar. Além disso, toda a escola e não só o professor investiam e acreditavam no conteúdo, dessa maneira estímulos extrínsecos, faixas, campeonatos, medalhas se tornavam desnecessários. O Judô fazia parte do projeto político pedagógico da escola.

    Neste cenário a proposta foi completamente coerente e atendeu a todas as expectativas, não houve assim perdas pela não adoção da faixa.

Escola 3

    A escola se caracterizava por atender alunos de classe média alta e alta, com uma das mensalidades mais caras da região. Seu porte era grande, passando de 2500 alunos e atendendo da educação infantil até o ensino médio. O projeto foi feito no nível I nas terceiras e quartas séries e no ensino médio em todas as séries. No ensino médio as aulas eram feitas somente por um professor com conhecimentos específicos na área. Já no nível I as aulas eram trabalhadas por todos os professores de EF.

    No ensino médio as turmas se caracterizavam por grupos escolhidos segundo as preferências dos alunos. Eram quatro grupos: quadra, campo, academia e lutas. Nas lutas foi feito uma avaliação diagnóstica sobre a expectativa dos alunos sobre as aulas no momento de implantação do conteúdo. Detectada a heterogeneidade optou-se no primeiro trimestre por uma abordagem multidisciplinar que trouxe não só movimentos de diversas lutas, mas também aspectos simbólicos de cada uma delas.

    Nesta perspectiva de trabalho multidisciplinar não houve graduação, mesmo por que os conhecimentos envolviam mais de uma arte. Neste sentido não houve problemas gerados pelas faixas nem houve perdas educacionais na estratégia adotada, pelo menos segundo os objetivos estabelecidos. Mas mesmo assim existiram dúvidas dos alunos sobre as faixas, que, apesar de serem adolescentes e mais maduros do que as séries iniciais do ensino fundamental ou educação infantil, nas quais é mais comum o trabalho com o Judô, houve questionamentos sobre as faixas, mostrando que é um assunto simbolicamente significativo na sociedade.

    No nível I as aulas eram ministradas por diversos professores, cada um nas suas respectivas turmas. Houve um processo de assessoria do professor do ensino médio no sentido de aprofundar os conhecimentos trabalhados em aula, principalmente nas relações simbólicas necessárias ao ensino das lutas e das artes marciais.

    A proposta também era multidisciplinar e bastante diversificada. Também não houve qualquer problema em não se utilizar faixas. Pensando nas duas propostas (ensino médio e nível I) as lutas e as artes marciais como conteúdo da Educação Física escolar trabalhado de forma multidisciplinar não parece revelar problemas com relação a não utilização de faixas.

    Em ambos os casos não houve tentativas de se implantar a utilização de quimonos, uma vez que as aulas aconteciam durante a educação física os alunos usavam o uniforme da escola. Houve no ensino médio a proposta de que com o tempo seria possível implantar a utilização de quimonos pelos alunos dependendo de como progredisse a experiência. Já no nível I existiam especulações de que no futuro seria interessante que a escola tivesse alguns quimonos no sentido de enriquecer simbolicamente as aulas.

Escola 4

    Esta instituição atendia a alunos de educação infantil de classe média. Quando comecei a dar aulas nesta escola eu estava nos primeiros anos de educação física, como permaneci na escola por 7 anos foi possível acompanhar um amadurecimento no trato pedagógico do Judô em geral e no assunto das faixas em específico.

    O Judô era uma matéria autônoma, uma proposta, uma disciplina utilizada na escola com o caráter educativo. Não fazia parte de uma matéria de educação física, mas sim a matéria era o Judô. As aulas eram feitas inicialmente apenas pelos meninos. Nas primeiras aulas estes vieram sem quimono, as dificuldades disciplinares eram muitas, executar propostas de atividades didáticas foi muito difícil no começo.

    Neste contexto a faixa e o quimono enquanto estratégia simbólica ou mesmo por razões técnicas era um problema menor. As aulas se encontravam em um estágio de maturidade docente muito aquém dessa preocupação, o objetivo inicial era algo tão simples quanto prender a atenção dos alunos, ensinar algo, garantir a segurança dos mesmos nas aulas.

    Apesar de todos os problemas iniciais a estrutura pedagógica da escola foi crucial para que houvesse possibilidades de amadurecimento e sucesso do projeto. Houve um esforço individual por parte do professor em melhorar a cada dia sua atividade docente. Houve investimentos, flexibilidade, e confiança da escola no trabalho do professor.

    Uma das proprietárias da escola era professora, tinha vivido as dificuldades da docência, conhecia e acompanhava os alunos, entendia o dia a dia do professor. Adaptações, flexibilizações, mudanças de estratégias eram feitas constantemente no sentido de tentar melhorar as aulas. A estrutura toda da escola conspirava para que o projeto desse certo. As regras da escola não eram camisas de força que impediam o bom andamento das aulas nem as tentativas de melhoria docente.

    Dessa maneira durante vários anos o projeto pôde caminhar, repensar, reconstruir, resignificar a atividade docente no Judô. O trabalho docente sem quimono e sem faixa que aconteceu inicialmente por obra do acaso se tornou uma estratégia docente consciente, intencional.

    Durante os anos de projeto passou-se de poucos alunos meninos para todos os alunos meninos e algumas meninas, chegou-se ao final com todos os alunos meninos e todas as alunas meninas. O Judô que era apenas uma atividade a mais para alguns alunos se tornou realmente parte do projeto político pedagógico da escola.

    Nesta perspectiva cabe questionar: por que sem quimono? Judô é Judô sem quimono? Por que sem faixa? Todas essas perguntas me perseguiram durante anos e só puderam ser respondidas por que houve um empenho conjunto para que se alcançasse um Judô enquanto uma atividade educativa para todos, algo que realmente fizesse diferença na vida presente e futura das crianças que passaram por aquela escola.

    No princípio a faixa não foi utilizada por que sequer existia quimono. Não se refletia sobre possíveis problemas sobre a utilização das graduações no ambiente escolar, pelo contrário apenas pensava-se que a graduação no Judô exigia maior nível técnico e maior idade.

    Com o tempo esse pensamento mudou, a realidade da não utilização da faixa nesta perspectiva passou a ser intencional. Não existia a vontade de hierarquizar alunos, acreditava-se que essa proposta entrava em conflito com os objetivos do projeto. Também não existia a necessidade de estímulos extrínsecos para manter os alunos em aula ou para obter maiores lucros com a atividade. Nem a escola nem o professor se beneficiavam com maiores ou menores ibope, pelo contrário, todos conspiravam e trabalhavam para que o Judô fosse uma atividade educativa e para todos.

    O quimono que inicialmente não era usado por que sequer conseguia-se realmente “dar aula”, quanto mais cobrar uniforme específico passou a não ser exigido por outros motivos. Inicialmente o Judô era praticado por alguns, gradativamente foi se cativando as turmas para que todos fizessem. Nesta perspectiva a meta maior era que todos praticassem, independentemente de terem ou não terem quimono ou qualquer outro acessório para a prática.

    O Judô que era visto apenas como uma atividade consolidada, cristalizada, igual, passou a ter caráter próprio. Foi re-significada, assumiu a cara daqueles profissionais e daqueles alunos que a reconstruíram em sociedade. O significado e a forma do Judô que eram vistas como uma só, aquela que ele havia aprendido e vivido, passou a tomar várias formas, vários significados. O Judô ainda era o mesmo, mas com outros significados outras formas. Assumiu um caráter escolar específico, assumiu sua função dentro do projeto político pedagógico da escola.

    O Judô não estava na faixa, tão pouco no quimono, muito menos na forma tradicional de praticá-lo. O Judô estava localizado muito mais profundamente, foi impregnado na forma de valores nas aulas dos alunos que foram incluídos nesta atividade.

    Trabalhar o Judô sem faixa e sem quimono significou imensas perdas do ponto de vista simbólico, que vão desde a fantasia envolvida no usar um uniforme específico até mesmo à relação simbólica entre sempai e corai.3

    Sacrifícios foram feitos intencionalmente no sentido de preservar princípios maiores. Usar faixa, que podia ensinar a importância da relação sempai/corai, a importância de evoluir no aprendizado, o orgulho de se graduar, foram sacrificadas no sentido de dar a todos tratamento igual em idades muito jovens (3 à 7 anos). Usar o quimono que teria o papel simbólico do Judoca enquanto alguém forte, capaz de se defender, viril, foi sacrificado no sentido de incentivar a todos que participassem da aula, sem exceções.

    As conquistas e as estratégias neste contexto foram extremamente significativas. Alcançou-se uma atividade para todos, sem a segregação por habilidade, gênero, ou pagamento de aulas. Inseriu-se um Judô DA Escola, mais ainda daquela escola. Um Judô sem faixa, sem quimono, mas para todos e com significado.

 

Faixa Etária*

Classe Social mais freqüente

Matéria ou Conteúdo

Uso do Kimono

Tamanho da Escola

Uso ou não da Faixa

Necessidade da Faixa

Escola 1

Educação Infantil

Ensino Fundamental 1

Ensino Fundamental 2

Média

Matéria Autônoma

Com

Média

Não

Sim

Escola 2

Berçário

Educação Infantil

Média

Conteúdo da Educação Física

Com

Pequena

Não

Não

Escola 3

Educação Infantil

Ensino Fundamental 1

Ensino Fundamental 2

Ensino Médio

Alta

Conteúdo da Educação Fisica

Sem

Grande

Não

Não

Escola 4

Berçário

Educação Infantil

Média

Matéria Autônoma

Sem

Pequena

Não

Não

*Estão listadas todas as faixas etárias das escolas, em itálico aquelas em que havia o projeto.

Tabela 1. Síntese do ambiente curricular

    O trabalho com Lutas e Artes Marciais na Escola se mostrou possível e proveitoso. As experiências relatadas indicam que é possível trabalhar sem o uso de graduação no contexto curricular, tanto como matéria autônoma como com conteúdo específico.

    Nos projetos em que se usa o quimono e como matéria específica a pressão social para o uso das faixas é maior, porém o projeto depende de inúmeros fatores. Nessas experiências a diferentes classes sociais não foram preponderantes para a decisão de trabalhar ou não com as graduações, o tamanho da escola também não se mostrou preponderante.

Considerações finais

    A Educação Física constitui-se em uma área de conhecimento que estuda e atua sobre um conjunto de práticas ligadas ao corpo e ao movimento criadas pelo homem ao longo de sua história (Daólio,1996). O Judô, como uma dessas práticas culturalmente constituídas, se estabeleceu através dos anos com uma imagem social positiva, por vezes sendo visto de maneira separada até de outras artes marciais. Sua unificação e organização permitiu conquistar importantes espaços, tais como o cenário olímpico e escolar (CAZETTO, 2009).

    Os significados das faixas vão desde conhecimentos teóricos e práticos, até atitudes e valores. Turelli (2008) afirma que a faixa atesta que seu detentor já passou por algumas coisas, superou certas dores, possui certo conhecimento. A autora completa dizendo que na faixa está contida certa tradição, garantindo um poder moral e levado a cabo pela hierarquia existente.

    O Judô ao se tornar um produto ou serviço pode perder símbolos importantes. A faixa não pode ser um produto que se compra através do pagamento de certo número de mensalidades e exames. Deve sim ser um símbolo de uma mudança muito mais profunda, um direito e um dever. Entender a importância simbólica dessa vestimenta é necessário para refletir com cuidado sobre o uso ou não uso da mesma, assim como a forma como ela será usada como um instrumento educativo.

    É necessário entender que a faixa e o quimono não são apenas utensílios ou ferramentas para serem utilizados, são também carregados de certo patrimônio simbólico adquirida através de tradições culturais. As faixas, assim como outros símbolos, são importantes no contexto de ensino do Judô e de outras lutas e artes marciais.

    Dessa maneira o imaginário das faixas passa por um conflito de significados, o Judô terá diferentes formatos e símbolos ao se manifestar em contextos diferentes. Especificamente no cenário escolar é necessário entender como a relação das faixas influenciará no contexto educacional mais geral, pensando que o Judô é um conteúdo dentre diversos que devem contribuir na formação do indivíduo.

    O relato dessas experiências deve possibilitar reflexões que permitam o tratamento coerente sobre o tema em diferentes realidades. A idéia de que o processo de graduação deve ser voltado para o “ser” e não para o “ter” pode ser um importante norteador nas decisões pedagógicas.

Notas

  1. Referência a uma brincadeira que se tornou popular naqueles anos (no caso da escola por volta de 2005) feita dando um tapa na nuca de alguém e falando a frase “pedala Robinho”. A brincadeira começou em um programa popular de comédia que passava na TV aberta.

  2. As experiências aqui descritas dizem respeito apenas ao curricular, as questões específicas do curso extra serão descritas em outro trabalho oportunamente.

  3. Respectivamente aluno mais velho e aluno mais novo, no Judô essa relação é importante e muito cultivada, trazendo relações de responsabilidade e autoridade.

Referências

  • CAZETTO, F. F. A influência do esporte espetáculo sobre o modelo de competição dos mais jovens no Judô. 2009. 210 f. (Dissertação) - Unicamp, Campinas, 2009.

  • CAZETTO, F. C. Lutas e Artes Marciais na Educação Física escolar: a produção científica do Conpefe 2009. EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, ano 14, n. 138. nov. 2009. http://www.efdeportes.com/efd138/lutas-e-artes-marciais-na-educacao-fisica-escolar.htm

  • DACOSTA, LAMARTINE (ORG.). Atlas do Esporte no Brasil. RIO DE JANEIRO: CONFEF, 2006

  • DAÓLIO, J. Educação Física Escolar: em busca de pluralidade. Revista Paulista de Educação Física, São Paulo, supl. 2, p.40-42, 1996.

  • MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

  • TURELLI, F.C. Corpo, domínio de si, educação: sobre a pedagogia das lutas corporais. 2008. 126f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis. 2008.

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