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Educação Física e Antropologia: a utilização da categoria cultura

Educación Física y Antropología: la utilización de la categoría cultura

 

*Mestranda em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo

Membro do GESESC (Grupo de Estudos Socioantropológicos do Esporte, Sociedade e Cultura)

e do CESPCEO (Centro de Estudo em Sociologia das Práticas Corporais e Estudos Olímpicos).

**Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica-SP

Professor da Universidade Federal do Espírito Santo e Líder do GESESC
(Brasil)

Juliana Guimarães Saneto*

jsaneto@yahoo.com.br

José Luiz dos Anjos**

jluanjos@terra.com.br

 

 

 

 

Resumo

          O artigo procura mostrar contribuições da Antropologia Cultural e mais especificamente da categoria cultura para a Educação Física, que há pouco mais de vinte anos tem utilizado desses conhecimentos advindos das Ciências Humanas para consubstanciar seus estudos, assim como sua prática pedagógica. Traçamos uma breve discussão acerca da categoria cultura, a partir de suas aproximações e distanciamentos conceituais, até chegarmos à sua contemporaneidade através dos pressupostos de Geertz (1989) que entende a cultura como um processo simbólico. Em seguida estabelecemos um diálogo com alguns autores da Educação Física com a finalidade de identificarmos como tem ocorrido a utilização dessa categoria nas produções teóricas da área.

          Unitermos: Educação Física. Cultura. Produção teórica.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 15, Nº 153, Febrero de 2011. http://www.efdeportes.com/

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Discutindo o conceito de cultura

    O termo “cultura”, de acordo com Laraia (2007), surgiu em 1871 atrelado à idéia de civilização, ou seja, procurava explicar o estágio evolutivo de uma dada sociedade. A partir da concepção evolucionista, Tylor, entende que cultura e civilização formam - um conjunto complexo de conhecimentos, crenças, arte, moral, direito, costumes e outras capacidades ou hábitos adquiridos pelo homem. Dessa forma, no século XIX, a cultura era entendida como um fenômeno natural e que poderia ser analisada de maneira sistemática.

    Laraia (2007) trata de algumas teorias modernas sobre a categoria cultura e na tentativa de classificá-las recorre ao esquema elaborado por Keesing. Nesse esquema classificatório proposto por Kessing (apud LARAIA, 2007), encontramos duas abordagens teóricas distintas quanto à apreensão da cultura: num primeiro momento cultura entendida como um sistema adaptativo e; num segundo momento em que a apreensão cultural ocorre cognitivamente, e é explicada pelas Teorias Idealistas.

    De acordo com Keesing (apud LARAIA, 2007), a cultura enquanto sistema adaptativo, tem como principais representantes os autores Sahlins, Harris, Rappaport, Carneiro, entre outros. Que apesar de suas divergências, concordam que as “culturas são sistemas de padrões de comportamento que servem para adaptar as comunidades humanas aos seus embasamentos biológicos” (LARAIA, 2007, p. 33). Tudo isso é retratado por Laraia (2007) como a cultura estando envolta a um processo de adaptação equivalente a idéia de seleção natural, que condiciona a existência através de um processo adaptativo. Essa abordagem apresenta uma forte influência da biologia e, até diria, do evolucionismo explicando estágios de adaptação do homem ao seu meio. Dessa forma, mesmo que tal processo de adaptação seja possível através da cultura, todo esse processo é regido por leis biológicas. Nesse sentido, caminhar, jogar, correr, todas as expressões são explicadas como processos adaptativos.

    Keesing (apud LARAIA, 2007), propõe e explica as Teorias Cognitivas em três diferentes subdivisões a respeito de cultura. A primeira delas é representada por Goodenough, que a considera como sistema cognitivo, e dentro dessa perspectiva cultura é considerada um sistema de conhecimento, que consiste em tudo aquilo que alguém tem de conhecer e acreditar para operar de maneira aceitável dentro da sociedade. Poderíamos interpretar que trata de um sistema adaptativo, mas de maneira social.

    A segunda abordagem tem como defensor Lévi-Strauss, que entende cultura como sistema estrutural e a define como algo simbólico, uma criação acumulativa na consciência humana, que acaba por operar de maneira inconsciente, quando o sujeito é colocado frente a um contexto simbólico que pode ser analisada a partir da estruturação dos domínios culturais.1

    A terceira subdivisão das Teorias Idealistas considera cultura como sistema simbólico e possui Clifford Geertz como protagonista da proposta de uma antropologia interpretativa, tornando-se uma referência para estudos contemporâneos que envolvam a categoria.

    Geertz busca entender o homem a partir da definição de cultura compreendendo-a “não como um complexo de comportamentos, mas um conjunto de mecanismos de controle, planos, receitas, regras, instruções para governar o comportamento” (GEERTZ, 1989, p.62). Para o autor, os significados são partilhados pelos atores, mas não dentro deles, ou seja, a cultura se processa de maneira inconsciente e pública, operando de maneira coletiva.

    Este estudo utilizou a delimitação do conceito de cultura defendido por Geertz (1989), pois entendemos necessária a compreensão da categoria cultura como sistema de significação, em que é possível interpretar e captar os significados, dos fenômenos produzidos e manifestados na sociedade. Definimos com as palavras de Geertz (1989) o entendimento a respeito da categoria cultura, quando ele afirma que o seu conceito

    [...] é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise [...] como uma ciência à procura do significado (GEERTZ, 1989, p. 10).

    O autor compreende o homem envolto a um sistema entrelaçado de signos que ele mesmo construiu e constrói continuamente que são interpretáveis e passíveis de análise completa, atingindo o campo da subjetividade. Não sendo a cultura um processo estático e sim contínuo e dinâmico, já que suas transformações nunca cessam.

    Ao contrário de muitos autores, Geertz (1989) não entende a cultura enquanto simples comportamento, mas como um conjunto de mecanismos simbólicos que implicam na intencionalidade existente no ato comportamental. Para ser ilustrativo, adiantamos duas práticas corporais que podem estar presentes no contexto escolar, por exemplo, tratam-se da capoeira e da dança de congo. Expressar, manifestar e jogar essas duas práticas vai muito além de movimentar-se biologicamente/motoramente. A intencionalidade traduz no significado que o sujeito/aluno apreende no ato de movimentar-se no contexto social proporcionado pelo ato de expressar-se corporalmente.

    O ato de manifestar e expressar são inconscientes e simbólicos quando o ator atribui a sua expressão um significado ou sentido próprio, e esse sentido se relaciona com o grupo. Dessa forma entendemos que a expressão envolve questões além do comportamento; há significados que ampliam percepções para o que está oculto, por detrás do ato comportamental/movimento, em si. Portanto, dançar o congo implica muito além do ato mecânico da execução do movimento corporal, mas traduz linguagens que emanam significados. Da mesma forma que uma finta no futebol possui significações que são compreendidos por aqueles que já apreenderam o significado do ato motor e que simbolicamente hierarquizam determinado movimento corporal.

    É a partir do comportamento que emergem os significados do ato. Assim é possível afirmar que os atos culturais consistem na construção, apreensão e utilização de formas simbólicas, que são consideradas acontecimentos sociais públicos e observáveis, que juntos conferem um conjunto de atos simbólicos interpretáveis.

    A contribuição da Antropologia para a Educação Física, já é notada em diversos estudos que vem sendo realizados em dissertações e na formação de professores dos cursos de Educação Física.2 É nesta perspectiva que para entender a possibilidade de utilizar de referenciais da Antropologia que discutimos o campo teórico da Educação Física.

A Educação Física e o conceito de cultura

    O termo cultura tem sido utilizado sem qualquer economia por pesquisadores da Educação Física, uma vez que, aparece em diversos artigos, estejam eles publicados em livros, revistas e etc.

    Assim iniciamos a investigação por Daolio (2007), que tem problematizado a categoria cultura na Educação Física. Isso é notável a partir de alguns títulos por ele publicados como “Educação física e o conceito de cultura”, “Da cultura do corpo”, “Cultura: educação física e futebol” e outros. Destas publicações iremos nos ater a primeira, em que, Daolio (2007), tematiza a análise do conceito de cultura, através de uma perspectiva antropológica, nos principais autores da Educação Física brasileira e contemporânea. E a partir dela daremos continuidade a investigação acerca da categoria cultura em outros estudos desenvolvidos pela Educação Física. Daolio (2007) deixa claro que a Educação Física, no âmbito das discussões acerca de cultura, é ainda embrionária apesar de não ser incipiente, já que um grande avanço teórico se deu a partir da introdução das Ciências Humanas em suas discussões e produções acadêmicas.

    A cultura é considerada por Daolio (2007) como eixo principal para se pensar a Educação Física, que durante muito tempo buscou, exclusivamente, seu referencial teórico nas Ciências Naturais, se abstendo das discussões e produções científicas das Ciências Sociais, além das categorias e conceitos próprios da Sociologia e da Antropologia. Dentro de uma perspectiva baseada nas Ciências Naturais, a Educação Física durante muitos anos apropriou-se apenas de conhecimentos de cunho biológico em que,

    O corpo era somente visto como um conjunto de ossos, músculos e não expressão da cultura; o esporte era apenas passatempo ou atividade que visava ao rendimento atlético e não fenômeno político; a educação física era vista como área exclusivamente biológica e não como uma área que pode ser explicada [e analisada] pelas ciências humanas (DAOLIO, 2007, p. 02).

    Talvez isso seja explicado porque “os currículos dos cursos de graduação em educação física somente há poucos anos vêm incluindo disciplinas próprias das ciências humanas” (DAOLIO, 2007, p. 01). A partir dessa inclusão, que vem acontecendo a pouco mais de 20 anos nas Universidades Brasileiras, Daolio (2007) percebeu que as produções e publicações que utilizam os recursos provenientes das Ciências Humanas têm aumentado.

    Somente a partir da década de 1980, com o incremento do debate acadêmico na educação física, o predomínio biológico passou a ser questionado, realçando a questão sociocultural na educação física. (DAOLIO, 2007, p. 2).

    Isso demonstra que a Educação Física vem se preocupando com questões que perpassam os aspectos fisiológicos e motores do homem, desvendando e explorando novos horizontes, como as dimensões sociais, psicológicas e culturais presentes nos indivíduos. Assim, os autores começaram, então, a introduzir as Ciências Humanas como um recurso que viria enriquecer teoricamente os estudos da Educação Física, assim como suas intervenções, já que foram consideradas outras dimensões humanas, além da biológica.

    A respeito de cultura, tivemos, na Educação Física, algumas tentativas, de autores de grande representatividade acadêmica, em utilizar a categoria cultura em seus discursos, abordagens teóricas e propostas metodológicas. Essas abordagens foram consideradas, por Daolio (2007), mesmo com suas limitações, um grande avanço, já que o termo cultura não era nem mesmo mencionado nas discussões acadêmicas da Educação Física.

    Mesmo com esse avanço teórico, Daolio (2007) percebeu que muitos autores da Educação Física ainda continuam contidos às amarras conceituais a respeito da categoria cultura, quando afirma que “alguns autores estão presos às definições e aos conceitos de cultura [estabelecidos] no século XIX”, em que não era agregada à cultura nenhuma amplitude simbólica, e sim comportamental. Diante disso, Daolio (2007), a partir da análise de algumas obras, propostas e abordagens de autores da Educação Física, levanta críticas quanto a utilização da categoria cultura, considerando-a a partir da Antropologia Social.

Os autores da Educação Física e a categoria cultura

    Os autores da Educação Física utilizados neste estudo são os mesmos abordados por Daolio (2007), foram eles: Tani, Freire, Coletivo de Autores,3 Kunz, Bracht e Betti.

    Primeiramente trataremos de Tani, representante da abordagem desenvolvimentista,4 presente no livro “Educação física escolar: fundamentos de uma abordagem desenvolvimentista” publicado em 1988. Essa abordagem se propõe a atender as necessidades do indivíduo a partir da compreensão de aspectos do crescimento, do desenvolvimento e da aprendizagem motora.

    Dentro da abordagem que representa, Tani não se propõe a tratar de cultura de maneira específica e pontual, porém o termo se faz presente quando se discute o desenvolvimento motor e seus processos, que considera de maneira hierárquica em quatro níveis: movimentos reflexos e habilidades básicas, que são determinados geneticamente e; habilidades específicas e comunicação não verbal, estes aprendidos e influenciáveis pela cultura. Tani faz uma relação desse processo de desenvolvimento com a escolarização, e a partir daí propõe que os dois primeiros níveis: movimentos reflexos e habilidades básicas, seriam desenvolvidos na educação infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental. Em contra partida, habilidades específicas e comunicação não verbal, os dois últimos níveis de desenvolvimento, seriam trabalhados somente nas séries finais do ensino fundamental, no ensino médio e no ensino superior. Ou seja, a cultura é reduzida a uma fase do desenvolvimento humano que só pode ser atingida após ter passado pelos níveis biológicos, compreendida dentro de estágios seqüenciais.

    Dessa forma é possível perceber que a dimensão cultural somente é mencionada por Tani como uma conseqüência de determinações de cunho genético, em que a dimensão cultural só é atingida posteriormente ou secundariamente em relação às questões biológicas do indivíduo. O que nos leva a constatar que a utilização da categoria cultura pela abordagem teórico-metodológica desenvolvimentista, mesmo de maneira implícita, “aproxima-se daquela presente no pensamento evolucionista no século XIX” (DAOLIO, 2007, p. 19), em que se mantinha a idéia de que a cultura foi surgindo com a estruturação e a complexidade, cada vez maior, do sistema nervoso.

    Daolio (2007), apesar de considerar a importância dos conhecimentos provindos do desenvolvimento e aprendizagem motora, não admite que a cultura constitua como um fator determinante do desenvolvimento humano. Dessa forma não é possível que a dimensão cultural possa ser secundarizada ou subjugada à dimensão biológica. Tais idéias inviabilizam a redução da cultura, enquanto uma mera fase do desenvolvimento humano, como propõe Tani. Como disciplina escolar, a Educação Física deve fornecer subsídios para que seus alunos apreendam conteúdos culturais, dada a sua dimensão corporal, como o jogo, a ginástica, o esporte, a dança e a luta; mas sem desconsiderar os conhecimentos provindos do desenvolvimento e aprendizagem motora.

    O segundo autor analisado é Freire, em seu livro “Educação de corpo inteiro: teoria e prática da educação física”, publicado em 1989 e com grande repercussão na área e ficou conhecido como representante da abordagem construtivista-interacionista, que dá ênfase ao desenvolvimento cognitivo, aspecto que o diferencia de Tani, que como visto anteriormente, enfocava, em sua abordagem, o desenvolvimento motor.

    Em sua proposta metodológica, Freire, traz a categoria cultura sempre aliada à palavra “infantil”, para fazer referência a um elemento que sofre um processo de internalização pelo indivíduo, em que a questão cultural simbólica é considerada a partir de um viés psicológico, que já foi considerado um progresso, a medida que a abordagem mencionada anteriormente descartou qualquer possibilidade de diálogo entre concepções distintas ao que era postulado por suas concepções desenvolvimentistas. Freire não considera possível estabelecer padrões de movimentos, uma vez que as diferenças sociais, étnicas e culturais das diversas populações do mundo inviabilizam qualquer forma de padronização, inclusive a de movimentos. O autor também faz críticas à escola no que tange o trabalho que desenvolve com o corpo e o movimento das crianças, fortalecendo a idéia de dualidade entre corpo e mente e evidenciando-os sempre como indissociados.

    Daolio (2007) percebeu que Freire aborda inúmeras vezes a questão simbólica, mas percebe que isso ocorre sob uma perspectiva psicológica, que enfatiza o processo interno das representações mentais no indivíduo, negando o caráter público atribuído à cultura.

    Posteriormente às idéias de Freire, uma nova abordagem, surgiu e foi veiculada através do livro “Metodologia do ensino de educação física”, escrito por um Coletivo de Autores e publicado em 1990. Esse Coletivo de Autores buscou fundamentação teórica no materialismo histórico dialético, uma vez que “o conhecimento é tratado metodologicamente de forma a favorecer a compreensão dos princípios da lógica dialética materialista” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 40), para desenvolverem a proposta metodológica que ficou conhecida por crítico-superadora. Nessa abordagem os autores trazem o conceito de “cultura corporal” como objeto de estudo da Educação Física quando afirmam a necessidade de ” [...] elaboração de normas que correspondam ao novo objeto de conhecimento da Educação Física escolar: a expressão corporal como linguagem e como saber de conhecimento” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 42).

    Ao mencionarem a expressão “cultura corporal”, os autores tratam do “[...] jogo, esporte, danças ginástica, formas estas que configuram uma área de conhecimento que podemos chamar de cultura corporal” (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 50). Dessa forma podemos entender a “cultura corporal” como formas de manifestações enquanto algo material e externo ao homem.

    É na dimensão simbólica de cultura que Daolio (2007) percebe a fragilidade da abordagem que é originária da proposição de Karl Marx, no século XIX , em que foi enfatizada a dimensão consciente e material do ser humano, não sendo discutida entretanto a dimensão simbólica. Isso demonstra o quanto os autores da Educação Física, ao tratarem da categoria cultura, mantinham-se reféns às idéias postuladas pelo evolucionismo do século XIX.

    Após a abordagem crítico-superadora, surge a proposta metodológica crítico-emancipatória defendida por Kunz, autor dos livros “Educação física: ensino & mudanças”, publicado em 1991 e “Transformação didático-pedagógica do esporte” de 1994. Kunz critica a Educação Física tradicional e a exclusividade da abordagem das Ciências Naturais e, a partir daí, propõe a utilização dos referenciais próprios das Ciências Humanas para enriquecer as formas de compreensão e atuação da Educação Física, aprofundando suas discussões acerca do movimento humano, propondo-o como sujeito de uma ação que envolve sempre a intencionalidade, que constitui o significado do ato de se movimentar.

    Para Daolio (2007, p. 37) as discussões de Kunz, quando trata da intencionalidade do ato, discorrem num sentido em que “é possível superar o mundo conhecido e penetrar num mundo desconhecido”. Esse mundo desconhecido que é percebido, trata-se de um universo subjetivo, que envolve o significado.

    Kunz critica a expressão “cultura corporal”, utilizada pelo Coletivo de Autores, pois entende que toda atividade cultural humana é expressada através do corpo. Diante disso o autor lança em sua abordagem um termo novo: “cultura do movimento”, em que pretende analisar de maneira fenomenológica os movimentos humanos. E é essa preocupação, que faz com que Daolio (2007) considere suas contribuições acadêmicas como uma renovação em relação às abordagens anteriores, no que diz respeito às considerações acerca da categoria cultura e do homem.

    Autor que compunha o Coletivo de Autores, Bracht acaba por se diferenciar da abordagem crítico-superadora. A partir daí, surgiram com o autor alguns conceitos de grande relevância para a Educação Física. Em sua obra, destacam-se “Educação física e aprendizagem social”, de 1992 e “Educação física e & ciência: cenas de um casamento (in)feliz” de 1999, ambas coletâneas reuniram diversos textos do autor.

    E foi seguindo os passos de Kunz, que Bracht também passa a atribuir significados aos movimentos, na medida em que aprofunda e amplia a discussão sobre a dimensão simbólica da “cultura corporal de movimento”, que é pautada por ele como o objeto da Educação Física. A partir dessas idéias afirma:

    É o movimento corporal que confere especificidade à Educação Física no interior da Escola. Mas o movimento corporal ou o movimento humano que é seu tema, não é qualquer movimento, não é todo movimento. É o movimento humano com determinado significado/sentido, que por sua vez, lhe é conferido pelo contexto histórico-cultural (BRACHT, 2005, p. 16).

    Daolio (2007) considera Bracht um dos principais autores contemporâneos da Educação Física e sua discussão muito positiva para área. Apenas aponta que Bracht não tenha utilizado referenciais teóricos voltados à Antropologia Social, o que poderia ter sido muito epistemologicamente enriquecedor em seus estudos.

    Bracht ao defender a Educação Física enquanto uma ação, uma prática pedagógica, amplia nesse sentido, a discussão na área no que tange a legitimidade da Educação Física. E dentro dessa perspectiva critica o caráter massificador conferido ao esporte, nas aulas de Educação Física e nas escolas, com o intuito de descobrir talentos. E partindo de suas críticas considera o movimento humano próprio de uma dimensão simbólica que o legitima enquanto ação humana e que confere a ele significado. Porém, Bracht acredita que a discussão em torno da Educação Física não basta pelas vias da cultura, e que diante disso é preciso ir além para se alcançar uma proposição crítica e progressista da Educação Física. E a partir daí se apropria “[...] da crítica feita por J. B. Thompson [e] elege Clifford Geertz como exemplo de autor conservador perante as discussões acerca de cultura” (DAOLIO, 2007, p. 46). Ao considerar Geertz conservador no que tange a categoria cultura, Bracht (2005) entra em desacordo teórico com Daolio (2007), que considera Geertz um dos principais antropólogos a teorizar a respeito de cultura, assim como a dimensão simbólica que lhe confere.

    Daolio (2007) considera que ao se abster do aprofundamento nas teorias e avanços no campo epistemológico trazidos por Geertz, Bracht deixa de avançar na discussão antropológica pela sua vertente social, uma vez que se limita à discussão advinda da antropologia filosófica. E mesmo com essa crítica, Daolio (2007) reconhece o quanto a discussão promovida por Bracht foi importante e positiva para a Educação Física.

    Posteriormente a Bracht emergem as idéias de Mauro Betti através da publicação em 1991 do livro “Educação Física e sociedade”, em que define sua perspectiva sistêmica, discutindo a dicotomia existente entre a educação do movimento e a educação pelo movimento. E entende a cultura como essencial para auxiliar a Educação Física na tentativa de superação dessa dicotomia, que propulsiona o surgimento do conceito de “cultura física”, na década de 1990 como sendo um conjunto de valores relativos ao corpo.

    Betti expande o conceito de “cultura física” e passa a utilizar o termo “cultura corporal”. E a partir dessa nova visão, o autor trata o corpo e o movimento como a especificidade da Educação Física e a idéia de personalidade do aluno, enquanto capacidade crítica.

    O autor postula dois princípios para a Educação Física. O primeiro seria o princípio da não exclusão, em que os conteúdos e métodos da Educação Física deve ser acessível aos alunos, compreendendo sua totalidade. O outro princípio trata da diversidade, e defende que a Educação Física ofereça atividades variadas a fim de estimular o pensamento crítico dos alunos, tornando-os capazes de escolher criticamente suas atividades. Betti também trata da alteridade5 e considera, sua presença, fundamental nas aulas de Educação Física. A partir dessa idéia, discute uma proposta de Educação Física cidadã, em que o profissional da área considera o outro, o diferente o exótico e o distante, numa relação de totalidade, em que a idéia de mediação simbólica é inerente às ações do homem.

    Desses autores, os três últimos abordados nesse estudo, elaboraram propostas, abordagens e problematizações, na Educação Física, com os maiores avanços, à medida que consideram o homem, em suas discussões, como um ser eminentemente cultural, desvencilhando-o da condição biológica única e plena. E mesmo reconhecendo esse avanço, Daolio (2007) os critica por não atribuírem ao homem uma dimensão simbólica considerável, que na verdade é algo inerente ao homem enquanto ser cultural.

    Kunz, Bracht e Betti apesar de partirem de conceitos de cultura diferentes, se aproximam por direcionarem críticas à racionalidade científica, ambos consideram importante que se considere a dimensão simbólica no comportamento humano, acreditando que a Educação Física deva contemplar tanto o saber fazer quanto o saber sobre esse saber fazer.

    Aprofundando a discussão de cultura, esses autores [Kunz, Bracht e Betti] – em que pesem as diferenças entre eles – passam a considerar o ser humano dotado de individualidade e mais dinâmico, inserido num contexto sociocultural igualmente dinâmico e eminentemente simbólico (DAOLIO, 2007, p. 66).

    É possível perceber que esses três autores, ao contemplarem o indivíduo em suas dimensões física, psicológica, sócio-cultural e humana, o consideram em sua totalidade, pressupondo-o enquanto um ser indissociável. Nesse sentido Daolio (2007) compreende que Kunz, Bracht e Betti entendem o ser humano enquanto um ser cultural.

    Ao pontuar as discussões trazidas pelo trio de autores citados anteriormente como relevantes, Daolio (2007) não deixa de considerar a utilização da categoria cultura pelos teóricos da Educação Física, presentes nesse estudo, como simplória. Nesse sentido o autor reconhece que houve um avanço notável, que tange entender o homem, assim como suas manifestações corporais, enquanto expressões simbólicas.

    Partindo da análise dos autores da Educação Física, citados anteriormente, é possível perceber que a categoria cultura tem sido empregada, de maneira descontextualizada, em discussões e produções teóricas bastante relevantes na Educação Física.

    Daolio (2007), se apropria das considerações de Geertz (1989) e Mauss (2003), ao afirmar:

    [...] o corpo humano é dotado de eficácia simbólica, grávido de significados, rico em valores dinâmicos e específicos. Podemos vê-lo a partir do seu significado no contexto sociocultural onde está inserido. Podemos considerar, ao invés de suas semelhanças biológicas, suas diferenças culturais; podemos reconsiderar nossos critérios de análise sobre o corpo fugindo de padrões preconceituosos que durante muitos anos subjulgaram e excluíram pessoas da prática de educação física (DAOLIO, 2007, p. 09).

    A partir daí, percebemos que o autor dedicou certa preocupação com as diferenças culturais existentes, considerando a Educação Física uma prática escolar que não deve ignorar as condições sociais e culturais de seus alunos, já que, não há a possibilidade de qualquer padronização de movimento uma vez considerada as diferenças sociais, étnicas e culturais.

Considerações finais

    Geertz (1989) afirma que muitas têm sido as tentativas de teorizar acerca de cultura. E realmente é perceptível o quanto os debates são intermináveis quanto as suas características e propriedades, porém, de acordo com o autor, essas tentativas divergem da busca de uma padronização que culmina em sua utilização, interpretação e teorização de maneira incoerente e muitas vezes contraditória. Estas ocorrências tornam os estudos que envolvem conceituações acerca da cultura, mais confusos do que esclarecedores.

    Talvez essas considerações de Geertz (1989) explique, ou pelo menos nos leve a compreender a trajetória da Educação Física no que tange a sua produção teórica envolvendo a categoria cultura, que nesse estudo pudemos evidenciar como simplista.

    A Educação Física se perde diante dos labirintos conceituais da categoria cultura, o que torna seus estudos, envolvendo tal categoria, embrionários, porém não incipientes. Isso porque apesar do pouco aprofundamento teórico, ao tratar de cultura, avançam no sentido de mencioná-la e utilizá-la na elaboração de propostas metodológicas para a Educação Física que visam a compreensão do homem enquanto um ser que além de suas propriedades biológicas, considerando-o, portanto como ser indissociável diante de seus aspectos fisiológicos, psicológicos, sociais e culturais.

Notas

  1. O futebol garante possibilidades de ser explicado como um fenômeno simbólico, quando colocado em determinados contextos sociais onde o sujeito o apreende inconscientemente.

  2. Daolio (1995, 1995, 2007, 2008) surge como exemplo nessa discussão.

  3. O Coletivo de Autores foi formado por Soares, Taffarel, Varjal, Castellani Filho, Escobar e Bracht. Esse grupo de autores lançou o Livro Metodologia do ensino de educação física, que propunha a abordagem crítico-superadora, inspirada no materialismo histórico dialético de Marx. Esse livro representa uma das obras de maior repercussão na Educação Física na década de 1990.

  4. A abordagem desenvolvimentista foi desenvolvida também por Manuel, Kokubun e Proença, além de Tani.

  5. Alteridade pode ser compreendida como o caráter do que é o outro, a diversidade, a diferença. Sim, o antônimo de identidade. É preciso contemplar a diferença em todas as suas nuances.

Referências

  • BRACHT, Valter. Educação física e aprendizagem social. Porto Alegre: Magister, 2005.

  • CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 2002.

  • DAOLIO. Jocimar. Da cultura do corpo. Campinas: Papirus, 1995.

  • _______ Educação Física e o conceito de cultura: polêmicas do nosso tempo. Campinas: Autores associados, 2007.

  • _______ Por uma educação física plural. Revista Motriz, v. 1, n. 2, p. 134-136, dez. 1995.

  • GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.

  • LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

  • MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia.São Paulo: Cosac, 2003.

  • SUASSUNA. D.; Barros, J.; AZEVEDO, A. e SAMPAIO, J. A relação corpo-natureza na modernidade. Brasília: Revista Sociedade e estado. v. 20, n. 1, fev./abr. 2005.

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