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O Segundo Tempo e a escola: diálogos e 

limites a partir da experiência de Campinas, Brasil

El Programa Segundo Tempo y la escuela: comentarios y límites a partir de la experiencia de Campinas, Brasil

 

*Mestrado, Licenciado e Bacharel em Educação Física

pela Universidade Estadual de Campinas

Docente da Universidade Federal de Itajubá

**Graduada em Educação Física pela Universidade Federal de Santa Maria

Mestrado em Ciência do Movimento Humano pela UFSM

Doutorado em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas

Docente da Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas

Líder do Grupo de Pesquisa em Políticas e Lazer, cadastrado no CNPq

Paulo Cezar Nunes Junior*

pcn_junior@yahoo.com.br

Silvia Cristina Franco Amaral**

scfa@omega.fef.unicamp.br

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          Este artigo apresenta os dados de uma pesquisa desenvolvida no ano de 2006, na cidade de Campinas (Brasil). O foco de estudo ocorreu sobre o Segundo Tempo, projeto de cunho federal com fim à democratização do esporte pelo viés educacional. Os dados de observação e as entrevistas semi-estruturadas renderam um conjunto de reflexões que versam a respeito dos possíveis diálogos entre o Segundo Tempo e a escola. São elucidados três pontos fundamentais: as influências do modelo esportivo vigente exercidas sobre a estrutura escolar; o lugar da escola dentro do sistema piramidal sobre o qual o esporte está alicerçado; e a tensão entre o campo cultural esportivo, o campo escolar e a construção do habitus de classe.

          Unitermos: Esporte. Política pública. Escola.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 15, Nº 148, Septiembre de 2010. http://www.efdeportes.com/

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A ocupação dos lugares pelo esporte

    Este texto foi escrito a partir do caminho de apropriação dos espaços pelo esporte, iniciando-se por sua gênese e contato com a escola, no século XVIII, até chegar nos elementos de sua institucionalização e nas funções sociais exercidas por ele atualmente. A partir daí, será debatido enquanto política pública por meio de suas representações no Programa Segundo Tempo na cidade de Campinas, enfocando principalmente seus possíveis diálogos com a escola. Os dados coletados durante a pesquisa de campo serão tratados na segunda parte do texto. Por hora, fiquemos com os movimentos e as incursões feitas pelo esporte na sociedade.

Gerado e incorporado à escola

    Nos estudos de história da educação física há uma questão que parece ser, a priori, insolúvel sobre o surgimento do esporte, uma vez que há diferentes construções teóricas sobre o assunto. Há autores que pregam a existência do esporte, nos moldes de sua manifestação na modernidade, desde e Grécia antiga, não tomando-o como uma prática social moderna, dotada de sentidos e intenções de um momento histórico que coincide com a ascensão da burguesia inglesa (HOBSBAWM, 1988). Para os fins deste trabalho, julgamos mais interessante entender o esporte por este segundo viés, como objeto social que teve sua gênese concomitante à Revolução Industrial do século XVIII.

    A aproximação entre escola e esporte ocorreu em um período subseqüente à criação deste, quando foi incorporado como prática nas escolas das elites inglesas. Os esportes de salão, a exemplo do cricket, ilustravam os novos padrões de gestos corporais: estabilizados, com um conjunto de regras definidas e destinados aos aristocratas proprietários das novas fábricas. Caberia ao esporte continuar nos espaços extraclasses a educação oferecida aos escolares ingleses (ELIAS; DUNNING,1992).

    Um passo importante na institucionalização do esporte foi a criação de clubes esportivos para aqueles que queriam continuar a praticar esportes depois da vida escolar e universitária. Esse processo de expansão da prática esportiva desenvolveu-se em um contexto maior de secularização e racionalização da sociedade moderna, seguindo a universalização da indústria (Bracht, 2003). A burocratização e a organização formal crescem, principalmente no século XIX, quando surgem na Inglaterra organizações que congregam grupos de clubes, as federações, promovendo competições de nível regional e nacional. Novas práticas corporais são esportivizadas, e logo se aproveita a possibilidade de explorar comercialmente os eventos esportivos, movimento que serviu de base para a consolidação do profissionalismo, ocorrida posteriormente. Assim foram constituídos os primeiros lugares de ação do esporte moderno. Pelo seu reconhecimento, ele abre caminhos para que possam funcionar os princípios esportivos, em acordo com o capitalismo industrial: redução da distância entre classes, multiplicação dos contatos entre os indivíduos, promessa de mobilidade social, suposta abolição das discriminações sociais, etc. (BROHM, 1982).

Institucionalizado e posicionado no campo

    Para continuar a discussão sobre a transformação do esporte, é interessante fazer aqui uma explanação do modo pelo qual ele foi incorporado pelas instituições da modernidade. Conforme vimos, o esporte moderno surge como uma prática de elite que foi paulatinamente construída a partir de regras e valores próprios. Nesse câmbio, alguns interesses foram consagrados, enquanto outros foram substituídos, de modo que uma rede de sentidos e significados foi construída ao redor do esporte, alocando-o funcionalmente dentro de diferentes instituições. A escola, o Estado, o exército e tantas outras que se apropriam dele atualmente operam de modo semelhante no que concerne à finalidade esportiva, obviamente dentro das especificidades de cada uma.

    Remetendo à teoria do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1998) - na qual a sociedade está dividida em campos: cultural, político, econômico, erudito, entre outros - é possível esclarecer a importância que o esporte adquiriu por se tratar de uma instância do campo cultural na briga pelo poder com os demais campos. Essa tensão é o que sustenta os conflitos sociais, nos quais a intenção é, antes de estabelecer a lei da legitimidade que ditará as normas da conduta social, obter o poder sobre outro campo.

    Bourdieu (1998) interessa-se principalmente pela relação entre cultura, dominação e desigualdades sociais. Sob seu olhar a cultura não é uma esfera inocente e, sim, um importante meio para a reprodução da estrutura de classes. O esporte moderno surge nesse sentido, aludindo a uma luta simbólica de classes, a qual irá se estabelecer sob valores corretos, padrões legítimos, práticas esportivas próprias, sobre os estilos de vida distintos de classe. No desenvolvimento de seus estudos, Bourdieu cria ainda o conceito de habitus, tratando-o como um sistema de disposições que atuam no cotidiano como esquemas de pensamento, percepção, avaliação e julgamento, fazendo a mediação entre estrutura e práxis. Pelo habitus, cria-se o gosto por determinados estilos de classe, que ditarão maneiras sociais de se portar esportivamente pela garantia do status e do sucesso.

    Por meio desse mecanismo, fica mais claro entender porque o esporte é uma instância tão visada por algumas instituições, uma vez que permite às classes privilegiadas manter o capital político, através da promoção e do controle da indústria esportiva. Seus agentes culturais manifestam-se de acordo com uma posição de poder, pois podem transformar o capital cultural obtido na administração esportiva em poder político, atuando na dinâmica de outros setores sociais com fim a dominar outros campos no conflito entre classes.

    Desse modo, assim como outras instituições, a escola tem a função de agenciar os interesses na tensão entre a dinâmica das forças no conflito social. Organizando seus interesses de maneira objetiva e eficaz, ela cumpre seu papel na dinâmica de forças entre as instituições, defendendo seus interesses e almejando a vitória nessa relação.

    Nesse ponto torna-se interessante pensar a escola como uma construção social fundamental para a existência do esporte. Se a considerarmos uma instituição formadora do sujeito (visto que é o modelo consagrado para o processo “regular” de aprendizagem dos indivíduos em nossa sociedade) é possível atribuir a ela um papel central na dinâmica das forças sociais, já que tem por função posicionar os sujeitos, atribuir e projetar a cada um deles um papel a ser desempenhado. Talvez seja a escola a instituição com maior capacidade de diálogo com a sociedade civil, pelo contato direto na formação dos alunos, pela inserção direta na comunidade, pela escolha do conteúdo e das verdades a serem construídas durante o processo educacional.

    Destarte, torna-se central para uma análise do diálogo entre a escola e o esporte identificar qual o tipo de relação que essas instituições estabelecem com a sociedade civil, o modo como ambas participam na construção de seus interesses e ações. Por esse caminho, é possível suscitar discussões acerca das ocupações que podem decorrer da apropriação da escola pelo esporte com vistas a perpetuar certos valores, firmando o ethos das classes na tensão entre os campos. Surge daí a importância do estudo das políticas públicas para o esporte socioeducacional praticadas por inúmeros projetos do governo federal, entre eles o projeto Segundo Tempo.

    Ao narrar a tomada do esporte pelas instituições na modernidade, Bracht (2003) sugere que nessa relação ocorre um entrecruzamento de instâncias de interesses de uma dada formação social, na qual se encontram vários níveis: econômico, político, ideológico, cultural. Esses níveis variam em sua dominação, de acordo com as diferentes vertentes que o esporte assumiu nessa trajetória: esporte profissional (prevalecimento do nível econômico) e esporte escolar/participativo (prevalecimento do nível pedagógico), por exemplo, é que irá constituir a característica e a função da prática esportiva.

    A escola, como precursora do chamado esporte pedagógico ou esporte socioeducacional, tem participação decisiva no modelo de esporte praticado pelo Segundo Tempo, mesmo não sendo foco central de ação do projeto. A Prefeitura Municipal de Campinas mostra algumas evidências dessa relação, de modo que mesmo posicionados em coordenações diferentes, o esporte semiprofissional e o esporte socioeducacional atuam segundo os objetivos e premissas fundamentais da instituição esportiva.

    Pela ação das instituições, os hábitos foram estabilizados, possibilitando que a motivação (enquanto agente propulsor das ações humanas) passasse a ser fixada em objetos do meio circundante exterior, que por sua vez serviram de pontos de apoio para as decisões, fornecendo um comportamento com garantia de durabilidade, de fim útil.

    Uma instituição serve como um propulsor de uma ação unilateral estabilizada. Traz o homem para uma forma específica e não para quaisquer formas de ação. Na instituição esportiva isso não é diferente: ela fornece uma forma de satisfazer necessidades ligadas ao movimento. O esporte fornece uma fórmula de contingência que reduz a complexidade do meio-ambiente em termos de possibilidade de oferta de movimento (Bracht, 2003, p. 93).

    Assim, remontando às idéias de Bourdieu (1998), é possível dizer que a lógica do campo cultural do esporte opera de tal forma que reproduz as relações sociais dominantes, dificultando a possibilidade do esporte vir a acontecer como uma prática autônoma.

Questionado

    Se analisarmos o esporte como meio de construção dos papéis sociais, é preciso que se perceba sua função de formador de caráter, da moralidade, a partir de uma consciência constituída, entre outras, pelas leis do Estado. A imagem do esportivo não raramente assume um papel social de status a ser alcançado e de modelo a ser seguido. Basta pensarmos nos gentlemen ingleses, praticantes de cricket e de remo, até os ícones do esporte atual: o empresário, empreendedor e ex-atleta de natação Gustavo Borges e o fenômeno do futebol, Ronaldinho – jogador de sucesso no mundo todo. Tratam-se de estereótipos criados pelas forças circulantes nos mecanismos políticos e imaginários de cada época, temperados por pressões sociais conflituosas que operam decisivamente da projeção do futuro de várias crianças e adolescentes no espaço escolar, na praça pública de esporte, na brincadeira de rua.

    Bracht (2003) fala de uma adaptação do comportamento das pessoas às normas emanadas da instituição esportiva como algo natural, não passível de questionamento, entendendo que a instituição esportiva carrega em si a questão do poder coercitivo, como forma de satisfação de determinadas necessidades.

    A autonomização de estruturas de hábitos transforma tipos específicos de comportamento em modelos socialmente sancionados, que aliviam o indivíduo da sobrecarga imposta pela multiplicidade de estímulos, impressões e decisões inerentes a uma existência aberta para o mundo (Bracht, 2003, p. 99).

    Auxiliando nesta discussão, Proni (1998) propõe que haja uma expansão do entendimento do conceito de esporte para que possamos transpor a barreira do senso comum, de praticantes e apreciadores passivos deste fenômeno social, a fim de alcançar uma abordagem crítica desta prática. Para isso devemos considerar, entre outras forças sociais, a participação de instituições privadas e dos meios de comunicação de massa como elementos centrais para a existência da instituição esportiva, atuando em diversos níveis: na escola, na venda de produtos, nos equipamentos públicos de lazer e esportes, entre outros.

O Segundo Tempo em campo

    Consideramos o projeto Segundo Tempo ponto de intersecção interessante para discutir questões ligadas a discussão entre política pública, esporte e escola. Por isso a escolha deste projeto para costurar as idéias defendidas na primeira parte do texto. Percorrendo o caminho de incorporação e materialização do projeto pelo município de Campinas, a intenção é promover um diálogo uma pesquisa de campo feita em 2006, a fim de construir considerações sobre o projeto idealizado pela política pública de esporte nacional e confrontá-las com os dados da investigação: pesquisa semi-estruturada, análise documental e observação direta. Para tanto, haverá um trânsito de triangulação de dados, cruzando as reflexões teóricas obtidas com a revisão bibliográfica e os elementos da pesquisa de campo.

    O programa Segundo Tempo, adotado pela prefeitura de Campinas para acontecer no ano de 2006, é uma iniciativa do Ministério do Esporte em parceria com o Ministério da Educação com o fim de democratizar o acesso à prática esportiva de crianças e adolescentes matriculados em escolas públicas de todo o Brasil. Por meio da oferta de atividades esportivas no contraturno escolar, o projeto pretende colaborar com a inclusão social, bem-estar físico, promoção de saúde e desenvolvimento intelectual das crianças e dos adolescentes que se encontram em situação de vulnerabilidade social. Foi institucionalizado pela portaria número 32, de 17 de março de 2005, a qual o formalizou dentro do quadro de obrigações legais do Estado:

    Art. 2° O “Programa Segundo Tempo” tem por objetivo:

  1. Propiciar contato com a prática esportiva;

  2. Desenvolver capacidades e habilidades motoras;

  3. Qualificar os recursos humanos profissionais envolvidos;

  4. Contribuir para a diminuição da exposição a situações de risco social;

  5. Implementar indicadores de acompanhamento e avaliação do esporte educacional no País. (BRASIL, 2005, p.57)

    Pelo objetivo geral de democratizar o acesso à prática e à cultura do esporte como instrumento educacional, conforme indicam os inúmeros materiais veiculados pelo Ministério do Esporte, o programa funciona de acordo com alguns princípios que norteiam as suas ações.

    Estes são apresentados através de alguns pontos, como o saber coletivo (co-educação), a capacidade de organização grupal (cooperação), a reflexão crítica (emancipação); o posicionamento do educando como sujeito (totalidade) o educando como agente de sua aprendizagem (participação), e a crítica da realidade na qual está inserido (conscientização). Todos os princípios são construídos com base na pedagogia inclusiva, levando em conta as diferenças e as potencialidades de cada participante. (PREFEITURA MUNICIPAL DE CAMPINAS, 2006b).

    Como podemos perceber nos apontamentos descritos anteriormente, a relação entre esporte e educação é visivelmente trabalhada pelas diretrizes do projeto. Esta relação não foi devidamente sustentada pelas discussões entre a Secretaria Municipal de Cultura Esporte e Lazer e a Secretaria de Educação municipal, uma vez que faltaram diálogos entre as suas partes em vários momentos no processo de aplicação do projeto em Campinas (dados da pesquisa de campo). Entretanto, não podemos afirmar que o quadro observado em Campinas tem dimensão nacional, apesar de o Segundo Tempo ser concebido como um projeto padrão ao país todo. A cautela a ser tomada com relação à aplicabilidade de programas nacionais de políticas públicas é no sentido de observar as demandas e a realidade social do local onde o projeto será executado. Isso, inclusive, pode ser uma das hipóteses do fracasso do projeto em vários núcleos em Campinas: os municípios adotam políticas públicas ministeriais que muitas vezes não condizem com a realidade social encontrada, com os reais interesses da população local. Nesses casos, é construída a idéia de uma democracia alicerçada pelo decreto, e não pela participação popular.

    Partindo da idéia inicial do Segundo Tempo é que a Prefeitura Municipal de Campinas incorporou a partir do ano de 2006 o projeto entre suas políticas públicas com o fim, entre outros, de consolidar o uso do ambiente escolar e dos centros comunitários como núcleos da prática esportiva e de lazer. Além disso, estava implícita nesta ação a possibilidade de ampliação de novos espaços conquistados pela própria comunidade, através das possibilidades de identificação com a proposta.

    De acordo com a idéia inicial da Prefeitura de Campinas, as atividades ocorreriam em 75 núcleos esportivos do município, distribuídos em 43 pontos da cidade. Alguns desses núcleos seriam agregados às praças de esportes municipais. Porém, a maioria deles funcionaria em regiões com pouco ou nenhum equipamento público, prevendo uma expectativa de que seriam atendidas pelo menos 7,5 mil crianças e adolescentes.

    Conforme explicitado acima, para a investigação escolhemos dois núcleos diferentes, o Núcleo Real Parque e o Núcleo Parque Santa Bárbara. Eles foram elegidos na medida em que apresentavam entre si diferenças notadamente interessantes para a discussão das categorias e análises levantadas.

    O Núcleo Real Parque encontra-se em uma área vulnerável e com vários problemas de infra-estrutura básica, enquanto o Núcleo Santa Bárbara se localiza em uma região de menor instabilidade social. A ausência de equipamentos específicos de esporte e lazer no Real Parque para a realização do Segundo Tempo dificultou o andamento dos encontros: as práticas foram realizadas em um espaço improvisado junto a um campo de futebol. Um ponto negativo levantado pela estagiária gira em torno da falta de infra-estrutura com relação à disposição do espaço: “é muito aberto, há vários focos de perda de atenção” (entrevistada A).

    No Parque Santa Bárbara os recursos físicos eram melhores: no centro comunitário onde o projeto era realizado havia uma quadra, um playground e um espaço coberto para atividades do bairro. Um importante elemento de caracterização deste núcleo é a baixa participação popular, o que pode nos remeter a uma aproximação da noção neoliberal de estado mínimo: os moradores com maior poder aquisitivo preferem usufruir dos clubes privados de outras regiões da cidade (dados de observação), deixando de agregar valor ao seu próprio local.

    Com relação à funcionalidade do projeto, as atividades caracterizaram-se pelo acesso a diferentes modalidades esportivas, principalmente àquelas específicas, reconhecidas socialmente: o basquete, o voleibol, o futebol e o handebol, além de modalidades individuais como o tênis e o atletismo (dados de observação). Os encontros ocorreram tanto em espaços físicos escolares quanto em espaços físicos não escolares, dependendo do local de implantação, três vezes por semana com duração de 60 a 90 minutos. Como público alvo, o projeto visou atingir crianças e adolescentes matriculados em escolas públicas, dando prioridade para a atuação em áreas de risco social.

A mediação entre esporte e escola pelo Segundo Tempo

    Fazendo um breve percurso pela educação escolar recente no Brasil, não é raro encontrar proximidades entre o esporte e a escola, isso porque antes dos valores de rendimento promovidos pela instituição esportiva atual, era salientado o caráter nacionalista da prática esportiva. Essa questão toma corpo quando lembramos que o Estado republicano brasileiro tem grande parte de sua história calcada sobre regimes autoritários, como a Era Vargas na primeira metade do século e a Ditadura Militar em um período mais recente. Nesses modelos de Estado, é recorrente o uso do esporte como instituição controladora das tensões populares e foco de união da identidade nacional.

    Essa breve alusão histórica nos empresta elementos para entender as condições de produção da relação entre esporte e escola no Brasil e nas políticas públicas para o setor. Em consonância com a presença do esporte na escola, cabe às políticas nacionais esportivas o papel de endossar a importância do esporte para a descoberta de talentos esportivos, muito além da função democratizadora e do desenvolvimento do caráter cidadão pretendido pela maioria dos programas nacionais de esporte educacional.

    Nesse ínterim, é possível entender o modo como o esporte escolar é incorporado ao sistema esportivo nacional, cabendo à escola (e à educação física enquanto componente curricular) o papel de alicerce, sobre o qual funcionaria a superestrutura do esporte de rendimento. A esta idéia, é possível atrelar o modelo da “pirâmide esportiva”, representação usual de um sistema cuja base larga seria o esporte escolar, a partir da qual se dariam as sucessivas seleções e afunilamentos até se chegar a uma ponta estreita com lugar para poucos, geralmente tratados como talentos.

    Mesmo com ressalvas e apesar dos apelos por uma maior participação e inclusão social, essa idéia prevalece e tem adquirido status e cada vez mais recursos de política púbica. Neste momento é que ganha sentido tratar o Segundo Tempo como programa de política esportiva, sendo diversos os episódios que ilustram esse interesse, a reocupação da escola pelo esporte, entre outros, pelos interesses da pirâmide esportiva.

    No Parque Santa Bárbara, por exemplo, as crianças e adolescentes que freqüentavam a escola eram todos provenientes da escola, mantida em diálogo com o projeto pelo monitor do núcleo na medida do possível. Segundo ele, “houve divulgação do projeto na escola do bairro” (entrevistado B).

    A publicação da Portaria Interministerial n. 73, de 21 de junho de 2001, dos Ministros de Estado da Educação e do Esporte e Turismo tratam a questão da relação entre esporte e escola por meio da educação física. Com a redação própria do instrumento normativo, os ministros instituíram os seguintes artigos:

    Art. 1º - A educação física constitui-se componente curricular obrigatório da educação básica, sendo facultativa nos cursos noturnos.

    Art. 2º - No cumprimento do disposto no artigo anterior, os estabelecimentos de ensino deverão ministrar a educação física de forma integrada à proposta pedagógica da escola, e voltada ao bem-estar, à integração social e ao desenvolvimento físico e mental do aluno, apoiando as práticas desportivas. (Brasil, 2001, p. 1).

    A educação física não deixa de ser tratada como veículo de propagação do modelo esportivo, função que carrega desde seus primórdios de atuação na realidade escolar brasileira. Além disso, a partir da criação desses artigos, começam a ser promovidos vários programas com o propósito de fomentar a prática esportiva nas instituições escolares, entre eles o Programa Esporte na Escola. Inicialmente, foi firmado um protocolo de intenções entre os Ministérios do Esporte e da Educação com vistas à implementação do programa Segundo Tempo Escolar, sucedâneo do Esporte na Escola (OLIVEIRA, 2005). Posteriormente, foi iniciado um projeto-piloto do programa em escolas públicas do estado de Goiás. Prosseguiram-se contatos com governos estaduais e prefeituras para formalização de convênios e implementação dos núcleos de esporte. No início de outubro de 2003, o programa foi lançado oficialmente pelo presidente Lula, com a presença de ministros, atletas e entidades parceiras. O programa utilizou, inicialmente, o nome “A hora do esporte”, alterado posteriormente para “O esporte e a escola no mesmo time”.

    O público-alvo concentra-se no ensino fundamental das escolas públicas. Também é anunciado o investimento em infra-estrutura esportiva, em contratação de estagiários, em capacitação de pessoal (estagiários e professores), em distribuição de material esportivo às escolas, em fornecimento de merenda escolar para os alunos do programa e a promoção de eventos esportivos nacionais e regionais. Diante de uma série de dificuldades na sua implementação, especialmente no que se refere à infra-estrutura, organização e funcionamento das diferentes redes escolares, o programa terminou suprimindo o termo “escolar” e passou a ser divulgado apenas como “Segundo Tempo”, abrindo a possibilidade de implementação também por organizações não governamentais, mantendo, porém, o público alvo. “Deixa de ser um programa para a escola e consolida-se como um programa para escolares” (OLIVEIRA, 2005, p. 4).

    Além da posição central do programa dentro das políticas esportivas do município, a gestão de esportes Secretaria Municipal de Esporte Cultura e Lazer deixou transparecer nas entrevistas um discurso de proximidade com as assuntos relacionados à educação: “nós mantemos diálogo com a Secretaria Municipal de Educação” (entrevistado D). Com a justificativa da intersetorialidade, ocorreram durante o ano de 2006 vários projetos entre essas duas secretarias, como, por exemplo, os Jogos Escolares Municipais (JEM). Esse projeto reuniu cerca de 2.500 alunos de 49 escolas da rede municipal de ensino no mês de outubro de 2006. Segundo a ótica dos responsáveis pelo evento,

    A idéia central dos jogos foi fomentar a prática do esporte com fins educativos, promovendo o intercâmbio sócio esportivo entre os participantes e as comunidades envolvidas, contribuir para o desenvolvimento integral do aluno enquanto ser social, autônomo, democrático e participante, estimular a pratica esportiva nos estabelecimentos de ensino fundamental da rede municipal e estabelecer um elo de identidade do educando e sua unidade de ensino, além de selecionar possíveis talentos para futuro encaminhamento para o esporte de rendimento. (PREFEITURA MUNICIPAL DE CAMPINAS, 2006a, p. 12).

    Os alunos do ensino fundamental das escolas públicas do município se distribuíram em duas categorias para os jogos: de 5ª a 8ª séries na categoria mirim (11 a 13 anos) e infantil (14 e 15 anos), disputando durante esse período nas modalidades de dama, xadrez, basquete, voleibol, tênis de mesa, atletismo, handebol e futsal.

    Os JEM refletiram a preocupação das políticas públicas do município em aproximar o esporte da escola, criando uma relação que pode se estender para fora dos muros da instituição escolar, com finalidades e interesses diferentes. O Segundo Tempo aparece nesse tom e seguindo essas diretrizes, uma vez que se compromete a preencher o tempo de escolares em horários e espaços fora da escola.

    Não há dúvidas quanto ao tratamento do esporte como possibilidade de educação. O esporte sempre educa, ainda que não seja de maneira neutra, mas essencialmente boa. Porém, ao verificar uma simbiose cada vez mais crescente entre o esporte e a escola, como vem sendo observado nos projetos da área de política esportiva do município de Campinas, cabe indagar sobre o modo como se aprende e ensina o esporte. Quais os valores que têm permeado o trato com o esporte na escola?

    É preciso, pois, considerar a formação que se quer para uma criança ou adolescente e como o esporte participa dessa formação. Por mais que se tente separar, criar configurações como esporte de rendimento e esporte de participação, é impossível reconhecer autonomia entre essas dimensões. O esporte de rendimento é o que tem fornecido o modelo básico, relacionando-se com as outras dimensões na perspectiva da descoberta de talentos esportivos e na criação de um mercado consumidor.

    Dessa maneira, a tensão entre esporte e escola está diretamente relacionada às concepções de esporte e escola presentes nas políticas públicas educacionais e/ou de esporte escolar.

    Há que se pôr em questão o grau de compatibilidade entre as instituições esportiva e escolar, considerando, por justiça, que nos conflitos mencionados até então, o esporte tem sido coerente com sua história, seus princípios e tendências. Ao tratar do esporte, convidando-o a entrar ou aceitando-o como inquilino, a escola não tem sido capaz de garantir o acesso prazeroso ao conhecimento. Um acesso que permita ao aluno, posteriormente, fazer opções de aprofundamento. Normalmente, têm sido os outros (pais ou professores) a fazer opções pelos alunos. E a “opção” pelo aprofundamento tem antecedido o acesso amplo, invertendo a “ordem natural das coisas”. (Oliveira, 2005, p. 6)

    Conforme indica a citação acima, é inevitável discutir a relação entre esporte e escola quando o poder público veicula a população projetos políticos como o Segundo Tempo. Nesse e nos demais programas com características similares, o esporte e a escola vivem em permanente tensão. Por um lado, o esporte se encaixa perfeitamente numa perspectiva educacional que seleciona e especializa. Por outro, ele contraria o princípio democrático básico da escola, enquanto instituição com possibilidade transformadora.

Notas

  1. Em sua obra Sociologia crítica do esporte, uma introdução, Bracht dedica um capítulo inteiro para trabalhar as idéias do Bourdieu, na sua relação com o esporte enquanto prática cultural. Foi a partir das reflexões de Bracht que desenvolvemos essas idéias.

  2. De acordo com a categoria estabelecida pela teoria de Bourdieu, o capital cultural é o resultado da reprodução dos símbolos e significantes dominantes, enquanto valores que podem ser internalizados pelos sujeitos na tomada de posição no campo (BOURDIEU, 1998).

  3. Salientamos a diferença da apropriação da instituição escolar pelo esporte, e não do esporte pela escola. Na mesma direção em que Bracht (2003) fala do esporte NA escola e do esporte DA escola. Ao ser tomado pela escola, e esporte traz consigo valores e construções que foram consagrados fora dos interesses escolares.

  4. As entrevistas semi-estruturadas foram realizadas com monitores do projeto junto aos núcleos (entrevistados A e B) e coordenadores do projeto (entrevistados C e D). A análise documental foi feita fundamentalmente em cima de textos e leis referentes ao projeto Segundo Tempo tanto no âmbito ministerial quanto no âmbito municipal, conforme poderemos acompanhar adiante. A observação direta ocorreu em dois núcleos escolhidos para a pesquisa, durante o período de 6 meses (Real Parque e Parque Santa Bárbara), além de acompanhar reuniões e espaços de discussão da gestão do projeto em Campinas.

  5. Como ocorre com as intenções do programa “Descoberta do talento esportivo”, que tem finalidade identificar jovens e adolescentes matriculados na rede escolar que apresentam níveis de desempenho motor compatíveis com a prática do esporte de competição e de alto rendimento.

  6. Essa idéia pressupõe a ligação básica entre o Segundo Tempo e a escola, uma vez que o projeto acontece em justificativa do uso de um tempo que não é escolar. A primeira vista pode parecer lógico, mas é interessante pensar que o Segundo Tempo só ocorre porque há um “primeiro tempo”, que ocorre no tempo e espaço da escola. Se o projeto parte de uma noção de tempo diretamente ligado à escola, logo que ele está, em essência, em consonância com os objetivos e diretrizes atribuídos à função escolar. É justamente neste ponto que se torna perigosa uma aproximação entre esporte e educação, visto que a instituição esportiva guarda em si interesses e contradições acerca de sua função educacional – transformadora.

Referências

  • PREFEITURA MUNICIPAL DE CAMPINAS. Alunos da Rede Municipal participam dos Jogos Escolares Municipais. Ver e ouvir: cultura, esporte e lazer, Campinas, n. 17, p. 12, out. 2006.

  • BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. 5.ed., São Paulo: Perspectiva, 1998.

  • BRACHT, Valter. Sociologia crítica do esporte: uma introdução. Ijuí: Unijuí, 2003.

  • BRASIL. Ministério do Esporte. Portaria Interministerial nº 32, de 17 de março de 2005. Dispõe sobre o lançamento e as prerrogativas do Programa Segundo Tempo. Brasília, 1996. Disponível em: http://portal.esporte.gov.br/arquivos/snee/segundotempo/legislacao/portaria_32.pdf, Acesso em: 2 dez. 2006.

  • ELIAS, N.; DUNNING, E. A busca da excitação. Lisboa: DIFEL, 1992.

  • HOBSBAWM, E. J. A Era dos Impérios: Europa: 1975-1914. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

  • OLIVEIRA, S. A. Considerações sobre as políticas públicas de esporte escolar no Brasil do século XXI. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DO ESPORTE, 24., 2005, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: ESEF/UFRGS, 2005. 1 CD-ROM.

  • PREFEITURA MUNICIPAL DE CAMPINAS. Caderno de políticas de esporte da prefeitura de Campinas. Campinas, 2006a.

  • PREFEITURA MUNICIPAL DE CAMPINAS. Projetos esportivos atendem estudantes em situação de vulnerabilidade social. Ver e ouvir: cultura, esporte e lazer, Campinas, n. 14, p.14-15, jul. 2006b.

  • PRONI, M. W. Esporte espetáculo e futebol empresa. 1998. 270f. Tese (Doutorado em Educação Física) - Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998.

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