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Ação x emoção? O corpo genereficado e a Educação Física escolar

¿Acción x emoción? El cuerpo generificado y la Educación Física escolar

 

*Professor da School of Education at University of Western Sydney (Australia),

onde também é pesquisador do Centre for Educational Research

**Mestre em Educação, Arte e História da Cultura (Mackenzie)

Bacharel em Artes Cénicas (USP)

***Licenciado em Educação Física pela Universidade de São Paulo

Professor do Colégio Oswald Andrade e do ensino médio da

disciplina Corpo da Escola Viva - SP

****Bacharel e Licenciado em Educação Física pela Universidade de São Paulo

Técnico de handebol

(Brasil)

Jorge Dorfman Knijnik*

j.knijnik@uws.edu.au

Selma Carneiro Felippe Knijnik**

selmacf@uol.com.br

Patrício Casco***

oliveiracasco@ig.com.br

Diogo Castro****

diogocastrosp@yahoo.com.br

 

 

 

 

Resumo

          As meninas ainda não podem jogar futebol na escola? E os meninos “ruins de bola” continuam sendo excluídos e vistos como “bobos”? Partindo do conceito de gênero, e das amplas relações sociais permeadas por este, o texto procura alinhavar quais são os impedimentos para que meninas e meninos possam usufruir de praticas esportivas e corporais, no interior da Educação Física Escolar, livres de quaisquer preconceitos ou pressões advindas da cultura hegemônica de gênero que permeia toda a sociedade. Partindo de exemplos cotidianos que mostram o quanto a nossa experiência do dia-a-dia é genereficada, por meio de ícones e sugestivos momentos que a compõem, e que mostram o que a sociedade espera de uma menina ou de um menino, o texto avança ao mostrar que o esporte é visto e encarado por muitas das agências, em especial a ONU, como uma ferramenta fundamental na busca da tolerância entre os povos. Desta forma, este ensaio, ao pontuar claramente que as concepções e representações de gênero na sociedade culminam inevitavelmente na Educação Física e no Esporte, procura fazer com que o leitor perceba seus preconceitos, enfrentando-os da melhor forma possível, em prol de uma vivência esportiva e corporal mais livre daquela que ocorreu e ainda ocorre em nosso país.

          Unitermos: Gênero. Corpo. Educação Física Escolar

 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 15 - Nº 144 - Mayo de 2010

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1.     Ação X Emoção

    Quem tem filhos pequenos conhece a dura vida dos fast-foods: por melhores que sejam as intenções dos pais, no final de um domingo de sol, com o forte apelo comercial, quase sempre estas comidas se tornam inevitáveis. Percorrendo os corredores destes locais, fica-se perplexo com a genereficação destes ambientes. Recentemente, uma famosa rede de sanduíches e assemelhados - que possui lanches voltados especificamente às crianças, os quais sempre vêm acompanhados por brindes - incluiu a seguinte promoção nestes pacotes: “Para eles, o mundo da ação; para elas, a emoção” – e as fotos ilustrativas mostravam, de um lado, uma série de bonecas cor-de-rosa, meigas, sorridentes, cheias de corações, beijocas e outros símbolos que remetiam ao mundo das emoções; por outro lado, e voltados exclusivamente para os meninos, monstros horripilantes, musculosos e armados, ou mesmo dragões com lanças e em posições de ataque, todos prontos para “entrarem em ação”...

    A realidade dos pais não é diferente quando se aventuram a comprar roupas para seus filhos e filhas: para elas, uma série de camisetas, casacos e calças rosas e amarelas, com motivos lindos, crianças brincando, meninas loiras com penteados bem feitos, sorrindo, desenhos de corações, frases remetendo ao sonho e à felicidade; para eles, tons escuros, com desenhos de seres de outros planetas, muito feios e musculosos, sempre lutando ou ferozes, com espadas e outras armas nas mãos, sem dizeres, ou no máximo expressões onomatopéicas, tipo “yaahhh”!

    Estas são algumas das formas pelas quais a nossa cultura vai impondo a sua visão do que meninos e meninas podem fazer, e como devem ser; é por meio desta exacerbada oposição de dois pólos rigidamente excludentes e antagônicos, que se vai construindo uma realidade muito simples de ser vivida e explicada: homens, e conseqüentemente meninos, e somente eles, “naturalmente” devem ser criados para o “mundo da ação”, pois eles são aptos a fazerem certas atividades; por conseqüência, as mulheres, e as meninas, servem para outras, sendo inaptas para aquelas primeiras – elas devem entender do mundo da emoção, especialmente de emoções que conduzam à calma e à tranqüilidade, que sejam pacificadoras, que não exijam muitos movimentos.

    Esta cultura hegemônica, que por meio de suas prática, representações e símbolos, impõe desde antes do nascimento sérias restrições ao ser e ao fazer de meninos e meninas, acaba por engessar a ambos, não permitindo ou mesmo dificultando uma série de expressões pessoais que poderiam ser benéficas e prazerosas para as crianças e adultos de todos os sexos.

    O objetivo deste texto - no quadro da mesa redonda sobre “relações sociais de gênero na Escola” - é o de trazer reflexões sobre como as práticas da educação física escolar acabam por propor atividades as quais, em virtude das representações sociais que as embasam, produzem corpos condizentes com a visão preponderante de gênero – isto é, com características voltadas de um lado à masculinidade hegemônica e por outro, à feminilidade desejada, ou seja, “o mundo da ação X o mundo da emoção”. Especificamente, o texto se propõe a discutir como o fenômeno esportivo, que é repleto de fantasias e simbolismos de gênero que enrijecem as práticas, impedindo o pleno acesso das pessoas dos diferentes sexos às diversas atividades, pode ser pensando no interior da Escola, com mudanças a partir mesmo das propostas e pesquisas de gênero. Esta reflexão, por sua vez, tem a finalidade de ajudar a desconstruir a noção que existem modalidades esportivas para meninos e homens ou para meninas e mulheres, em separado, e propor assim, que na Escola, exista a busca de alternativas para que estas barreiras de sexo sejam superadas. Ou seja, tem – se aqui a clareza que o esporte deve ser considerado pela Educação Física Escolar como um bem cultural e como tal um direito humano inalienável – e que deve sempre ser um instrumento tanto para a auto-expressão do ser humano, quanto para a ampliação da tolerância e da convivência entre os humanos, quaisquer que sejam as diferenças que estes possam apresentar entre si.

2.     Só menino joga? Alguns aspectos de modalidades rotuladas como “conceitualmente masculinas”

    Muitos professores e professoras argumentam que determinado esporte não pode ser jogado por meninas, pois a sua base é masculina, “foi feito para homens”, por suas características “conceituais”.

    Tal concepção é compartilhada quase que igualmente entre homens e mulheres que atuam no meio educacional. A ausência de maiores reflexões em torno do tema, na maioria das vezes, tem origem em uma idéia de educação que atribui maior eficiência à padronização (separação genereficada e etária, e de habilidades, entre outras) do que à heterogeneidade. Associam-se a isso as experiências (ou falta de) pessoais dos educadores e educadoras quanto à atividade física ou esportiva, o que leva a soluções “facilitadoras” advindas de imagens culturais nas quais as meninas vestem rosa, pulam corda e amarelinha, enquanto há uma batalha de vida e morte entre os meninos nas quadras. Além disso, há o fato de que as escolas ainda preferem professoras polivalentes para atuar nas salas de aula e professores para as aulas de Educação Física, o que reforça a idéia de que a Escola, mesmo sendo eminentemente pública em sua organização, cria em seu interior duas esferas hierárquicas que poderiam ser chamadas de “o privado do público” – a sala de aula - espaço no qual estatisticamente as meninas têm um melhor desempenho, dirigido por uma professora e o “público do público” - o espaço da quadra – onde tradicionalmente, dirigidos por professores nas aulas de Educação Física, os meninos apresentam uma performance corporal mais hábil em esportes. .

    Nos recreios, o quase que inevitável futebol dos meninos-que-gostam-de-futebol é freqüentemente acompanhado por professoras e/ou auxiliares, na maioria das vezes com pouco repertório para a resolução de inevitáveis conflitos. Nessa “terra de ninguém” acaba prevalecendo a lei do mais forte, quase que sem intervenção ou mediação. Quando meninas desejam participar dessas “batalhas”, quase sempre são advertidas pelas próprias professoras quanto ao caráter bélico daquilo que deveria ser lúdico.

    Essas duas esferas de poder e atuação – de um lado a sala e de outro a quadra - compõem parte do estatuto do corpo na escola, cuja acriticidade faz com que elas, e os valores nelas gerados e emanados, se perpetuem.

    Mas o que está por trás daquilo que o senso comum (concepção esta fortemente presente na escola quando se trata de práticas corporais) - denomina de uma modalidade “conceitualmente masculina”? Que somente homens podem praticá-la, pois ela demanda certas qualidades físicas que eles possuem como força? E como ficam as mulheres fortes que praticam esta modalidade? E os homens fracos que não gostam dela? Estes não são totalmente masculinos, ao passo que aquelas o são em demasia?

    Ou denominar uma modalidade de “masculina” denota, como propõe Heilborn (1994), que aquilo que é chamado de masculino foi associado aos homens, por meio de uma intensa intervenção cultural que, ao suplantar a biologia do macho e da fêmea realizou a condição de ser homem ou mulher no mundo da cultura humana? E que estas condições, muito mais do que advindas das diferenças entre os corpos, provêm de construções e significados que são diversos, pois componentes diferenciados de cada cultura humana?

    Ou seja, esta segunda trilha aponta para o fato que a condição “natural” do ser humano é criar e realizar-se por meio da cultura (Berger e Luckmann, 1978). E que uma das noções mais fortes presentes nas culturas humanas ocidentais é aquela que coloca em polaridades opostas o masculino e o feminino, numa operação, essencialmente cultural, que formata uma construção social que se dá não apenas sobre as características biológicas, mas muitas vezes até independentemente destas.

    De fato, chamar algo de intrinsecamente (ou “conceitualmente” como muitos querem na escola) masculino ou feminino mostra que existem apreciações sobre os atributos de homens e mulheres que vão além das categorias macho e fêmea do mundo biológico, e que são traduzidas pelo conceito de gênero. É por meio da genereficação de atividades, normas, símbolos e atitudes dos seres humanos, que se consagra aquilo que é masculino ou feminino em cada cultura.

    Vale lembrar que o desenvolvimento do conceito de gênero iniciou-se exatamente na contraposição à biologização das identidades psicossociais a partir do sexo de cada pessoa. Como quer Louro (1996, p.2)

    “(...) gênero não pretende significar o mesmo que sexo, ou seja, enquanto sexo se refere à identidade biológica de uma pessoa, gênero está ligado a sua construção social como sujeito masculino ou feminino”.

    Desta forma, a autora deixa entrever o que afirmará mais adiante, isto é, que o feminino e o masculino não são dados a priori, afirmações ou representações já existentes, algo como papéis construídos sobre as identidades biológicas. Exatamente por serem construtos sociais, as identidades de gênero são históricas, mutantes e mutáveis. Na verdade, Louro (1996) avança comentando que não existe “o” masculino tampouco “o” feminino, mas uma multiplicidade de jeitos e modos de se expressar estas identidades. Ou seja, cada pólo contém inúmeras formas de se vivenciá-lo, os atributos femininos e masculinos são vários e variáveis – de fato, muito mais do que dois pólos distintos, há uma espécie de continuum no qual as identidades de gênero, pessoais ou coletivas, transitam – e a mesma pessoa pode transitar livremente em meio à diversidade existente, conforme a situação social, faixa etária ou alguma outra modificação que surja historicamente.

    Não há, e nem se deve prognosticar um único estilo de se viver a masculinidade ou a feminilidade, posto que existem uma pluralidade de formas de vivenciar estas facetas da vida, as quais inclusive englobam e somam aspectos do outro pólo, que passa a ser encarado não como oposto, mas sim como portador de novas possibilidades e novos modos de ser – de acordo inclusive, como já afirmado, com diferentes contextos históricos e sociais.

    Assim, querer rotular algo - seja atitude, símbolo, ação, coisa, vestuário ou qualquer outra manifestação cultural, tal qual o esporte, como “conceitualmente ou exclusivamente” masculino ou feminino é permanecer cativo de conceitos e afirmações universalistas que moldam e aprisionam o ser humano em grades inconcebíveis no século XXI.

    Ainda mais numa época na qual surge e se intensifica o fenômeno do homem metrossexual – aquele que incorpora diversos comportamentos e atitudes associados às mulheres, sem abrir mão de seu lado heterossexual, homem este cujo ícone é um grande astro do esporte, o futebolista inglês David Beckham; ou então num mundo em que (conforme relato de Leonel, 2003), no início da década de 1990, as roqueiras lésbicas do grupo Riott Girls subiram aos palcos usando cuecas e consolos de borracha sob as calças, mostrando para todos que também podiam ser agressivas, invertendo papéis e misturando códigos. A partir de então, segundo Leonel (2003, p.48) “nada mais permaneceu exclusivamente feminino ou masculino”.

3.     Esporte Unissex.

    O “planeta esporte” sempre foi uma arena especialmente fértil para a construção de simbologias de gênero rígidas, bipolares e em oposição frontal uma diante da outra. Reforçar e mesmo formar esquemas que consagrem os padrões de masculino e de feminino aceitos e vigentes hegemonicamente é algo que o esporte vem ajudando a construir há anos - sobretudo enquanto fenômeno que dispõe do corpo humano, onde são inscritos muitos dos signos estereotipados de gênero. Ou melhor, os corpos são genereficados ao extremo, e as atividades esportivas fazem parte de um complexo que ajuda nesta conformação de gênero sobre e nos corpos de meninas e meninos.

    Desta forma, o esporte pode ser considerado uma instituição social “genereficada”. Mas também, por tudo aquilo que dispõe ao mundo enquanto normas de comportamento e atitudes, também é um fenômeno “generificador”. Conforme Messner (1992, p. 173-74),

    Os esportes organizados são uma ‘instituição genereficada’ – uma instituição constituída por relações de gênero. Enquanto tal, sua estrutura e valores (regras, organização formal, composição sexual, etc) espelham concepções dominantes de masculinidade e feminilidade. Os esportes organizados são também um ‘fenômeno generificador’ – um fenômeno que ajuda a construir a ordem de gênero vigente.

    Assim, o atleta, qualquer que seja o seu sexo, deve se conformar com as normas de gênero hegemônicas presentes na sociedade, as quais, tais como quaisquer hierarquias – étnicas, sociais, econômicas, entre outras – engendram relações de poder no cenário esportivo.

    Relações de poder que apontam para desigualdades sociais – notadamente, a exclusão, marginalização e discriminação das mulheres (e das meninas) no esporte – fatos que ocorrem e são pautados, por sua vez, tomando por base as diferenças biológicas. E no esporte a diferença em questão é o sexo, como se esta fosse a única distinção biológica existente entre todos os humanos a ser levada em consideração na prática esportiva. Não se atenta, todavia, que há outras variantes biológicas importantes para a experiência esportiva, tais como estatura, tamanho de membros, gordura, entre tantas outras, que ocorrem não somente entre homens e mulheres, mas entre todos os humanos. E que, em termos esportivos, pode haver uma diferença muito maior entre um homem muito alto e outro muito baixo, do que entre um homem e uma mulher de tamanhos semelhantes. E, no esporte, pessoas diferentes (independentemente do sexo) desenvolvem habilidades dessemelhantes, e se dirigem para modalidades diversas, de acordo com as suas características biológicas, mas também em virtude de oportunidades, interesses, possibilidades, etc...

    E muitos, no afã de provar a inferioridade feminina pretendem confrontar as forças biológicas de homens e mulheres – se anteriormente a justificativa desta estratégia era saber se a mulher “poderia” fazer certas modalidades, atualmente é para se conhecer se ela fará “como os homens”.

    No entanto, mensurar as diferenças físicas e /ou biológicas entre homens e mulheres teria relevância apenas se conseguíssemos "apagar" os efeitos dos aspectos históricos e sociais que envolvem o desenvolvimento da mulher no esporte - ao contrário de outras esferas da vida (econômica, política, etc) a entrada da mulher na arena esportiva vem sendo mais lenta, a segregação foi e se mantém contínua.

    Todavia, o que se percebe é que as mulheres vêm atingindo recordes e marcas olímpicas semelhantes àquelas dos homens em anos anteriores; e o corpo da mulher não mudou radicalmente, não sofreu mutações em termos genéticos ou biológicos no último século – o que mudou foi a visão social que se tem do corpo. Isto mostra que o ambiente social, em todos os níveis (o treinamento físico, mental, aprovação social, tempo de prática, educação e oportunidades, etc) é que vem mudando - e conseqüentemente a mulher, bem como o homem, frutos que são de seu tempo e cultura.

    Porém, historicamente, a mulher foi proibida ou afastada da prática de esportes, quase sempre em virtude de certos aspectos biológicos, os quais segundo afirmações médicas e científicas de determinadas épocas, inviabilizariam a realização de atividades extenuantes. Como se observa hoje em dia, estas características se baseavam muito mais na visão e nos preconceitos de gênero do que em verdades biológicas – uma das mais famosas, e que cito em meu livro (Knijnik, 2003) é a famosa teoria da “incapacidade menstrual”, formulada pelo cientista e médico Herbert Spencer, no século XVIII, e que afirmava a impossibilidade da mulher praticar atividades físicas e esportivas, em virtude da fraqueza e perda de energia que a menstruação causava. Até mesmo a ciência está sujeita a mudanças, e suas verdades também são construtos históricos.

    Não se defende aqui que se anulem as diferenças entre homens e mulheres – que, aliás, são bem vindas como todo o conjunto da diversidade humana, que enriquece o mundo. Tampouco se está pleiteando que eles e elas comecem a disputar juntos os esportes de rendimento, os Jogos Olímpicos ou outras manifestações esportivas de alto nível. Dificilmente se encontram modalidades esportivas nas quais a prática não seja entre pessoas de um mesmo sexo.1 Via de regra a disputa se dá somente entre homens ou apenas entre mulheres, e talvez não seja este o momento de se propor uma unificação radical.

    Entretanto, na Educação Física Escolar pode- se (e deve-se) pensar em novas possibilidades de atuação em que meninos e meninas possam atuar juntos, aprendendo a desfrutar e a aprender com as diferenças que seus corpos manifestam, fisicamente, motoramente e até emocionalmente. O aprendizado de cuidar do próprio corpo passa, inexoravelmente, pelo contato e aprendizado com o corpo do outro e da outra – e este tipo de Educação Corporal talvez só a Educação Física na escola tenha capacidade e condições de realizar, desde que vista e encarada não mais com um propósito de desempenho físico dos alunos e alunas, mas sim integrada em um projeto pedagógico que vise criar pessoas com elevada auto-estima, grande consciência de si mesmas e assim em condições de se apreciarem e de se cuidarem – condição sine qua non para que possam cuidar dos outros e de sua comunidade. Tal projeto pedagógico tem na ludicidade a base para que haja maior integração e convivência entre meninos e meninas no espaço escolar. Este amadurecimento lúdico somente se tornará possível quando todos – meninos e meninas em qualquer tipo de expressão – sentirem-se à vontade para brincar. Devemos ainda lembrar que isso não ocorrerá espontaneamente, mas sim a partir da reflexão e, principalmente, da atuação de educadores e educadoras comprometidos com a construção de uma cultura de paz e cooperação entre homens e mulheres, ou seja, de educadores comprometidos com a equidade de gêneros.

    Vivemos uma era de mudanças extremas, e estamos apenas esboçando idéias e explorando práticas correspondentes a estes novos tempos. Segundo Santos (2008, p. 28) “ a aceleração contemporânea impôs novos ritmos ao deslocamento dos corpos e ao transporte das idéias”. Desta forma, não há necessidade da Educação Física reproduzir esportes nos quais a violência e a força física sejam determinantes para se obter bons resultados, ou simplesmente para se jogar, pois isso significaria colocar meninas e meninos em cotejos típicos de “guerra dos sexos” - nos quais as normas dominantes de gênero provavelmente forçariam os rapazes a tomarem atitudes extremamente violentas para não correrem nenhum risco de serem suplantados pelas garotas.

    São realmente marcantes as admoestações feitas pelo saudoso prof. Carlos Catalano Calleja, quem, na década de 1970 já alertava para o mal que algumas meninas poderiam fazer aos rapazes, caso os vencessem em competições de judô – este alerta, que demonstrava grande preocupação com os malefícios psicológicos que uma derrota contra uma “tigrinha” poderia fazer aos rapazes, fez inclusive com que a Federação Paulista de Judô, à época, proibisse competições mistas (Calleja, 1970).

    Ora, se as moças e mulheres avançaram sobre modalidades anteriormente vistas como masculinas, para os rapazes, ao contrário, isto ainda é muito difícil, pois o peso das normas que regem a masculinidade hegemônica é muito forte no ombro de meninos em formação. Desta forma, estes, se colocados em confronto com garotas no interior de modalidades tradicionais, praticadas de modo tradicional, sem que a reflexão sobre gênero esteja presente, e nas quais a força física pode ser preponderante, poderiam agir de modo agressivo ou até violento, o que talvez pudesse trazer prejuízos físicos, políticos e sociais para todos, pois a rigidez das representações de gênero no esporte, como visto, não pressiona e prejudica somente as moças, excluindo-as, mas também amarra os rapazes no interior de condutas agressivas, identificadas com valores da (hiper) masculinidade hegemônica e brusca, os quais rechaçam a importância do feminino, sobretudo no esporte.

    O aspecto central da agenda educacional referente à questão de gênero para os próximos anos, em primeiro lugar, é reafirmar com clareza quais normas e estigmas de gênero podem estar levando a discriminações no mundo dos esportes e da Educação Física – e, desta forma, procurar se criar espaços educativos para a conscientização e reflexão sobre estas “normas”, nos quais se possa discutir e questionar os padrões vigentes e antagônicos de masculinidade e feminilidade.

    Principalmente procurar cada vez mais aproximar todos os programas esportivos educacionais, nas escolas, das metas de desenvolvimento do milênio propostas pela Organização das Nações Unidas, e encampadas pela força-tarefa para o desenvolvimento do esporte e da paz composta por esta agência.2 Esta comissão produziu uma série de documentos nos quais considera e reafirma enfaticamente que o esporte é fundamental para o desenvolvimento dos jovens, crianças, meninas e meninos, por suas qualidades intrínsecas de promoção de contato com o outro, de auto-superação, de movimento e de motivação; mas a comissão também pressiona fortemente a tecla que coloca que não é qualquer esporte que serve, mas sim que a prática esportiva condizente com os objetivos das Nações Unidas, visando a paz e a tolerância entre os povos, deve ser oferecida em ambientes que não valorizem ao extremo a competitividade tampouco o desempenho físico e motor; ao contrário, seus objetivos devem estar focados na criação de uma comunidade na qual vigorem o respeito à pluralidade cultural, enfocando a harmonia entre todos e o próprio desenvolvimento da auto-estima positiva nos alunos e alunas, o que passa certamente pelo conhecimento e cuidados com o próprio corpo.

    Especificamente no que tange à equidade de gêneros, as propostas desta força-tarefa esporte pela paz da ONU, são muito claras: o esporte é um direito humano fundamental, e como tal deve ser um instrumento na consecução de metas de paridade de gênero na educação. Em decorrência da tradicional e histórica exclusão das mulheres e meninas do mundo esportivo, a participação no esporte pode quebrar velhos, mas consagrados estereótipos de gênero que pesam sobre garotas e mulheres. E a cada vez que mulheres atletas ganharem mais reconhecimento se tornarão mentoras das novas gerações.

    A nova ordem de gêneros no interior do esporte e da Educação Física não será rosa nem azul, nem somente masculina ou feminina, tampouco só vinculada à ação; ao contrário, terá um horizonte “rosa E azul”, com milhares de tonalidades, ultrapassará as barreiras e limites dos estigmas, será não excludente e fomentará a equidade, e a busca de auto-estima, fazendo com que todas e todos possam experimentar de verdade as fortes emoções que os esportes proporcionam.

    Construir este novo estado das coisas, sobrepujando preconceitos e discriminações de gênero é a urgente tarefa de todos e todas que acreditam no esporte e na Educação Física como instrumentos para combater a barbárie e promover uma maior justeza nas relações humanas.

Notas

  1.  No entanto, já há diversas experiências nesta direção, desde algumas mulheres competindo entre homens, oficialmente (caso do hóquei sobre gelo na Finlândia), ou mesmo do hipismo clássico, no qual homens e mulheres competem individualmente, pelos mesmos objetivos. E no esporte infantil, algumas competições já consideram a possibilidade de meninos e meninas disputarem em conjunto, uma vez que as tais diferenças físicas se manifestam de outro modo antes da puberdade.

  2.  United Nations Inter-Agency Task Force on Sport for Development and Peace.

Referências bibliográficas

  • BERGER, P. & LUCKMANN, T. A Construção social da realidade. Petrópolis, Vozes, 1978.

  • CALLEJA, C. C. Devem as mulheres praticar o judô? As “tigrinhas” às vezes embaraçam os rapazes. Esporte e Educação, São Paulo, v. 2 (8), 16-17, junho de 1970.

  • HEILBORN, M.L De que gênero estamos falando? Sexualidade, Gênero e Sociedade. 1 (2), dezembro de 1994, p 1-6.

  • KNIJNIK, J.D. A mulher brasileira e o esporte: seu corpo, sua história. São Paulo, Editora Mackenzie, 2003.

  • LEONEL, V. Cueca: você ainda vai usar uma! Revista da Folha de São Paulo, julho de 2003, p.48.

  • LOURO, G.L Nas redes do conceito de gênero. In: LOPES, M.J.; MEYER, D.; WALDOW, V (orgs.) Gênero e Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996, p. 12 – 19.

  • MESSNER, M. Boyhood, organized sports, and the construction of masculinities. In: KIMEL, M. e MESSNER, M. Men´s lives. New York, Macmillan Publishing, 1992, p. 131-61

  • SANTOS, M. Técnica, Espaço e Tempo. São Paulo, Edusp, 2008.

  • UNITED NATIONS. Report from the United Nations Inter-Agency Task Force on Sport for Development and Peace. United Nations, 2003.

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