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Cultura de Movimento: aspectos 

da avaliação em educação física escolar

Cultura de Movimiento: aspectos de la evaluación en Educación Física escolar

 

*Especialista em Corpo e Cultura de Movimento – DEF/UFRN

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura de Movimento

**Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura de Movimento

Esp. Augusto Ribeiro Dantas*

augustori@hotmail.com

Prof. Dr. José Pereira de Melo**

melo@digi.com.br

(Brasil)

 

 

 

Resumo

          Este artigo foi construído com base num relato de experiência de ensino em educação física escolar, a partir da problematização em torno do conceito de Cultura de Movimento e da prática avaliativa em educação física escolar reconhecida como eixo norteador de uma nova leitura da realidade. Dessa forma, o objetivo do estudo consiste em identificar de que modo a Cultura de Movimento, enquanto critério organizador do conhecimento da Educação Física, contribui para a ressignificação dessa prática pedagógica na escola.

          Unitermos: Cultura de Movimento; Avaliação; Educação Física

 

Resumen

          Este artículo fue construido sobre la base de un informe de experiencia docente en Educación Física a partir de la problemática en torno del concepto de Cultura de movimiento y de la práctica de evaluación en la Educación Física, entendido como un hilo conductor para una nueva lectura de la realidad. Así, el estudio pretende identificar a la Cultura del Movimiento, en tanto criterio organizador del conocimiento de la Educación Física, contribuye a la redefinición de esta práctica pedagógica en la escuela.

          Palabras clave: Cultura del Movimiento. Evaluación. Educación Física

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 142 - Marzo de 2010

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Mundo escola...

    Esse texto constitui-se de um relato de experiência de ensino em educação física, ocorrida na Escola Estadual Arcelina Fernandes, situada na cidade de Macaíba/RN. Apresento uma reflexão sobre a possibilidade concreta de investimento em práticas educativas que sejam efetivamente significativas e prazerosas, para professor e alunos envolvidos, do ponto de vista da construção e socialização do conhecimento na escola. Prática pedagógica, cuja finalidade seja o de despertar no educando o desejo, o gosto e a curiosidade pelo saber formal (escolar) a partir das experiências vividas no cotidiano, valorizando a autonomia e a criatividade como elementos motivadores do desenvolvimento individual e social.

    As idéias expostas neste relato corroboram com o investimento teórico-metodológico que a Educação Física enquanto área de conhecimento tem desenvolvido, especificamente, ao longo da última década do século XX e a primeira década do século XXI, em busca de sua consolidação como prática pedagógica relevante no ambiente escolar. Nesse contexto, buscamos desmistificar algumas condutas e práticas pedagógicas hegemônicas da Educação Física que se cristalizaram ao longo da sua história de inserção na escola, práticas cujos modelos de avaliação cumpriam/cumprem a função de classificar, selecionar, excluir, por meio da aplicação de testes físicos, de medidas antropométricas, da reprodução irrefletida do ensino unicamente técnico do esporte, da prescrição de atividades físicas isoladas e aprisionadas na reprodução/repetição do gesto técnico ou do exercício físico, como fim em si mesmo.

    Do ponto de vista epistemológico, sabemos que ao longo desse período, a Educação Física tem elaborado discursos que refletem fundamentos filosóficos e científicos, na tentativa de contribuir na organização do seu conhecimento. Considerando como alicerces, que alguns desses discursos buscam sustentar e fortalecer a prática pedagógica da educação física na escola, tais como aqueles que relacionam seus conteúdos aos temas advindos da cultura, seja por uma cultura corporal (Coletivo de Autores, 1992), Cultura corporal de movimento (Betti, 1992 e Bracht, 1999) ou Cultura do Movimento, divulgada pelos estudos de Kunz (1994, 2004).1

    Quanto às ações pedagógicas, duas obras emergentes na década de 1990, tornam-se emblemáticas e representam o esforço de transformação da prática educativa da educação física escolar, a saber: o livro Metodologia do ensino de educação física, produzido por um Coletivo de Autores (1992) e, em seguida, a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais da Educação Física, editada pela primeira vez no ano de 1996, idealizado pelo Ministério da Educação e construído pelas Secretarias de Educação do Ensino Fundamental e Médio (BRASIL, 2000).

    Ambas as obras apresentam uma concepção de educação física alternativa ao modelo da prática esportivizada, vigente desde a década de 1970; pautadas no aspecto cultural como critério organizador do conhecimento, as referidas obras defendem que os conteúdos da educação física advêm de temas da Cultura Corporal e Cultura Corporal de Movimento, respectivamente. No entanto, o Coletivo de Autores expressa de forma sistemática e mais complexa o processo de ensino da educação física, definindo além dos conteúdos, uma proposição metodológica e avaliativa sistematizadas.

    Do ponto de vista da avaliação, a concepção Crítico-Superadora (Coletivo de Autores) aponta outras dimensões do processo avaliativo, tais como as significações, implicações e conseqüências pedagógicas, políticas e sociais, defende que o sentido da avaliação está na sua condição de referência para análise da aproximação ou distanciamento do eixo curricular que se baseia o projeto pedagógico, assim como destaca alguns elementos importantes para compreender a prática avaliativa: o projeto histórico, condutas humanas, decisões em conjunto, compreensão crítica da realidade, ludicidade e criatividade.

    Quanto aos PCNs/ Educação Física, não identificamos uma sistematização de avaliação, o documento apenas indica que há de se considerar alguns aspectos tais como, diferenças individuais, conhecimento de regras e de jogos e brincadeiras, sem especificar tempo pedagogicamente necessário e uma organização metodológica (BRASIL, 2000).

    Ao colocar-me na condição de observador/observado, relatando minha própria experiência pedagógica em educação física na escola, refaço os caminhos metodológicos, percorro outros, considerando tal experiência um movimento dinâmico, não estático e não acabado, recursivo, como um desafio constante a ser enfrentado na contemporaneidade. Nesse sentido, destaco para análise do presente estudo a relação entre a perspectiva da Cultura de Movimento e a prática avaliativa em educação física escolar.

    A Problematização gira em torno de como o conceito de Cultura de Movimento pode contribuir para organizar e ampliar a compreensão da educação física na escola, de modo que os conteúdos de ensino, sistematizados ou não, se desenvolvam por outros mecanismos metodológicos, que não aqueles pautados no paradigma da aptidão física/ esportivização. Dessa forma, indagamos a respeito de como ampliar as possibilidades de aquisição do conhecimento, para além da estratégia de reprodução das técnicas esportivas e de atividade física; como observar e analisar o desempenho escolar do aluno, que não única e exclusivamente pela aplicação de testes físicos e antropométricos, quando muito.

    A partir desses questionamentos e, tendo-se como pano de fundo a produção de conhecimento científico-pedagógico da educação física nas duas últimas décadas, o presente estudo tem como objetivo identificar em que medida a Cultura de Movimento, enquanto critério organizador do conhecimento da Educação Física, contribui para a ressignificação dessa prática pedagógica na escola.

    Compreendemos que os conteúdos de ensino da educação física, configuram temas que se originam de certa cultura de movimento, tradicional, enraizada no seu povo, que contam a sua história individual e coletiva, seus costumes e formas de se movimentar particulares. Nesse sentido, torna-se inconcebível que o conhecimento a ser adquirido/compartilhado de todo esse acervo seja negligenciado dentro da escola, em detrimento da aquisição de aspectos secundários, como a busca exclusiva pelo desempenho técnico, pela alta performance, pela aptidão física, pelo padrão ideal de corpo; valores que ainda hoje influenciam diretamente a organização e os modelos das aulas de educação física escolar.

    Nesse sentido, o relato procura ampliar a discussão sobre a organização do conhecimento da educação física, a partir do conceito de Cultura de Movimento, sendo esta “... uma conceituação global de objetivações culturais, em que o movimento humano se torna o elemento de intermediação simbólica e de significações produzidas e mantidas tradicionalmente em determinadas comunidades ou sociedades” (DIETRICH apud KUNZ, 2004, p.38). Incluímos nessa relação, a reflexão sobre a prática avaliativa em educação física escolar, entendida nesse contexto como elemento-chave para a leitura da realidade, oportunizando o diálogo entre os dois contextos: escolar e o da vida sociocultural.

    Os argumentos e as reflexões levantadas nesse relato baseiam-se na observação sistematizada das aulas de educação física, realizadas na referida escola ao longo de um semestre letivo. O foco desse relato está centrado no processo de avaliação, compreendido como ação contínua e mediadora do processo ensino-aprendizagem, e refletida a partir das práticas corporais advindas da Cultura de Movimento dos educandos da cidade de Macaíba/ RN. As experiências vivenciadas nas aulas foram discutidas com os grupos de alunos e suscitaram algumas questões, por exemplo: Onde e quando os alunos aprenderam os movimentos identificados nas aulas? Quais são as implicações dessas experiências na vida de cada um? O que aprenderam com as práticas corporais? O que elas significam para cada um deles?

    Por um lado, essas questões mostram que muitas experiências de movimento relatadas pelos alunos advêm do contexto extra-escolar, trazidas para a escola em forma de brincadeiras e pequenos jogos-desafios em diversos momentos: antes das aulas, no intervalo e após as aulas. Por outro, identificamos também que há embutido nessas práticas um saber, uma forma de conhecimento própria do educando (ator social), construído ao longo da sua historicidade, revelada nas esferas individual e social.

Movimento, Experiências Compartilhadas, Aprendência...

“Uma sociedade onde caibam todos só será possível num mundo no qual caibam muitos mundos”.

Hugo Assmann

    Estou inserido na referida escola desde o ano de 2006, quando fui aprovado em concurso público para professor do Estado do Rio Grande do Norte. No entanto, a experiência relatada corresponde a uma atividade de conclusão do ano letivo de 2008, onde professor e alunos constituíam agentes construtores de conhecimento, atuando em suas especificidades, dentro de suas possibilidades e limites. O planejamento anual deste período já previa a realização de uma atividade conclusiva, na qual os alunos (do 6º ao 9º ano) e o professor deveriam selecionar dentre os conteúdos, temas abordados nas aulas, e o saber dos próprios alunos, aqueles que mais despertaram o interesse em vivenciar e/ou a curiosidade em experimentar.

    Nesse sentido, os encaminhamentos pedagógicos vivenciados nesse período e a conseqüente tomada de decisões resultaram do diálogo entre professor e alunos, cujas discussões refletiram sobre a construção dos jogos, as atividades de ensino, as experiências de “aprendência” das pessoas envolvidas no processo, o encerramento das aulas e, principalmente, sobre como avaliar os procedimentos de obtenção dos resultados, compartilhados ao longo de um determinado período de tempo (dois bimestres), de modo a não nos prendermos simplesmente à análise dos resultados obtidos.

    As experiências de movimento relatadas nesse estudo foram compartilhadas por meio de atividades específicas, desenvolvidas no formato de um torneio entre equipes, que envolveu os alunos e alunas do ensino fundamental (6º ao 9º ano) durante dois dias no próprio espaço escolar. Dos temas/conteúdos desenvolvidos ao longo do ano, foram selecionados quatro (04) atividades a ser desenvolvidas: o “jogo de futebol”, a “corrida de revezamento”, “futebol com as mãos” (denominação dos alunos) e a “corrida de saco”. As equipes eram representadas por cores e constituídas por alunos de todos os níveis de ensino, ou seja, numa mesma equipe havia alunos de 11 a 17 anos de idade, os quais participavam de todas as modalidades propostas.

    As atividades ocorreram dentro do próprio espaço da escola, em uma área de terra sem pavimento e sem cobertura que existe na frente do prédio. O jogo de futebol foi construído a partir do conhecimento desta prática que os alunos possuíam anteriormente, sendo necessário adequar regras, espaço e material ao ambiente e ao nível de conhecimento dos participantes; nesse caso, meninos e meninas participavam da mesma equipe.

    O atletismo foi um dos primeiros conteúdos desenvolvido nesse espaço de tempo, sendo escolhido por apresentar aspectos como, facilidade de acesso a essa prática, exigir poucos materiais ou nenhum em algumas modalidades, estar intrinsecamente relacionado à percepção de movimento e de corpo, às transformações corporais como ritmo, temperatura e, sobretudo, por representar uma prática corporal mais próxima da realidade de muitos alunos. Iniciamos as aulas a partir da problematização do conteúdo, questionando aos alunos o conhecimento sobre as maneiras possíveis de o corpo deslocar-se no espaço e das possibilidades de se desenvolver a corrida. Como resposta, surgiu alguns encaminhamentos práticos e, segundo os alunos, correr com o próprio corpo seria uma forma mais veloz de se colocar em movimento, comparada ao andar ou caminhar.

    Após a discussão sobre as formas de se praticar a corrida, desenvolvemos a atividade de “corrida de revezamento”, na qual dividimos os alunos em grupos que se revezavam na corrida dentro de espaços definidos. Discutimos sobre essa possibilidade de movimento no cotidiano, como atividade comum praticada por diversas pessoas e em diversas circunstâncias da vida, sendo também, lembrada como uma modalidade esportiva, cuja finalidade pode estar vinculada ao lazer, à busca de saúde, aos cuidados com o corpo e, também, ao rendimento esportivo.

    A “corrida de saco” surgiu como atividade problematizadora durante as aulas, quando se questionou quais outras formas de praticar a corrida poderiam ser vivenciadas e, dentre inúmeras variações, chegamos a esta possibilidade de movimento, irreverente, desafiadora e criativa. A atividade consistia em colocar-se dentro de um saco de algodão, amarrado à cintura, e se deslocar de um ponto a outro do espaço.

    O “futebol com as mãos” é uma denominação dos alunos para uma atividade desenvolvida nas aulas, quando investigávamos quais as possibilidades de desenvolver um jogo, usando como objeto/material uma bola e que não fosse permitido usar os pés para jogá-la. Dentre as possibilidades, surgiu o jogo de basquetebol, o voleibol e, alguns alunos afirmaram conhecer, o handebol. Entretanto, analisando as condições espaciais e de material da escola, professor e alunos optaram em desenvolver o “futebol com as mãos”, atividade que lembra o esporte de quadra denominado handebol, mas que os alunos tiveram a oportunidade de construir as regras e desempenhar a técnica mais adequada às suas capacidades e ao ambiente. Nessa atividade, em virtude do espaço irregular, uma das regras estabelecidas consistia em que a bola não poderia tocar o chão, caso ocorresse, a mesma seria de posse da outra equipe.

    Ao observar as atividades desenvolvidas e as falas dos alunos envolvidos na escola, destacamos elementos fundamentais, na cultura e na história de vida de cada um, que nos permitem identificar e compreender alguns aspectos importantes como, atitudes, comportamentos, valores socializados, formas de se movimentar e de agir que moldam os sujeitos, definem estilos (“relaxado”, “apressado”, “preocupado”, “formal”, “extrovertido”, “tímido”). Tais aspectos funcionam como pano de fundo dessa interação histórico e sociocultural entre os sujeitos, caracterizando em geral certa comunidade ou sociedade.

    A respeito do movimento humano, ressaltamos a compreensão de Mendes (2007) sobre a relação que a cultura de movimento estabelece com corpo, natureza e cultura quando, baseada nos estudos da Semiótica da Cultura, a autora afirma que os “textos da cultura, ou seja, a música, o cinema, as danças, os jogos, um determinado romance, entre outros, possuem uma relação constante com os códigos do funcionamento orgânico e com os códigos da linguagem” (MENDES, 2007, p. 48). Nesse sentido, a autora acrescenta a idéia de que “a cultura de movimento ao envolver a relação entre corpo, natureza e cultura, sendo construída e reconstruída a partir dos gestos, não se resume às manifestações dos jogos, danças, brincadeiras, ginásticas, esportes ou lutas, abrangendo, portanto, as diversas maneiras que o ser humano existe e faz uso de seu corpo” (MENDES, 2007, p. 49).

    Por este mesmo raciocínio, podemos compreender esses fenômenos da cultura, própria de determinada sociedade, pelas palavras de Kunz (2004), ao afirmar que “Em todas as Culturas podem ser encontradas as mais diferentes expressões de danças, jogos, competições ou teatros movimentados” (KUNZ, 2004, p. 38). Completa o autor: “A estas manifestações culturais correspondem especificações culturais que se expressam pela conduta e pelo sentido do movimento humano” (DIETRICH apud KUNZ, 2004 p. 38).

    Destacamos nessa discussão as técnicas corporais como outro elemento fundamental para se pensar as diferentes manifestações da cultura de movimento. Segundo Marcel Mauss, as técnicas corporais “significam as maneiras como os homens, sociedade por sociedade e de maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos”.

    Observando as práticas corporais registradas anteriormente na referida escola, o gesto ou o movimento como um todo, experimentado em um determinado momento, nos apresenta como experiência única, particular, própria de quem o executa, portanto, rico em sentido-significado incomparável. Nesse sentido, não cabe posicionamento arbitrário, nesse caso, não se deve julgar ou classificar como bom ou ruim o desempenho do aluno, visto que o aspecto mais valorativo estar no “experimentar”, no prazer, na sensação que tal movimento proporciona a quem experimenta. Aspectos outros que não sejam intrínsecos a estes são secundários.

    Isso não quer dizer que a aprendizagem da técnica, o aprimoramento do gesto sejam desvalorizados no ensino da educação física escolar, mas, quer dizer que há elementos contidos no movimento e no gesto técnico que extrapolam o ensino instrutivo do conteúdo, afetam diretamente as sensações, a emoção, tem a ver com aspectos do conhecimento de si, do próprio corpo e do que ele é capaz.

    Por este prisma, percebemos que a maneira de agir, de se movimentar, o modo como o ser humano usa seu corpo, vai se modificando, alterando os estilos, perdendo alguns e incorporando outros, conforme o contato com outros povos, modas, costumes, valores de determinada sociedade. Dessa forma, identificar esses pontos de mutação, conhecer as causas de transformação social e cultural pelo uso das técnicas e dos seus corpos é extremamente relevante para compreender a si mesmo e o seu entorno.

    O que identificamos nesse relato como práticas socializadas, aprendidas e compartilhadas entre os alunos da escola analisada, se constitui aquilo que reconhecemos como cultura do movimento não formalizada pela literatura, mas que podemos observar em diferentes espaços e contextos sociais quer seja, em forma de brincadeiras em círculo, jogos de dança ou jogos com bola desenvolvidos pelas crianças em praças públicas, ruas, parques, quer seja, pela manifestação da cultura de movimento dentro de esportes normatizados, sendo estes adaptados às condições de espaço, de tempo, de material e dos participantes (KUNZ, 2004).

    Acreditamos na possibilidade de melhor compreensão do conhecimento e da atividade pedagógica da educação física na escola a partir do conceito de Cultura de Movimento, visto que este permite o diálogo entre aquilo que já está sistematizado ao longo de sua história e as manifestações culturais mais complexas, não codificadas nem sistematizadas pela educação física, mas que, identificadas em determinada sociedade poderão vir a se transformar em conteúdo de ensino, ampliando o processo de reelaboração do conhecimento e da realidade vivida.

Avaliar a partir da Cultura de Movimento

“... cada um de nós compõe a sua história...”

Almir Sater

    Inicialmente, gostaríamos de ressaltar algumas compreensões de avaliação segundo autores da educação. Encontramos neste percurso uma primeira definição de avaliação que, segundo Luckesi (2006), corresponde a “um julgamento de valor sobre manifestações relevantes da realidade, tendo em vista uma tomada de decisão” (LUCKESI apud LUCKESI, 2006). O desdobramento desta definição aponta para três elementos que constituem a avaliação. Primeiro, ela é um juízo de valor, o que implica uma qualidade ao objeto; segundo, o julgamento baseia-se nos caracteres relevantes da realidade, o que constitui a sua objetividade e, terceiro, a avaliação implica uma tomada de decisão (LUCKESI, 2006). Destaca ainda que os estudos sobre a avaliação escolar implicam necessariamente um ato de reflexão para descobrir a qual modelo ou concepção de educação e de sociedade esta prática está vinculada.

    No estudo sobre a “avaliação do rendimento escolar” 2, destacamos a análise dos pressupostos epistemológicos da avaliação educacional, desenvolvida por Maria Franco (1991). A autora ressalta a necessidade de compreender a importância dos pressupostos teórico-metodológicos que fundamentam os diferentes modelos ou paradigmas da avaliação. Segundo a autora, qualquer modelo de avaliação concentra decisões expressa na prática do professor quando avalia, enfatizando que tais decisões não são neutras nem arbitrárias:

    Ao contrário, traz no seu bojo uma maneira bem específica de conceber o mundo, o indivíduo e a sociedade, a qual condiciona a tomada de decisões no plano das políticas educacionais e orienta e norteia a prática pedagógica no âmbito da escola e da sala de aula (FRANCO, 1991, p. 15).

    A importância do aprofundamento na análise dos pressupostos inerentes às modalidades de ação educativa consiste, segundo a própria autora, na possibilidade de construir de modo mais consciente a organização curricular, a sistemática de avaliação, bem como funcionar como “parâmetros para julgamento da relevância social dos conteúdos e para a obtenção de um conhecimento mais realista acerca do aluno” (IDEM).

    Por esse entendimento compreendemos que a avaliação é componente indispensável da prática educativa e sua vinculação com o cotidiano constitui fonte de sentido para compreender o universo educacional como todo, identificando, analisando e indicando perspectivas para a resolução de problemas originados dentro do contexto escolar, mas, que refletem fora dele, reciprocamente. Essa interação entre escola e cotidiano implica a revisão dos conceitos e concepções de avaliação bem como da sua função e sentido para a escola, para o professor e para o aluno.

    Sobre a perspectiva da relação entre o processo avaliativo na escola e os acontecimentos gerais da vida, concordamos com Jussara Hoffmann (2003), ao defender uma concepção de avaliação mediadora como postura de vida, ou seja, aquela que permita a reflexão de três dimensões específicas, análise de experiências vividas, respeito à sensibilidade do professor, aprofundamento teórico. Para a autora, duas questões devem ser consideradas pertinentes quando se trata de estudos sobre avaliação. Primeiro, o estudo sobre avaliação não significa estudar teorias de medidas educacionais e tratados estatísticos. Segundo, o importante é o desencadeamento de propostas alternativas diante das críticas feitas, não apenas permanecendo nestas últimas.

    Conceber a avaliação a partir da expectativa da mediação implica compreender, sobretudo, que a ação pedagógica deve ser reflexiva, no sentido mais amplo que este termo exprime: pensar sobre os atos ocorridos e retomá-los, perspectivando o futuro. No que tange ao processo de aprendizagem, a perspectiva de avaliação mediadora não tem o objetivo de verificar e registrar dados do desempenho escolar. Deve, sim, observar permanentemente as manifestações da aprendizagem. Nesse contexto, o problema estar menos na mudança dos procedimentos metodológicos do que na finalidade destas ações.

    O caminho percorrido neste estudo para refletir sobre a avaliação em educação física escolar parte, primeiro, do pressuposto de que a Cultura de Movimento é o elemento simbólico da intermediação entre a experiência vivida e o conhecimento. Segundo, a prática avaliativa deve estar pautada basicamente em três questões, a saber: o que avaliar? Como avaliar? Para que avaliar?

    A avaliação nas aulas de educação física, nesse caso, teve como propósito analisar o que foi desenvolvido durante as atividades, identificando nelas a participação e o compromisso dos alunos durante as atividades, a compreensão do movimento como possibilidade de conhecimento de si e de relacionamento com o “outro” (pessoas e ambiente), a vivência dos fundamentos técnicos e táticos de cada prática, a percepção do corpo, a capacidade criativa e de organização em grupo, a compreensão da historicidade das práticas corporais vivenciadas nas aulas.

    Dessa forma, compreendemos que na perspectiva de avaliação mediadora, a prática avaliativa não visa aferir somente o resultado com a finalidade de conferir apenas uma nota pelo desempenho nas atividades realizadas, mas, sobretudo, oportunizar aos alunos diversos momentos de expressar suas idéias, seu conhecimento prévio, suas angústias e compartilhar os saberes. Nesse sentido, há diversas estratégias possíveis para desencadear essas expressões, tais como filmes, documentários, aulas-passeio, pesquisa na internet, jornal e revista impressos. Nesse caso, adotamos a realização de um evento esportivo na escola, no qual diversas atividades poderam ser realizadas, baseadas nas experiências de ensino anterior e do conhecimento prévio dos alunos.

    A realização das práticas corporais relatadas anteriormente foi discutida entre professor e alunos, com a finalidade de encontrar uma forma mais atrativa, prazerosa e que envolvesse a todos, de modo que houvesse uma maior interação/aproximação entre meninos e meninas, turmas maiores e turmas menores, entre os alunos de diferentes idades.

    O registro dessas informações foi obtido ao final das atividades, em momento posterior na sala de aula, com cada turma participante, no qual professor e aluno discutiram e registraram suas observações quanto aos problemas (violência, comportamento, desrespeito às regras e aos companheiros, preconceitos) ocorridos durante as atividades, principalmente, no que diz respeito à experiência de compartilhar o mesmo espaço entre meninos e meninas, de experimentar diferentes formas de movimento, quanto ao próprio desenvolvimento das atividades, bem como, da participação de alunos e professor na resolução de problemas.

    Percebemos que as idéias e estratégias de avaliação, partilhadas nessa experiência pedagógica, assemelham-se ao que os estudos sobre avaliação têm alertado, isto é, para a necessidade do “caráter interativo” e “intersubjetivo” da avaliação, além da essencialidade do diálogo, superando o “caráter classificatório”, que tem na essência a competição e o individualismo (HOFFMANN, 2003).

    Acreditamos que a realização de um evento escolar como o torneio de práticas corporais realizado entre turmas de educação física da Escola Estadual Arcelina Fernandes (Macaíba/RN), não se configura por si só uma forma única de avaliar o desempenho de aprendizagem dos alunos nas aulas de educação física, nem mesmo, a mais adequada. Quero afirmar, sim, que este evento representou uma maneira dentre inúmeras possíveis de observar, registrar, debater acerca do compromisso e da responsabilidade dos alunos com o professor e vice-versa, das relações interpessoais, assim como, uma possibilidade real de apreciar o conhecimento da técnica, da tática dos diferentes jogos e práticas corporais.

    Compreendido como momento de celebração, de encontro, de confronto e de compartilhamento, o torneio abriu espaço para a ampliação das possibilidades de movimento, de reinvenção e construção de conhecimento, visto que durante as aulas os alunos não tinham o contato com alunos de outras turmas. Isso significa que, apesar da avaliação voltar-se para o compromisso individual com cada aluno, a interação com o outro implica no processo de autoconhecimento, sendo a auto-avaliação um elemento relevante dentro da prática pedagógica. Essa estratégia une a visão de indivíduo à do grupo, favorável para o desenvolvimento do caráter e da responsabilidade, por permite o debate entre as diversas visões de uma mesma realidade ou fenômeno.

    Para que avaliar é uma questão que deve estar clara não somente para o professor, mas, sobretudo, para o aluno, no sentido de fazer com que este possa refletir sobre as situações vividas, os problemas ocorridos na escola, relacionando-os ao contexto sociocultural mais amplo. Necessário também para que professor e aluno possam formular e reformular hipóteses, criando estratégias de ensino e aprendizagem em direção ao saber mais elaborado sobre os fenômenos, favorecendo novas descobertas, possibilidades, pela atitude criativa de cada um e dentro do grupo ao qual pertence.

    Refletir sobre o vivido e apontar novos rumos para o ensino e aprendizagem são estratégias que delineiam uma nova concepção de avaliação. Nesse percurso, compreendemos que os caminhos são necessariamente inconclusos, porque indefinidos o são os tempos de aprendizagem, isto é, o momento de aprender não é linear nem se dá de forma homogênea entre os alunos. Sendo assim, a avaliação enquanto ação mediadora, segundo Hoffmann (2003), propicia abertura ao diálogo, interação e, sobretudo, compreende que os pontos de chegada são passageiros, provisórios.

    Sobre o tempo do aprender, Hoffmann cita Bernard Charlot, que diz: “A relação com o saber é relação com o tempo [...] Esse tempo é o de uma história: da espécie humana, que transmite um patrimônio a cada geração [...] Esse tempo não é homogêneo, é ritmado por ‘momentos’ significativos, por ocasiões, por rupturas” (CHARLOT apud HOFFMANN, 2003, p.40).

    É, sobretudo, nesse cenário de incertezas e inconclusões que a prática avaliativa deve ampliar as possibilidades de apropriação do conhecimento, da construção de novas idéias, de relações interpessoais mais próximas, necessárias para compreender a si mesmo a partir da convivência com o outro.

Caminhos e reflexões...

“Cada passo é uma grande conquista”

Hoffmann

    De tudo o que foi dito, de tudo o que foi experimentado, somente obterá sentido se aquilo que falamos ou experimentamos estiver impregnado de um significado próprio, atribuído por cada um. Em outras palavras, aquilo que nos marca, que impregna o corpo só se transforma em conhecimento significativo quando a experiência vivida nos afeta de alguma forma, se ela nos possui, numa relação recíproca entre o fenômeno e o sujeito, enfim, quando há encantamento, para usar uma expressão de Cyrulnik. Desta forma, pensar a avaliação em educação física exige primeiramente um diálogo direto e aberto com a vida, nesse caso, intermediado simbolicamente pelas manifestações culturais, presentes na cultura de movimento de determinada sociedade.

    Se, nesse relato, não apresento definitivamente uma concepção de avaliação que me sustenta claramente na prática docente, pelo menos sei aquilo que não pode ser. Uma prática que por muitos anos até os dias atuais atua na forma de mensuração descontextualizada, de classificação e de julgamento sem sentido, definitivamente não se configura como minha proposição para a prática avaliativa, mas, sim, aquela que possa refletir o conhecimento como fonte de diálogo com a vida, gerando sentidos e significados novos diante de uma nova leitura da realidade. Nesse bojo, não se concebe perder de vista a tradição das práticas corporais, culturais, sociais, compreendida como condição necessária à liberdade de expressão de um povo, sociedade ou comunidade; somando-se às diversas formas de linguagem, a linguagem corporal expressa nessas manifestações, mostra-se única, particular e, ao mesmo tempo, universal.

    Nesse ponto concordamos com Elenor Kunz (2004), quando afirma que estas culturas tradicionais seriam valorizadas pela educação física escolar se, incluídas no currículo, fosse ampliado o conceito da Educação Física e Esportes. Nesse caso, segundo o autor, os esportes normatizados poderiam sofrer alterações, incorporando importantes elementos culturais específicos da região, do país, em vez de reproduzir nestas formas esportivas, modelos únicos, padronizados, importados de outras culturas sem a devida reflexão crítica.

    Com isso, não se trata de negar outras manifestações da cultura de movimento, mas, ligá-las ao contexto local, produzindo novas formas de usos do corpo, de movimento e, assim, ampliar o campo de compreensão do conhecimento, ao relacionar os fenômenos do contexto local com o universal.

Notas

  1. Referência do termo cultural utilizada para indicar um novo olhar da educação física frente ao conhecimento mais amplo de Corpo, de Movimento e de Ser Humano. Ver síntese da discussão na Dissertação de Mestrado de Isabel Mendes/UFRN (2007), assim como nas obras dos respectivos autores mencionados acima.

  2. Este é o título da coleção Magistério, Formação e Trabalho Pedagógico, organizado por Clarilza Prado de Sousa e editado pela Papirus.

Referências

  • BETTI, M. Ensino de primeiro e segundo graus: educação física para quê? Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Maringá, v. 13, n. 2, p. 282-287, 1992.

  • BRACHT, Valter. Educação física e ciência: cenas de um casamento (in)feliz. Ijuí: Editora Unijuí, 1999.

  • BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Parâmetros curriculares nacionais. Secretaria de Educação Fundamental. 2000.

  • COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do ensino da educação física. São Paulo: Cortez, 1992.

  • FRANCO, Maria. L. P. B. Pressupostos epistemológicos da avaliação educacional. IN: SOUSA, Clarilza P. de (Org). Avaliação do rendimento escolar. São Paulo: Papirus, 1991.

  • HOFFMANN, Jussara. Avaliação mediadora: uma prática em construção da pré-escola à universidade. Porto Alegre: Editora Mediação, 20ª Ed, 2003.

  • _________________. Avaliar para promover: As setas do caminho. Porto Alegre: Editora Mediação, 7ª Ed, 2005.

  • KUNZ, Elenor. Transformação didático-pedagógica do esporte. – Ijuí: Editora UNIJUÍ, 1994.

  • ____________. Educação física: ensino e mudanças. 3ª Edição– Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2004.

  • LUCKESI, C. Avaliação da aprendizagem escolar. São Paulo: Cortez, 18ª Ed, 2006.

  • MENDES, Isabel Brandão de Souza Mendes. Mens sana in corpore sano: Saberes e práticas educativas sobre corpo e saúde. Porto Alegre: Sulina, 2007.

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