efdeportes.com

Formação profissional e Educação Física Escolar: 

contribuições do currículo para a prática docente

Formación profesional y Educación Física Escolar: aportes del currículo a la práctica docente

Professional formation and Scholastic Physical Education: Contributions of the graduation curriculum to the teaching practice

 

*Licenciado em Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

**Mestre em Ciências do Movimento Humano pela

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Professora da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre

***Doutor em Filosofia e Ciências da Educação pela Universidad de Barcelona

Professor de Graduação e Pós-Graduação da Escola de Educação Física da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (EsEF/UFRGS)

Guilherme Bardemaker Bernardi*

Mônica Urroz Sanchotene*

Vicente Molina Neto***

bernardi.esef@gmail.com

(Brasil)

 

 

 

Resumo

          O foco do presente artigo é a formação profissional para a docência em ambiente escolar. Trata de compreender como o currículo do curso de licenciatura em educação física da Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (EsEF/UFRGS) prepara seu egresso para a prática docente em escolas da rede pública. Partindo de uma perspectiva crítica da educação e da educação física, iniciamos com uma breve discussão sobre a questão central de pesquisa. Logo em seguida apresentamos as decisões metodológicas do estudo. Nossa opção foi por um estudo de caso etnográfico dado às características do fenômeno estudado. Fica evidente nas análises feitas que as oportunidades de prática docente durante o curso são insuficientes na formação dos estudantes de educação física para a educação básica.

          Unitermos: Formação inicial em Educação Física. Currículo de graduação. Prática docente escolar

 

Abstract

          The focus of the present article is the professional formation for the teaching at scholastic environment. Treats to comprehend how the physical education curriculum from the Physical Education School of Federal University of Rio Grande do Sul (EsEF/UFRGS) provides your egress for the teaching practice at public network schools. Beginning of a critical perspective from education & from physical education, we start with a short discussion about the principal question of the research. After, we present the procedural decisions of the study. We choose the ethnographic case study due to the configuration of the phenomenon studied. Seems evident in the analysis we made that the teaching opportunists during the graduation are not enough in the formation of the physical education students to the basic education.

          Keywords: Initial formation in Physical Education. Graduation curriculum. Scholastic teaching practice

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 141 - Febrero de 2010

1 / 1

1.     Introdução

    Criticar a educação física escolar da rede pública, de um modo geral, hoje no Brasil não é tarefa difícil. Os baixos salários, a falta de recursos materiais e infra-estrutura, a desvalorização do trabalho docente e a seqüência de governos descompromissados com a educação pública são alguns dos pontos que nos levam a refletir sobre o desafio de ser professor da rede pública de ensino nos dias atuais. Assim, entendemos que a formação inicial dos professores de educação física deve contribuir de maneira que os futuros docentes mesmo frente aos mais diversos problemas conjunturais e estruturais da escola pública, ensinar os conhecimentos historicamente construídos, para que esta não se constitua, como em muitos dos casos, um mero “recreio orientado” ou um horário para a prática descontextualizada de alguma atividade física ou de algum esporte.

    O presente artigo é resultado de uma pesquisa qualitativa que teve como objetivo buscar algumas considerações sobre a formação profissional para a docência escolar do curso de licenciatura em educação física da Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (EsEF/UFRGS). Entendendo a disciplina de prática de ensino como momento de interlocução entre os conhecimentos adquiridos durante o processo de formação, nossa pesquisa de campo ocorreu neste ambiente. Partindo do diálogo com estudantes de graduação e dialogando com a literatura da área, buscamos compreender como o currículo da formação inicial subsidia seus futuros egressos para a prática docente.

2.     Uma breve discussão sobre a formação de professores

    Para iniciar este debate, partimos do princípio que os estudos sobre a formação de professores em educação física têm se intensificado ao longo dos últimos anos, se consolidando como uma importante linha de pesquisa dentro da área, visto que no último Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte (CONBRACE 2009), o GTT “Formação Profissional e Mundo do Trabalho” foi o grupo de trabalho temático que mais apresentou produções, tendo 57 trabalhos científicos aprovados.

    Pode-se dizer que este debate foi alavancado em meados dos anos 80, quando vários autores começaram a questionar a perspectiva conservadora da área que se materializava no estigma do desenvolvimento da aptidão física. Nesta década inicia-se uma fase de muito debate e críticas em relação a esse padrão consolidado durante o último século e baseado pelos ideais liberais de sociedade, dentre os quais se incluem as tendências higienista, militarista, pedagogicista e competitivista (GHIRALDELLI JR, 1991). Este padrão influenciou os cursos de formação de professores, acarretando neste tipo de proposta pedagógica também para a educação física escolar. Segundo Taffarel (2007), esta herança tecnicista e positivista começa então a ser questionada radicalmente, pois era necessário romper com as origens desta perspectivas que serviam de referência para a formação acadêmica no Brasil.

    Surgem neste período, conhecido como “crise da educação física”, diversas abordagens contrapondo às vertentes técnico-biológicas, como a abordagem desenvolvimentista, interacionista-construtivista, crítico-emancipatória, crítico-superadora e sistêmica.

    Apesar do significativo avanço teórico da educação física, fato é que no âmbito da ação pedagógica os avanços ainda têm se mostrado muito limitados. Por um lado devido à precarização do ensino público brasileiro e, por outro, certa incongruência entre a formação de professores de educação física e a realidade escolar.

    A formação de professores de uma forma geral vem seguindo a concepção denominada “pedagogia das competências”, inserida em diversos documentos oficiais, tais como a Resolução CNE/CP (Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno) nº1, de 18 de fevereiro de 2002 e que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena.

    Segundo Ramos (2002), a educação baseada no princípio das competências, mesmo sendo enunciadas como princípio formativo adequado à flexibilidade e à complexidade atual dos processos de trabalho se reduzem a atividades profissionais prescritíveis, se encaixando dentro dos padrões de produção taylorista-fordista compreendendo assim uma formação de caráter técnico instrumental.

    Em acordo com esta autora, Taffarel & Santos Júnior (2005) sublinham que o projeto de educação baseado na pedagogia das competências está articulado com o plano econômico por meio da reestruturação produtiva, calcado nos princípios políticos do neoliberalismo.

    Conjuntamente com estes princípios, a formação em educação física segundo Nozaki (2005)

    [...] tem passado , desde a década de 80 e mais fortemente na década de 90, por uma grande orientação para o campo não-escolar. O discurso ligado ao empreendedorismo apontou o assim chamado mercado emergente das práticas corporais, sobretudo o das atividadades físicas, como o mais promissor para gerir a precarização do trabalho docente. (p. 24)

    Com esta tendência de formação demandada pelo mercado de trabalho, entendemos que os currículos de formação de professores têm se baseado majoritariamente no que Giroux (1997) chama de “modelo tecnocrático”, ignorando a promoção de uma reflexão crítica, favorecendo uma visão passiva dos estudantes sobre os conteúdos curriculares. Segundo o autor,

    [...] o conhecimento no modelo curricular dominante é tratado basicamente como um domínio dos fatos objetivos. Isto é, o conhecimento parece objetivo no sentido de ser externo ao indivíduo e de ser imposto ao mesmo. Como algo externo, o conhecimento é divorciado do significado humano e da troca inter-subjetiva. Ele não é mais visto como algo a ser questionado, analisado e negociado. Em vez disso, ele se torna algo a ser administrado e dominado (p. 45)

    Assim a formação baseada nestes moldes tem precarizado o trabalho docente escolar, na medida em que o domínio das habilidades técnicas e instrumentais por si só não são suficientes para a dimensão social e política do mundo escolar. Em face de o objeto de estudo estar pautado sob a ótica da atividade física/movimento humano e classificada dentro das ciências da saúde, a formação atual em educação física prioriza o conhecimento esportivo e biológico e põe em segundo plano a gama de conhecimentos das práticas educativas e pedagógicas, inerentes e fundamentais para a atuação do professor enquanto educador, independente de qual seja seu espaço de trabalho, fato que ficou evidenciado em nosso estudo.

3.     Decisões metodológicas

    Utilizamos o estudo de caso etnográfico, por entendermos que este desenho metodológico contribui para um melhor aprofundamento da temática do trabalho, tendo a vantagem de conectar-se rapidamente com a realidade evitando simplificações (MOLINA, 2004), já que a intenção do trabalho não é fazer generalizações, e sim descrever profundamente um contexto particular.

    Segundo André (1998), “[...] o estudo de caso etnográfico possibilita uma visão profunda e ao mesmo tempo ampla e integrada de uma unidade complexa” (p. 49). Dessa forma, compreendemos que a formação inicial a ser investigada neste estudo assume o papel desta “unidade complexa”, por entender que ela é uma organização estruturada e que necessita de elementos metodológicos determinados para orientar a pesquisa.

    Acompanhamos durante um semestre uma turma de Prática de Ensino, onde participávamos das reuniões que antecederam o período de estágio propriamente dito. Para melhor delimitar o estudo observamos mais profundamente uma representação tipológica dos estudantes que estavam realizando estágio obrigatório no ensino fundamental, no primeiro semestre de 2008. Assim, contamos com a colaboração de 4 estudantes do curso de licenciatura em educação física da EsEF/UFRGS que estivessem realizando a disciplina de Prática de Ensino em escolas da rede pública1. Abaixo o quadro da relação dos estudantes, seus respectivos currículos e as escolas onde atuaram.

Colaborador

Ano de Ingresso na EsEF/UFRGS

Currículo

Escola em que realizou o estágio

Rosa

2003/1

Licenciatura 0.45

Escola Estadual

Vladimir

2004/2

Licenciatura 0.45

Escola Municipal

Ernesto

2005/1

Licenciatura Nova

Escola Municipal

Marques

2005/1

Licenciatura Nova

Escola Estadual

Quadro 1. Colaboradores do estudo

    Para a coleta de informações optamos pela análise de documentos; observações participantes realizadas na disciplina de prática de ensino, onde observamos sistematicamente as aulas ministradas pelos estagiários durante o semestre; e a entrevista do tipo semi-estruturada, realizando 4 entrevistas, uma com cada colaborador do estudo. Antes de entrarmos na pesquisa de campo propriamente dita, o projeto desta pesquisa foi aprovado pelo comitê de ética da Universidade registrado no CEP/UFRGS com o nº 2007915, e os colaboradores do estudo assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Após a pesquisa de campo, analisamos as informações das entrevistas, as informações obtidas através dos documentos e dos diários de campo, resultando na construção das categorias de análise que apresentamos a seguir.

4.     Entre a formação do professor e o mundo da escola

    Partindo do atual quadro da formação profissional em educação física é que podemos aprofundar na formação no que diz respeito à docência escolar, fazendo-se necessário compreender este contexto estrutural em que se insere a educação e a própria instituição escolar.

    A escola, assim como outras instituições sociais, deve ser analisada levando em consideração a realidade em que se situam. Deste modo, a escola, que foi criada com o intuito de transmitir os conhecimentos historicamente construídos pelos seres humanos, acaba tendo um papel importante na manutenção da ordem vigente, na medida em que é pensada de forma acrítica e distante da realidade social. Como pondera Franco (1991), a educação escolar não pode ser reduzida à pura transmissão de conhecimentos enciclopédicos. Os conhecimentos devem ser vivos e concretos, indissoluvelmente ligados às experiências dos estudantes e às exigências históricas da sociedade presente. Entretanto, fato é que as enormes mazelas existentes na escola pública brasileira faz com que o trabalho pedagógico, seja do professor de educação física ou não, sofra interferências de caráter estruturais, sociais e culturais.

    Diante desta realidade, a formação do futuro professor deve ser capaz de estimular a criticidade sobre o espaço escolar e como atuar em tais circunstâncias. Contudo, isto parece não acontecer, e a preocupação com o trabalho pedagógico no espaço escolar ainda aparece distante dos cursos de educação física, situação que faz com que grande parte dos graduandos se sintam temerosos em relação à docência em espaços escolares e vejam a instituição como “válvula de escape” profissional. Além disso, a dificuldade dos estudantes para com a escola é de maneira conceitual sobre o próprio ensino docente escolar.

    Segundo Molina Neto (2000), ao iniciar o estágio supervisionado, o aluno tem pouco conhecimento sobre o mundo escolar, o que explica a dificuldade dos graduandos de lidar com crianças no espaço da instituição escolar, mesmo que já tenham alguma experiência de ensino com crianças em espaços não-escolares. Fato que leva estes graduandos a rejeitarem a possibilidade de atuação profissional neste campo de trabalho.

    Para muitos estagiários o ato de lecionar na escola pública era um grande desafio, e grande parte deles diziam não ter a intenção de trabalhar em escola, vendo o trabalho neste ambiente como “algo a mais” para trabalharem caso fosse necessário:

    [...]eu nunca tive na verdade vontade de dar aula em escola. Quando eu entrei na educação física era mais pra conhecer essas coisas de corpo sabe?[...] a escola nunca foi um atrativo [...] a escola em si eu nunca visei..e no momento também não tenho interesse. De repente depois de eu ter passado pela experiência do estágio, agora eu já vejo que não é tão horrível como parecia (risos).no princípio né [...] (Entrevista Rosa, 09/09/2008)

    No caso da EsEF/UFRGS, em relação à formação específica para a docência escolar, evidenciamos que apesar da alteração curricular que as licenciaturas sofreram, suas disposições praticamente mantiveram-se iguais2. A chamada licenciatura plena, em extinção, com ingresso até o semestre 2004/2, do qual fazem parte os colaboradores Rosa e Vladimir, conta com 22 créditos3 obrigatórios distribuídos em 10 disciplinas que tratam de assuntos referentes à prática docente em escolas. Já a nova licenciatura, com ingresso a partir de 2005, que fazem parte os colaboradores Ernesto e Marques, conta com apenas 2 créditos obrigatórios a mais do que a licenciatura plena (24), distribuídos em 11 disciplinas. Já se formos considerar as disciplinas obrigatórias do currículo de licenciatura de cunho biológico, elas se consolidam num total de 30 créditos.

    Nossa intenção não é quantificar o currículo, mas sim compreender de que forma esta estruturação curricular está sendo condizente com a formação do professor para a atuação no mundo escolar. Além disso, a formação do professor de educação física é um processo amplo, complexo, e que envolve diversos elementos que influenciam o processo de construção dos saberes docentes. Segundo Günther e Molina Neto (2000), este processo é um “continum”, que não se inicia apenas no momento de ingresso no curso e também não se encerra ao término deste, mas se estende por toda a sua vida profissional.

    Por entender que a escola ainda é um dos campos de maior atuação do professor de educação física, nos parece clara a necessidade de aproximar a formação inicial da docência escolar como um todo. Segundo os relatos, as experiências anteriores à graduação têm um peso grande na escolha da profissão e têm influência de certa forma em suas práticas. Como destaca Sanchotene (2007), os saberes utilizados pelos professores nas aulas de educação física não têm relação apenas com a sua formação acadêmica, mas também com experiências vividas em todas as dimensões, desde a escolarização, passando pelas vivências esportivas e chegando na formação inicial, continuada, e na própria prática escolar, constituindo-se um saber de caráter plural.

    Entendemos, entretanto, ser um dever da Universidade, produtora e certificadora do conhecimento científico, de ser a principal formadora do professor de educação física. A formação profissional é um processo muitas vezes subjetivo, repleto de resultados imateriais. Mesmo que submetidos ao mesmo currículo, pessoas diferentes passam por experiências diferentes ao longo da vida, e assim suas práticas têm um caráter subjetivo inquestionável do ponto de vista científico. Porém, esta subjetividade, oriunda das vivências específicas de cada professor, deve ter seu lugar reservado apenas ao subjetivo e não na maioria do processo de formação. Por isso, há a necessidade de o licenciando conhecer desde cedo a estruturação escolar, para que ao chegar no estágio, não esteja carregado de dogmas que cerquem esta prática docente e que tenham a possibilidade de um exercício docente mais próximo da realidade da escola, sem os preconceitos e valores que trazem de suas experiências passadas e que hoje são impressos na instituição escolar.

5.     O que se aprende e o que se ensina em Educação Física: o esporte como perspectiva hegemônica

    Segundo Bracht (1997), a gênese do esporte moderno acontece em meados do século XVIII, tornando-se uma atividade corporal de caráter competitivo que institucionaliza elementos lúdicos das classes populares. Assim, as formas populares de jogos acabam sendo aos poucos esportivizadas. Segundo o próprio autor, este fenômeno esportivo “tomou de assalto” o mundo da cultura corporal, sendo hoje a expressão hegemônica das atividades corporais e da educação física, principalmente a escolar.

    Na formação superior, entretanto, esta lógica, ao invés de ser questionada, é reforçada, devido ao seu currículo extremamente esportivizado. São ao todo vinte e duas (22) modalidades esportivas que compõe o currículo da licenciatura da EsEF/UFRGS, enquanto as disciplinas relacionadas à outros temas da cultura corporal, como dança, expressão corporal, ginástica e lutas totalizam 13 disciplinas. Desta forma, além da experiência de vida e da sua formação acadêmica pautadas pelas práticas esportivas, os estagiários encontram uma estrutura escolar na qual o esporte também se constitui como um padrão cultural, materializado principalmente pela expressão do futebol, que se constituiu historicamente em uma manifestação cultural que transcendeu seus limites e se transformou em um fenômeno social com efeitos e influências diretas e indiretas em todo o tecido social, tanto no Brasil, quanto no resto do mundo (MOLINA NETO, 1995). Os patamares atingidos pela influência do esporte bretão perante a sociedade se refletem na escola e desta forma a cultura do futebol, principalmente na lógica do rendimento, se manifesta de forma tão forte no universo da educação física que proporciona situações como esta que observamos:

    Estamos assistindo à aula do Marques, quando dois alunos de outro estagiário foram tirados da aula por motivos de indisciplina, e sentaram ao nosso lado na escada de acesso ao pátio. Ao conversarmos um pouco com eles, um dos dois diz: “sôr bala era o da 3ª série, todos os dias de “física” era só futebol, só futebol”. (Diário de campo 21/05/08).

    Assim, o futebol enquanto reflexo da cultura dominante do esporte na escola interfere diretamente nas aulas de educação física, pois pelo fato de seu poder de inserção e aceitação pelos estudantes da escola, faz com que a expectativa do próprio aluno gire em torno da presença ou não deste conteúdo nas aulas, o que acaba por influenciar a prática e o planejamento dos licenciandos para o estágio docente. A utilização do futebol e suas variações (como o caso do futsal), enquanto elemento a ser ensinado nas aulas de educação física, passa então a ser utilizado como “moeda de troca” com os alunos:

    [...] eles estavam...sabe...inebriados com aquela história do tal do torneio que ia ter no colégio...então eles queriam muito treinar..e eles viam o espaço da educação física como o mais propício pra fazer isso, ou seja..eu tinha obrigação de dar..na cabeça deles eu tinha obrigação de dar futsal pra eles, entendeu..aí eu combinei que dos três períodos um pelo menos seria de futsal... aí essa foi nossa combinação, dos outros dois eu trabalhava todas as outras coisas que eu queria (Entrevista Rosa, 09/09/2008)

    A vontade dos educandos é satisfeita no intuito de conseguir com que outros elementos sejam possíveis de serem trabalhados. A partir disso, surge a necessidade de saber trabalhar de forma crítica o esporte, tanto em seu caratér dominante como conteúdo ou como perspectiva de rendimento (até porque negá-lo não nos parece a solução) e promover a discussão sobre seu real papel dentro da escola. Entretanto, esta lógica acaba se reproduzindo sem ser questionada no processo de formação, pois em acordo com Santos Júnior (2005) notamos a dificuldade dos estudantes que realizam o estágio em fugir da ótica de que a aula de educação física é um espaço para “treinar” as habilidades de uma determinada modalidade esportiva. Com isso, além de aparecer como conteúdo mais trabalhado durante o estágio, o esporte ainda aparece numa perspectiva do alto rendimento, onde os mais habilidosos participam, e aqueles que não tem domínio das técnicas acabam por serem “excluídos” ou se “auto-excluírem” do processo de ensino-aprendizagem, pelo insucesso nas atividades propostas. Há uma passagem do diário de campo que explicita bem esta realidade:

    [...] após a atividade, a estagiária pegou dois alunos para escolher os times. Os meninos foram escolhidos primeiro. A estagiária pediu para que o restante, dois meninos gordinhos e as gurias, esperassem. Nisso, uma aluna gritou “que discriminação, sora”. A estagiária não ouviu e seguiu organizando o jogo. Após este jogo, o time ganhador ficou em quadra e enfrentou o time das gurias (Diário de Campo, 02/04/08)

    Destacamos então que os diversos fatores históricos, culturais, políticos e econômicos que transformaram o esporte num dos maiores fenômenos do mundo contemporâneo, afetam diretamente o processo de formação e de docência do professor de educação física. O desenvolvimento de outros elementos da cultura corporal no âmbito escolar é dificultado na medida em que estas manifestações são discriminadas duplamente: no próprio currículo de graduação, e na escola, onde os fatores culturais condicionam a prática do licenciando para o fenômeno esportivo e de rendimento. As escolas tem sido, como argumenta Apple (1989), importantes agências de legitimação na medida em que, ao definir o conhecimento de certos grupos como legítimos, contribuem para a reprodução da cultura e de formas ideológicas dos grupos dominantes da sociedade. Desta forma, fica a necessidade de compreender o significado social da educação física na escola, a fim de possibilitar uma ampla reflexão sobre a cultura corporal (COLETIVO DE AUTORES, 1992), para que ela não seja apenas uma reprodutora de determinados conteúdos e lógicas na vida escolar dos educandos, mas que desenvolva seu papel social, possibilitando um conhecimento ampliado e crítico.

6.     Prática de ensino: entre a teoria e a prática

    A experiência da prática docente é um elemento importantíssimo do processo de formação inicial dos estudantes de educação física. É interessante relatar que a experiência do da prática de ensino não surge como o primeiro contato docente dos estagiários. Em contrapartida, a imersão de fato no mundo da escola acontece apenas ao chegarem neste estágio curricular obrigatório, o que caracteriza uma carência do processo curricular no que tange à inserção no cotidiano escolar. A função de professor, que inclui não só o ato de “dar aula”, mas também diversas outras funções, como o planejamento, o acompanhamento da turma, a avaliação sistemática, acaba ocorrendo de fato apenas quando os graduandos chegam neste período da graduação.

    Deparando-se com a escola pública, se deparam também com as diversas mazelas que fazem parte deste contexto. E sentem na pele as dificuldades de atuação em uma realidade muitas vezes desconhecida. Alguns inclusive ficaram receosos em realizar o estágio em determinadas escolas pelo contexto social extremamente complicado que encontraram. No caso da escola municipal que analisamos, a realidade social interferia diretamente no contexto das aulas do estagiário, como as diversas situações de violência entre alunos e a desorganização da escola como um todo. Fato que também derivava das dificuldades que a própria direção da escola tinha em conseguir manter a organização da instituição. Uma desordem que se não impossibilitava, dificultava muito o andamento das aulas de educação física, ou como coloca o colaborar Vladimir, “deixava eu de certa forma refém de uma situação que já tava imposta e não teria como eu mudar”.

    Muitas das práticas dos estagiários nesta escola estiveram condicionadas a esta realidade. Na escola em que Rosa e Marques realizaram seus estágios, a situação não era tão complicada como a de Vladimir e Ernesto, mas mesmo assim a dificuldade em lidar com os alunos foi uma questão que também apareceu muito fortemente nesta outra escola.

    [...] Foi uma experiência difícil, que eu saía sempre com a minha voz muito cansada [...] eu tinha que tá falando muito, assim, tá gritando, e..isso era uma coisa bem desconfortável assim, na verdade a idéia que eu tenho pras aulas de educação física são tem que ser um espaço de aprendizado, por isso a justificativa pra estar na escola, senão não precisaria ensinar isso na escola (Entrevista Marques, 30/09/08).

    Uma constatação que fizemos a partir das observações, e que depois apareceu como um elemento constante nas entrevistas, é que os objetivos de ensino dos estagiários ficaram centralizados nos conteúdos de caráter atitudinal, frente às imensas dificuldades que os estagiários tinham em controlar a turma e fazer com que os alunos se comportassem respeitosamente. O conteúdo específico da educação física, que tendeu-se quase que em todos os casos para os esportes, acabou de certa forma secundarizado, e a utilização de seus elementos servia apenas como pano de fundo na tentativa de tornar a aula minimamente organizada:

    [...]o foco do meu trabalho era isso, que eles tivessem ordem e disciplina [...] eu usava o futsal..o vôlei, as fileiras...as ordens de apito..a gincana...tudo pra chegar lá no final e eles terem disciplina [...] então eu usava tudo que eu tinha [...] tudo que eu pude usar [...] mas sempre praquilo...ordem e disciplina (Entrevista Rosa, 09/09/2008)

    Ernesto faz também uma reflexão sobre esta necessidade de se trabalhar os aspectos comportamentais do aluno, para que então pudesse trabalhar com os elementos mais específicos da educação física.

    [...]se tu for ver meus planos de aula, todo o plano de aula tinha “trabalhar coletividade, trabalhar o respeito, né, respeito às regras do jogo”, porque isso eles não tinham [...] como é que eu vou conseguir trabalhar com eles o desenvolvimento motor deles, né, o repertório motor, as atividades, se eles não nem se organizam pra fazer a atividade. (Entrevista Ernesto, 04/09/02008)

    Situações como esta dizem respeito às proprias relações existentes dentro da realidade da instituição escolar e da realidade dos próprios alunos. É possível destacar que este tipo de situação é pouco vivenciada pelos graduandos, precisando ser trabalhada de maneira mais sólida dentro do processo formativo do professor. Na maioria dos casos os cursos de licenciatura se pautam por discursos didáticos que idealizam um modelo de aluno, de professor e de escola, como colocam Molina & Molina Neto (2002). Assim, os estagiários passam a sua vida acadêmica imersos em teorias, geralmente praticando a docência com os próprios colegas de curso e ao chegar nos últimos semestres do curso no estágio se deparam com alunos reais:

    [...] escola aqui no livro é legal, é muito legal, que é tudo fácil [...] tu chega lá na escola, nada disso! Tu propõe oito atividades e tu faz uma [...] Então como é que tu vai preparar uma pessoa que vai trabalhar com pessoas, com outro público? Que é um público de acadêmicos, aqui, que é muito fácil de trabalhar (Entrevista Rosa, 09/09/2008)

    Fica evidente que, apesar de obrigatórios, os estágios supervisionados e as práticas de ensino do modo como estão organizados nos currículos não têm preparado significativamente os estagiários para a prática em escolas públicas. Isto porque a estruturação dos estágios, que têm como objetivo dar a oportunidade para os graduandos a prática da docência, tem se dado nos cursos de licenciatura dentro uma concepção mecânica de interligar teoria e prática, como se fosse possível o estudante passar o curso inteiro acumulando conhecimentos, e ao chegar no final do curso, na sua prática de ensino, depositar os conteúdos acumulados nos seus educandos. Concordamos com Silva, Aroeira & Mello (2005) ao afirmarem que “[...] não basta ter o estágio supervisionado na grade curricular [...] é preciso que o estágio configure elementos significativos na formação de professores” (p.158). A significância do estágio para a docência só será eficiente quando for organizada de forma sistemática e não isolada, de modo a abordar tanto o conhecimento específico da área quanto as questões referentes à didática e metodologia do ensino propriamente dita, instigando no futuro professor uma consciência e um agir pedagógicos crítico nos espaços escolares.

Considerações transitórias

    O processo de formação do professor de educação física abrange diversos aspectos. Desde as concepções de mundo e de ensino que constroem os currículos de formação e de educação num aspecto mais amplo. Assim, estas novas concepções de formação afastam o graduando da escola na medida em que negam a este estudante um conhecimento mais condizente com a realidade do mundo escolar. Muitas das dificuldades docentes encontradas no processo de formação do professor devem-se principalmente no que tange à dificuldade em conseguir aplicar na prática o que fora planejado. Isto devido à própria construção didática dos saberes dos futuros docentes que se baseiam a partir de modelos idealizados de educandos e de escola. Ao se constituir uma determinada noção de saber docente, baseado na ideia de um contexto e não na realidade concreta deste contexto em si, leva ao mascaramento das reais situações de ensino e de aprendizagem que ocorrem nos processos pedagógicos das aulas de educação física, desvirtuando e prejudicando a construção de saberes dos graduandos. Com isso, por mais que tenham conhecimentos específicos para a prática, fica uma lacuna no que diz respeito ao desenvolvimento de uma capacidade reflexiva dos graduandos sobre sua própria prática. Os processo reflexivos são negados, já que o currículo se constitui numa estrutura terminalista, com os estágios ao fim do curso, impossibilitando uma reflexão posterior em outros espaços do processo de formação.

    Compreendemos que o problema da escola pública não é restrito à questão da formação de professores. Ele está relacionado com uma sociedade pautada na lógica capitalista, portanto, a escola, ao mesmo tempo em que refletirá proporcionalmente os valores que nela estão inseridos e as mazelas que a ela são inerentes, também contribuirá para o seu desenvolvimento. O processo formativo deve ser suficientemente capaz de promover a reflexão dos futuros docentes para questionar esta lógica, atuando não apenas como professor, mas como transformador da sociedade.

    A formação do professor é um dos aspectos referentes às dificuldades da docência da educação física na escola pública. Todavia, entendemos que é necessário que possamos teorizar sobre o tema, a fim de obtermos avanços significativos em relação a este processo. A pesquisa científica não é o único, mas um dos importantes elementos para o debate, principalmente para os professores e pesquisadores que almejam uma formação crítica e compromissada socialmente.

Notas

  1. Como existem dois currículos de licenciatura vigentes na EsEF/UFRGS, uma com ingresso até 2004 (0.45) e outra com ingresso a partir de 2005 (nova), optamos por observar 2 estudantes de cada currículo, porém deixamos claro que a intenção do trabalho não foi comparar os currículos, mas sim compreender a formação como um todo.

  2. Como ao longo destes últimos semestres desde a implantação dos novos cursos (licenciatura e bacharelado) a COMGRAD (Comissão de Graduação) do Curso de Educação Física da EsEF/UFRGS têm feito diversas alterações curriculares, tomei como padrão de análise os currículos referentes ao semestre de 2008/2.

  3. Um crédito equivale a 15h/aula.

Referências

Outros artigos em Portugués

  www.efdeportes.com/

revista digital · Año 14 · N° 141 | Buenos Aires, Febrero de 2010  
© 1997-2010 Derechos reservados