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Educação Física na Escola Pública: entre os ditames 

da ordem vigente e as possibilidades de resistência

Educación Física en la Escuela Pública: entre las creencias del orden establecido y las posibilidades de resistencia

 

Estudante de pós-Graduação em Educação Física Escolar (CESPEB-UFRJ)

Mestrando em Educação (UFRJ)

Ex-professor substituto de Educação Física (CAp-UFRJ)

(Brasil)

Gabriel Rodrigues Daumas Marques

grdmarques@yahoo.com.br

http://alemdotrivial.blogspot.com

 

 

 

Resumo

          A partir de discussões provenientes das aulas do Curso de Especialização Saberes e Práticas da Educação Básica, o trabalho desenvolve reflexões pertinentes à Educação Física, entendendo a mesma enquanto componente do currículo escolar, situando-a no cenário de divisão do trabalho capitalista. Ao interligar questões escolares ao conjunto da realidade social, o texto estabelece um diálogo otimista para a construção ou reconstrução de novas práticas e novos conteúdos para as aulas de Educação Física, relatando a experiência desenvolvida no Colégio de Aplicação da UFRJ durante 2008, além de atentar para a importância da organização coletiva, contrapondo-se ao ideário individualista.

          Unitermos: Capitalismo. Educação Física Escolar. Práticas Pedagógicas

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 138 - Noviembre de 2009

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Não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural,
nada deve parecer impossível de mudar.

Bertolt Brecht – Nada é impossível de mudar

Gabriel Rodrigues Daumas Marques    O presente trabalho é fruto de temáticas desenvolvidas ao longo das disciplinas Estudos da Escola, Teorias de Currículo e Cinema e Educação, componentes do Módulo III do Curso de Especialização Saberes e Práticas da Educação Básica – Educação Física Escolar (UFRJ), relacionando as mesmas à minha experiência pessoal e profissional como professor de Educação Física e militante ao longo de 2008. Apresentar consideráveis reflexões acerca das debilidades e das potencialidades do trabalho docente, de maneira que seja possível fornecer alguns elementos e subsidiar por meio de argumentos e propostas melhorias nas práticas pedagógicas, é um objetivo desse trabalho. Tal proposta dialogará com a disciplina Educação Física, a partir da realidade curricular da formação de professores e da abordagem de conteúdos a serem trabalhados na instituição escolar, optando politicamente pela realidade da escola pública no Brasil. Para viabilizar esse quadro, portanto, é necessário explicitar as devidas mediações entre escola e sociedade, passando pelas contraposições e contradições entre o que, por que e como vivemos e o que pretendemos.

Contextualização

    Quando explicitamos a necessidade de relacionar o contexto da escola à realidade concreta a partir da qual a sociedade se organiza, é porque nos pautamos por uma metodologia materialista de analisar determinado objeto. Nunca é exagero ratificar as condições básicas da estrutura econômica, que se estabelece a partir de duas características principais: a propriedade privada dos meios de produção e a exploração da força de trabalho alheia. São esses os princípios que regem a sociedade capitalista, onde a classe dominante – burguesia – acumula e concentra as riquezas e obtém seu lucro por meio da exploração da classe oprimida – proletariado (Marx & Engels, 1848).

    É exatamente esse quadro constitutivo de exploração, opressão e desigualdade social que vai influenciar sobremaneira o próprio sistema educacional, que, em virtude dos interesses dominantes para a manutenção da ordem vigente, sofrerá relevantes implicações. Acácia Kuenzer (1998) explicita que cada projeto pedagógico é gestado pelo estágio de desenvolvimento das forças produtivas cujas demandas de formação estão correspondidas, tanto de intelectuais dirigentes quanto de trabalhadores. A lógica da educação para o setor oprimido se apresenta por meio da formação de trabalhadores dóceis, obedientes, servis e úteis para o funcionamento da engrenagem capitalista.

    Alguns dados corroboram nossos apontamentos e nos ajudam a compreender melhor como se materializam as desigualdades advindas do atual modelo econômico. Em 2005, 75% da renda brasileira encontrava-se concentrada nas mãos dos 10% mais ricos, enquanto 90% da população compartilhavam 25% dessa renda (Pochmann, 2007). No atual cenário de crise estrutural da economia capitalista, bancos e instituições financeiras receberam dezoito trilhões de dólares apenas nesse último ano, enquanto em quarenta e nove anos os países em desenvolvimento receberam dois trilhões em doações de países ricos (UOL, 2009).

    Ao debruçarmo-nos nesse cenário, podemos identificar a estreita relação existente entre a organização do modo de produção e a educação e suas finalidades. Diante de uma constatação conturbada, devemos transcender os pensamentos pessimistas e/ou coniventes e também não cair numa lógica formal onde a escola única e exclusivamente agiria enquanto reprodutora. Pretendemos tratá-la imersa e influenciada nesse contexto e de que maneira podemos construir propostas que venham ao encontro de interesses contra-hegemônicos.

Educação Física: quem são os professores e quais são seus conteúdos

Somos o que fazemos, mas somos, principalmente,

o que fazemos para mudar o que somos.

Eduardo Galeano

    Em virtude do apontamento das íntimas relações entre a sociedade e a educação, breves reflexões sobre quem somos precisam ser apresentadas. Primeiramente, defendemos a Educação Física enquanto uma matéria de ensino escolar, “o lugar de aprender Ginástica, Jogos, Jogos Esportivos, Dança, Lutas, Capoeira” (SOARES, 1996, p.10), que seriam os conteúdos clássicos que

    permaneceram através do tempo transformando inúmeros de seus aspectos para se afirmar como elementos da cultura, como linguagem singular do homem no tempo. As atividades físicas tematizadas pela Educação Física se afirmaram como linguagens e comunicaram sempre sentidos e significados da passagem do homem pelo mundo. Constituem assim um acervo, um patrimônio que deve ser tratado pela escola (idem, p. 11)

    É mister que estejamos fidedignos com a defesa acima mencionada por alguns motivos, que se inter-relacionam: as mudanças das Diretrizes Curriculares Nacionais a partir da última década, que fragmentam a formação em Graduação e Licenciatura, divisão totalmente submissa às necessidades e orientações mercadológicas; a crescente procura de espaços não-escolares e privados para a prática de atividades físicas bem como o oferecimento de força de trabalho barata por intermédio dos estagiários; a utilização da Educação Física restrita à prática desportiva e enquanto um artigo de luxo para propagandas de instituições particulares com êxito de resultados em competições; a inexistência da disciplina em algumas séries de ensino, seu oferecimento facultativo em turno oposto ou até mesmo a subutilização de sua presença nas grades horárias em favorecimento a disciplinas com maior status; práticas de comunitarismo através de cobranças de taxas para materiais ou criação de caixinhas periódicas e da criação de projetos como Amigos da Escola, que substituem os profissionais por voluntários da Educação; além da própria ação coercitiva realizada pelo Conselho Federal de Educação Física e pelos Conselhos Regionais de Educação Física, que, em parceria com uma diversidade de Secretarias Municipais e Estaduais de Educação Brasil afora, exigem arbitrariamente a cédula de registro profissional, obrigando os docentes a submeter-se às anuidades. Apenas apresentamos genericamente esses motivos, que merecem uma atenção particular em outros momentos. Diversificar os conteúdos, garantindo a Educação Física enquanto componente curricular e defender a Educação Pública comporão a base das reflexões que se seguem.

    Tarcisio Mauro Vago (1999) compara as maneiras de fazer Educação Física na escola entre o início e o final do século XX e caracteriza de forma interessante o processo recente em que a Educação Física permanece no currículo escolar, embora seu caráter de área de conhecimento sofra complicadas mutações ao ser confundida como lugar de treinamento desportivo. O autor critica um desenraizamento da Educação Física e prossegue contextualizando-o à concreticidade das demandas econômicas:

    (...) a presença da educação física não está garantida, podendo mesmo ser excluída (desenraizada) das práticas escolares. Ora, em uma escola que se orienta pelas idéias de eficiência, eficácia, produtividade, utilidade, não há que se perder tempo com o ensino de práticas corporais da cultura, como os esportes, as danças, os jogos, a ginástica. Nada disso interessa quando se quer organizar uma escola na qual o conhecimento que importa transmitir aos alunos é aquele que se considera útil ao ingresso no mercado de trabalho. E, então, o conhecimento oferecido na educação física não teria muito a contribuir, tornando-se assim descartável. (p. 41, grifos do autor)

    Identificamos dois movimentos, que concomitantemente ocorrem com a disciplina: um desprestígio e uma descaracterização, ambos influenciados pelas novas relações do mundo do trabalho, que requer um trabalhador polivalente, ativo e eficiente. Além desse apontamento específico, consideramos também uma dificuldade compartilhada pelos demais trabalhadores da Educação Pública: seu sucateamento e também a precarização das condições de trabalho. Os salários encontram-se cada vez mais desvalorizados e são parcos os recursos para as necessidades básicas das instituições escolares. Tal realidade é fruto do ideário e da prática neoliberais, que diminuem os investimentos públicos e abrem espaço para iniciativas privatistas, ao propor parcerias com empresas privadas ou organizações não-governamentais e estabelecer terceirização de serviços e privatizações.

    Nós, professores de Educação Física, mesmo limitados por uma formação que exacerba a dicotomia teoria-prática, podemos nos entender enquanto educadores, no fazer para mudar o que somos. Sendo educadores, nossa função é compreender historicamente os processos pedagógicos, a produção teórica e a organização de práticas pedagógicas (Kuenzer, 1998), por conseguinte, nos competindo

    (...) buscar nas demais áreas do conhecimento as necessárias ferramentas para construir categorias de análise que (nos) permita apreender e compreender as diferentes concepções e práticas pedagógicas, strictu e lato sensu, que se desenvolvem nas relações sociais e produtivas de cada época; transformar o conhecimento social e historicamente produzido em saber escolar, selecionando e organizando conteúdos a serem trabalhados através de formas metodológicas adequadas; construir formas de organização e gestão dos sistemas de ensino nos vários níveis e modalidades; e, finalmente, no fazer deste processo de produção de conhecimento, sempre coletivo, participar como um dos atores da organização de projetos educativos, escolares e não-escolares, que expressem o desejo coletivo da sociedade. (idem, grifos da autora)

Há possibilidades e caminhos para resistir e construir algo novo?

Você não sente e não vê
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
O que algum tempo era novo, jovem
Hoje é antigo
E precisamos todos rejuvenescer

Belchior – Velha Roupa Colorida

 

Você pode até dizer que eu ‘tô’ por fora, ou então que eu ‘tô’ inventando
Mas é você que ama o passado e que não vê
É você que ama o passado e que não vê
Que o novo sempre vem

Belchior – Como Nossos Pais

    Para dar conta das tarefas que temos, é necessário um processo dialógico com a comunidade escolar, ou seja, o envolvimento dos alunos, dos pais e responsáveis, dos demais professores, dos funcionários. Nós devemos nos mesclar à comunidade e extrair elementos que nos possibilitem avançar. É a lógica inversa do costumeiro que fica alheio por ter a força da canetada ao decidir os rumos das aulas e das avaliações. Não rebaixar a Educação Física ao desportivismo hegemônico que segrega, exclui e ressalta valores individualistas é um desafio, que deve ser complementado pela apresentação de inovações, incorporando elementos da cultura corporal como a Dança, o Folclore, a Capoeira, as Brincadeiras Populares e contextualizando nossas práticas à realidade cruel da sociedade em que vivemos, para que possamos questionar e acumular forças rumo à construção de novas relações. Para construir o diferente, a obtenção e a conquista de respeitabilidade e a participação discente são essenciais, que, somados ao prazer, à alegria, à satisfação, podem facilitar o alcance de objetivos que hoje nos aparentam ser árduos.

    De forma contundente, respondo ao questionamento apresentado neste tópico afirmativamente. Mas a resposta sim nos insere em grandes desafios, instigantes e necessários para aqueles e aquelas que, mesmo diante das imensas dificuldades que se apresentam no cotidiano, acreditam, apostam e constroem o novo visando um projeto de sociedade que rompa com o capital. Os obstáculos são muitos. É por isso que não nos basta a lógica individualista, pensando que mudando a própria aula já será suficiente. A construção de projetos político-pedagógicos nas escolas, a gestão democráticas das mesmas, a luta pelas melhorias nas condições de trabalho dos profissionais e de ensino dos alunos são pautas que precisam ser construídas e discutidas coletivamente. A organização dos profissionais e dos estudantes nos sindicatos e Grêmios Estudantis, respectivamente, é de extrema relevância para o contexto em que vivemos e pode consolidar processos que se choquem com a hegemonia do umbiguismo e do individualismo, reflexos da ideologia dominante.

    Em 2008, após ser aprovado em processo seletivo, tive a oportunidade de trabalhar como professor substituto do Colégio de Aplicação (CAp) da UFRJ, lecionando a disciplina Educação Física para cinco turmas do 3º ao 5º anos do Ensino Fundamental. Apesar de quase metade dos professores da instituição atualmente ser composta por professores contratados temporariamente, o regime de trabalho dos demais é de 40h, a maioria em Dedicação Exclusiva. Tal realidade propicia, além dos Conselhos de Classe bimestrais, a realização de reuniões bimestrais entre os professores de diferentes setores para discutir planejamentos e propostas pedagógicas; reuniões semanais dos setores disciplinares; e também de reuniões com os pais e responsáveis. Além disso, o Colégio recebe centenas de estudantes para realizar sua Prática de Ensino; sob minha responsabilidade, ficaram cinco grupos com cinco a seis Licenciandos cada.

    Ao longo do ano, apresentei e pude implementar diversas inovações ao apontar propostas de conteúdos diversificadas e novas práticas pedagógicas – que fugissem à simples prática de desportos ou utilização de um tempo livre/recreativo, bem como possibilitassem reflexões e desenvolvimento crítico – nas aulas de Educação Física, a saber: circuitos ginásticos com oficina de cama elástica; pesquisa histórico-cultural sobre jogos populares, como pique-bandeira, amarelinha, pular corda, peteleco, futebol de botão etc.; utilização de filmes críticos seguidos de discussões sobre a relação do corpo com a sociedade em que vivemos ou sobre a importância de organizar-se coletivamente para atingir objetivos, como “Show de Truman – o Show da Vida”, “Billy Elliot”, “A Fuga das Galinhas” e “A Revolução dos Bichos”; atividades cooperativas em contraposição aos jogos competitivos; elaboração de painéis temáticos relacionados aos Jogos Olímpicos e criação de coreografias por parte dos próprios estudantes para apresentação na Semana de Arte, Ciência e Cultura; aspectos históricos e culturais e iniciação ao Samba, ao Forró e ao Frevo; oficina de skate e patins; incentivos a trabalhos coletivos, discutindo questões que se chocassem com o individualismo vigente etc. Apesar do estranhamento inicial, as propostas acima ganharam espaço e foram aprovadas por professores de outros setores, pais e responsáveis, além de terem sido assimiladas pelos estudantes e pelos Licenciandos.

    Tal quadro, conciliado com uma atuação crítica e de enfrentamento às políticas governamentais que se apresentavam para reformular o papel social da Universidade, submetendo-a aos interesses da divisão internacional do trabalho sob a égide do capitalismo – contexto de Reforma Universitária e implementação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Instituições Federais de Ensino Superior (REUNI) –, infelizmente gerou ações que me criminalizaram, culpabilizaram e me fizeram vítima de perseguição política, protagonizada pelos setores retrógrados e reacionários do Setor Curricular de Educação Física e da Direção da instituição referida. A prática de coação, autoritária e antidemocrática, impediu a continuidade do trabalho desenvolvido no CAp ao não renovar meu contrato sem apresentar qualquer motivo pedagógico, político ou administrativo (CONLUTAS, 2008; UFRJ, 2008a; UFRJ, 2008b).

    Conforme falei anteriormente, temos muitos desafios pela frente e remar contra a maré é uma tarefa árdua, já que, diante da conivência, da mediocridade, da adequação, da naturalização, da mesmice, do habitual, do tradicional e do velho, o novo é um incômodo, porque questiona, pensa, critica, reflete, cria, formula e aponta perspectivas. Apesar do rechaço, da perseguição, da desqualificação, nada é impossível de mudar; continuarei optando pelo novo, pois novos tempos hão de ser construídos, erguidos, aprimorados e consolidados.

Referências

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