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A gênese autobiográfica do futebol: breves apontamentos

La génesis autobiográfica del fútbol: notas breves

The autobiographical genesis of football: brief notes

 

Doutorando em Educação Especial pela UFSCar

Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Licenciado e Bacharel em Educação Física pela UFSCar

Professor efetivo de Educação Física da rede estadual de educação

do Estado de São Paulo, município de Araraquara

Gustavo Martins Piccolo

gupiccolo@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

Resumo

          O presente texto objetiva trazer discussões sobre o processo de gênese, desenvolvimento e popularização do futebol nas sociedades modernas, intuindo tecer relações sociológicas entre estes distintos fenômenos. Para tanto, partimos da perspectiva que as construções sociais, tal como o futebol, não se explicam por si mesmas, mas apenas em relação ao contexto no qual foram criadas, sendo que deste devem ser depreendidas as principais análises sobre o referido fenômeno.

          Unitermos: Futebol. História. Sociedade

 

Abstract
          This text aims to bring discussions about the process of genesis, development and popularization of football in modern societies, objective relations make sociological sense of these different phenomena. Thus, from the perspective that the social constructions, such as football, do not explain themselves, but only in relation to the context in which they were created, and that this appears to be the main analysis on the phenomenon.
          Keywords: Football. History. Society

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 137 - Octubre de 2009

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Do nascimento à popularização

    Quando pensamos em esporte na América do Sul e, também em grande parte dos outros países componentes do globo, a palavra futebol certamente é uma das primeiras que nos aparece a mente. É como se o futebol, por si só, corporificasse aquilo que existe de mais apaixonante e onírico que conceitue a etimologia do esporte por si só. Talvez aqui caiba novamente pensarmos na alegoria de Marx (1996) de que o mais desenvolvido é a chave para compreendermos o menos desenvolvido, tal como a sociedade capitalista se constitui na mola mestra de entendimento do feudalismo.

    Não que com isso queiramos atribuir ao futebol um posto hegemônico em relação a outras modalidades esportivas, mas, sim, apenas nos indagar qual o principal fator a possibilitar que uma das atividades esportivas mais restritas a qualquer alteração em suas regras continue a assumir uma posição de primazia na audiência e prática em relação a outras modalidades esportivas. Enfim, porque o futebol é tão apaixonante a ponto de envolver um conglomerado gigantesco de recursos financeiros, paixões, audiência?

    Em países como o Brasil, visto por muitos como a terra do futebol, sem dúvida alguma o futebol exerce um poder no imaginário social que vai além das quatro linhas delimitas por seu espaço temporal. As conversas sobre o futebol não se restringem aos dias de jogo, muito pelo contrário, pois se constituem como verdadeiros motes dialógicos ao estabelecimento de múltiplas relações sociais, sejam essas traçadas em bares, clubes, academias, parques ou no seio da própria família.

    Destarte, não restam muitas dúvidas de que o futebol seja atualmente o esporte mais praticado e difundido pela humanidade. Dentre os indicativos que podemos utilizar para justificar tal informação, certamente um deles baseia-se no fato de a FIFA ter mais associados que a própria ONU, elemento que por si só demonstra o poder desta instituição (WHEELER, 1967). Além disso, é nítida a existência de campeonatos de futebol em quase todas as partes do planeta, movimentando bilhões de telespectadores. Diante desses números, tendemos a nos perguntar como um esporte, prática não material, conseguiu atingir tamanha difusão, tornando-se verdadeiramente uma indústria?

    Perguntas que se repetem a exaustão, mas cujas respostas anuviam-se numa vastidão sincrética de apontamentos científicos, mitos, lendas e na própria dificuldade em se estabelecer parâmetros fiáveis para a coleta de suas repostas. Para tanto, faz necessário inequivocamente analisarmos mais detidamente a história do próprio futebol, intuindo contribuir para sua compreensão epistemológica e funcional.

    O futebol tem sido historicamente concebido como uma prática surgida na Inglaterra durante o século XIX, todavia um olhar antropológico sobre as mais diversas sociedades permite-nos colocar em suspensão esta informação. Há cerca de 2.500 anos antes de Cristo já existiam dados sobre uma atividade muito parecida com o futebol praticada na China por soldados do imperador Xeng Ti, cuja materialidade não pode ser comprovada em sua concretude devido à própria inexistência de uma língua nacional nessa época (MATTA, 1986).

    Além deste indício, e o indício para Ginzburg (1991) é um elemento fundamental para a descoberta de um dado fenômeno em sua concretude objetiva, vários outros podem ser notados quando se estuda mais detidamente a constituição parental e lúdica das sociedades pré-históricas. Assim, relatos similares aos chineses também são encontrados em diversas tribos indígenas que habitaram a América central e o extremo oriente. Claro está que não como prever a veracidade dos argumentos contido nestas assertivas, mesmo porque a ausência de uma linguagem estruturada para tanto nos impede a empreitada de tal tarefa. Mas se popularmente dizemos em terras tupiniquins que onde tem fumaça há fogo, cientificamente não podemos nos esquecer que os indícios representam caminhos em direção à concreticidade de um achado.

    Isto posto, talvez o primeiro achado que nos permita compreender o grau de importância assumido pelo futebol nas sociedades modernas esteja situado na própria resistência desta atividade ao tempo. Enfim, no caráter quase que imortal de sua história, cuja gênese resistiu as mais duras intempéries, mas, nem por isso, significou a extinção de sua prática. O futebol, ou melhor, o prelúdio daquilo que chamamos de futebol percorreu os tempos, constituindo-se como uma atividade que materializa aquilo que Kosik (1976) chama de a invencibilidade da história humana, uma vez que seus criadores e praticantes iniciais morrem, todavia, seu legado continua em intensa expansão. O exemplo mais marcante deste fenômeno pode ser observado no campo das artes e da literatura, por exemplo, a sociedade em que Shakespeare e Goethe viveram jamais se repetirá, mas a obra de ambos os autores são imortais, tornam-se clássicos, e como tais resistem ao tempo. Aristóteles, Platão, Marx, Einstein, Newton, Da Vinci, Renoir, Rafael, Michelangelo também se encaixam nesta categoria.

    Enfim, talvez o futebol tenha alguma coisa de arte e invencibilidade que gera por si mesmo sua constante reinvenção, não através da alteração de suas regras, mas da renovação ininterrupta de suas participantes e telespectadores. Contudo, esse fenômeno não pode explicar de maneira isolada toda a dimensão cultural, material e simbólica assumida pelo futebol, para tanto, precisamos ir um pouco mais além em nossas análises.

    Saindo das sociedades pré-históricas e da Antiguidade e entrando no medievo, notamos outra atividade lúdica similar ao futebol, denominada de Calcio, praticada na Itália feudal e cuja veracidade é confirmada pelo próprio fato de o campeonato italiano de futebol ser denominado de Gioco Calcio. O Calcio era um jogo realizado entre duas equipes em um campo de terra, tendo por objetivo que uma das equipes conseguisse atravessar todo o terreno do adversário com uma bola mediante constantes ataques físicos (DUARTE, 1997).

    A idéia gênica do Calcio era materializar uma atividade que representasse a guerra de forma lúdica e divertida, ou seja, transcender a bravura dos campos de batalha para os campos de diversão. Em virtude destes elementos, vários chavões utilizados até nossos dias ao comentar uma partida de futebol derivam-se de etimologias essencialmente bélicas. Por exemplo, no Brasil, os jogadores responsáveis pelo ataque ao gol adversário são chamados de artilheiros, uma clara analogia a beligerância em campos de batalha. Mais do que isso, os excelentes artilheiros costumam ganhar o apelido de matadores, pois não perdoam seus oponentes, tal qual um ás em uma batalha. Diversas outras semelhanças podem ser observadas nas definições etimológicas das posições do futebol, tais quais: o meio-campista é considerado é cérebro do time, o estrategista, por isso, recebe a proteção dos volantes (aqueles que flutuam em latim), fenômeno similar ao que acontece com o comandante de um exército, constantemente protegido e vigiado pelos seus próprios companheiros.

    Certamente este é outro dos fatores que contribuem para o fascínio e prática massiva do futebol, pois uma vez que ele não deixa de retratar uma função social, a função da guerra, e a guerra como descreveu Fernandes (1970) faz parte da constituição do próprio ser humano em processo de humanização, a qual se faz representada sem o derramamento de uma gota de sangue e da criação de animosidades mais críticas e efetivamente territoriais.

    Aliás, este é um ponto que não podemos esquecer, qual seja: o de que tanto o futebol quanto o rúgbi representam, grosso modo, a luta por conquista territorial, luta esta historicamente vista pela sociedade como a forma mais genuína de demonstração de poder e hegemonia em relação aos adversários, é a função da guerra, a concretização da violência através da ludicidade.

    O futebol permite-nos sentir a sensação de dominar o adversário de forma lúdica, fenômeno que ocorre tanto entre os jogadores, como também entre seus torcedores, excetuando aqui a violência generalizada entre as torcidas organizadas, a qual não pode ser comentada de forma mais profunda neste breve artigo, mesmo porque fugiria ao escopo deste trabalho.

    Posteriormente a este período (origem do Calcio) surge o Hurling, na Inglaterra, com objetivos e violência similares a do Calcio. É a apropriação destas atividades lúdicas pela Europa medieval que dá origem efetivamente a dois esportes mundialmente conhecidos, quais sejam: o futebol e o rúgbi, sendo que a diferença entre ambos situa-se no fato de o primeiro exigir o carregar da bola com os pés, enquanto o segundo com as mãos. Nesse universo nasce o futebol propriamente dito, porém sua etimologia ainda guardava múltiplas distinções entre os países e as regiões européias. Na Inglaterra o futebol era praticado de maneira basilar pelas camadas populares, daí o nome de esporte bretão, enquanto a aristocracia, devido à suposta violência desse jogo, se inclinava em direção à prática da equitação e esgrima (BORSARI, 2002).

    Todavia, por volta de meados do século XIX, o futebol também começa a ser praticado por alunos de escolas aristocráticas inglesas e, apesar das constantes proibições por parte destes colégios pelo fato de esta atividade ser considerada bárbara e violenta, os alunos desrespeitavam invariavelmente a proibição de sua prática e continuavam a jogar o futebol. Já que a repressão contra esses jogos não havia dado resultado, as escolas inglesas decidiram regulamentar sua prática, criando as famosas regras do futebol, muitas das quais perduram até os dias atuais, por isso, a confusão da Inglaterra como a pátria mãe do futebol. Na verdade a Inglaterra foi a parteira das regras e não dos jogo de futebol propriamente dito, posto este se encontrar presente em culturas primitivas e medievais, conforme já mostramos anteriormente.

    A regulamentação do futebol para as classes altas trouxe de per si a exigência de sua regulamentação também para as classes operárias, praticamente consolidadas após o ápice da Revolução Industrial Inglesa, pois a prática sem regras do futebol onerava o setor capitalista devido às constantes contusões dos operários fabris, prejudicando, por conseguinte, os lucros da ainda insurgente burguesia. Em vista disso, o Estado inglês cria uma regulamentação expansiva ao futebol em toda a Inglaterra, fundando a Football Association, posteriormente transformada em FIFA.

    Neste universo reside, possivelmente, o terceiro elemento que engendra o fascínio pelo futebol nas sociedades modernas, qual seja: sua íntima relação com o mercado de trabalho. Como a dialética da constituição humana vale também para os fenômenos sociais por nós criados, o futebol, antes visto apenas como atividade lúdica, passou a ser percebido com outros olhos pelas classes dominantes quando estas visualizaram que sua prática poderia alavancar os ganhos obtidos pelo capital.

    Nesse ponto, o fato de a Inglaterra, pátria da Revolução Industrial e da própria formação do aparato capitalista, ter no futebol a principal atividade lúdica praticada por operários, certamente não passou incólume a popularização deste esporte. Inequivocamente, a partir da Idade Moderna e da Revolução Industrial, o futebol acabou por se constituir em uma espécie de braço ideológico do capital, uma vez que além de exercer a função de coerção objetiva, representa uma forma subjetiva de fortalecimento dos laços entre os operários de uma mesma fábrica na defesa dos interesses da referida esfera laboriosa (MATTA, 1986). Enfim, mais uma vez temos aqui o lúdico transcendendo seus objetivos iniciais, e o esporte que mais sofre com essa tergiversação sem dúvida alguma é o futebol, que colhe os frutos, mas também as mazelas desse processo de popularização e ideologização popular.

    Essa aliança íntima com o capitalismo talvez seja o elemento preponderante na difusão exorbitante atingida pela prática do futebol e explique grande parte dos múltiplos interesses sobre sua prática, por isso, mais do que um jogo, o futebol é um potente mercado de relações sociais, cuja materialidade não deixa de estar intimamente relacionada aos interesses mercadológicos e da indústria de massa, que governa não apenas nossas preferências, mas também nossos próprios pensamentos.

    Logo, foi no âmbito do universo entre as relações econômico-sociais que o futebol se popularizou de maneira decisiva, tornando-se um esporte de massa, cujos objetivos na maioria das vezes não esteve ligado ao divertimento e prática do lazer, mas, sim, a própria preservação do lucro, além da manutenção dos operários a margem das atividades políticas realizadas em organizações de classe. Tal como afirma o historiador Nicolau Sevcenko (1994, p.35), assim, num curtíssimo espaço de tempo, o futebol conquistou por completo toda a população trabalhadora inglesa e, em breve, conquistaria a do mundo inteiro. Como entender esse frenesi, esse poder irresistível de sedução, essa difusão epidêmica inelutável? Como vimos, parte da explicação está nas cidades (sociedade), parte no próprio futebol. A extraordinária expansão das cidades se deu, como vimos, a partir da Revolução Científico-Tecnológica, pela multiplicação acelerada da massa trabalhadora que para elas acorreu em sucessivas e gigantescas ondas migratórias. Nas metrópoles assim surgidas, ninguém tinha raízes ou tradições, todos vinham de diferentes partes do território nacional ou do mundo. Na sua busca de novos traços de identidade e de solidariedade coletiva, de novas bases emocionais de coesão que substituíssem as comunidades e os laços de parentesco que cada um deixou ao emigrar, essas pessoas se vêem atraídas, dragadas para a paixão futebolística que imana estranhos, os faz comungarem ideais, objetivos e sonhos, consolida gigantescas famílias vestindo as mesmas cores.

    O último fator por nós considerado como primordial a maciça difusão da prática do futebol reside na explosão midiática nas mais diversas partes do globo. Desde a década de 70, a televisão se notabilizou como o veiculo de comunicação de massa mais amplamente divulgado na sociedade, sendo também nesta época a data do início das transmissões esportivas. E qual esporte foi o primeiro a gozar desse privilégio?

    A resposta é fácil, o futebol mediante a Copa do Mundo de 1970, realizada no México (MATTA, 1982). Desde então, os eventos esportivos assumiram um papel cada vez mais de protagonistas nas grades das emissoras de televisão, além disso, os direitos para a transmissão de tais eventos passaram a ser disputados literalmente a tapas pelas emissoras televisivas. Este é certamente um fenômeno que não pode ser desprezado em uma sociedade que evolui na capacidade de produzir tecnologias continuamente, tecnologias estas que chegam efetivamente a quase todas as pessoas do globo, excetuando os casos de miséria ou isolamento absolutos.

    A intersecção dos quatro elementos destacados neste texto, conjuntamente a outros fatores que não puderam ser aqui aclarados, representam o combustível pelo qual foi acesa a invencibilidade temporal do futebol, praticado em múltiplas épocas e contextos históricos, seja no capitalismo ou comunismo, ocidente ou oriente, norte ou sul, países desenvolvidos ou subdesenvolvidos. Enfim, literalmente o futebol faz parte não apenas de nosso universo lúdico, mas da constituição de nossas próprias relações dialógicas e da heterogeneidade componente das esferas cotidianas.

Considerações finais

    Esperamos através deste breve texto contribuir para um processo de discussão sobre a origem, o desenvolvimento e difusão maciça do futebol em nossa sociedade, objetivando caracterizar as múltiplas relações que se estabelecem como determinantes para a assunção de tal fenômeno. Claro está que a idéia do presente trabalho é a de contribuir e não esgotar uma questão sumamente complexa, mesmo porque sentimo-nos ainda tateantes na investigação e exploração analítica de tal fenômeno, por isso, nosso grande objetivo é o de suscitar discussões que fortaleçam a construção sociológica do campo da Educação Física e da explicação de seus múltiplos fenômenos.

Referencias bibliográficas

  • BORSARI, J. R. A evolução do futebol: o combate à violência e o resgate da ética e do fair play. São Paulo: EPU, 2002.

  • DUARTE, O. Futebol: história e regras. São Paulo: Makron Books do Brasil, 1997.

  • FERNANDES, F. A função social da guerra na sociedade Tupinambá. 2 ed. São Paulo: Pioneira, 1970.

  • GINZBURG, C. O queijo e os vermes. Companhia das Letras, 1991.

  • KOSIK, K. Dialética do concreto. Célia Neves (Trad.). 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

  • MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Regis Barbosa (Trad.). São Paulo: Nova Cultural, 1996. v.1.

  • MATTA, R. Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982.

  • MATTA, R. A. Explorações: ensaios de sociologia interpretativa. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

  • SEVCENKO, N. "Futebol, metrópoles e desatinos" in: Revista USP: Dossiê Futebol. Número 22, 1994.

  • WHEELER, K. El fútbol. 2 ed. Barcelona: Hispano Europea, 1967.

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