efdeportes.com

Inclusão social nos esportes de aventura na natureza:

vivências e experiências de um pesquisador deficiente visual

Inclusión social en los deportes de aventura en la naturaleza: vivencias y experiencias de um investigador deficiente visual

 

Licenciado em História pela UFMT (1992). 

Técnico em assuntos culturais da Prefeitura Municipal de Rondonópolis

Ex-pesquisador FCC/IFP e técnico de apoio educacional do CEPROTEC/MT

Professor do ensino público estadual/MT. Especialista em Adm. 

Escolar e Didática do Ensino Superior

Mestre em Educação pelo PPGE/UFSCar. Doutorando do PPGEEs/UFSCar

Vanderlei Balbino da Costa

vanderleibalbino@gmail.com

(Brasil)

 

 

 

Resumo

          A pesquisa relata uma experiência vivenciada durante oitenta horas de observação no projeto de extensão Programa de Atividades Físicas Adaptadas para pessoas em situação de deficiência em São Carlos/SP. Esse projeto ocorre durante a semana em locais como: academias, ginásio de esportes, rios, trilhas, matas. As práticas sociais que vivenciei nessa convivência possibilitaram uma melhor compreensão acerca da educação para além do espaço escolar. Nesse período pude experienciar aspectos essenciais que acredito serem relevantes para o processo de ensino e de aprendizagem. Assim, nessas práticas sociais e nesses processos educativos, identifiquei o quanto a dialogicidade encontra-se presente nessa relação de inclusão. O objetivo foi compreender como as práticas sociais e os processos educativos contribuíram para o processo de inclusão social das pessoas em situação de deficiência. A pesquisa foi de cunho qualitativo centrada na observação participante e registro sistemático em diários de campo durante a convivência junto a essas pessoas com diferentes deficiências. Os resultados obtidos foram: percebi que a inclusão ocorreu para todas as pessoas; observei que todas as pessoas em situação de deficiência participam das práticas adaptadas com desejo de superação; constatei a elevação da auto-estima destes, sensações e emoções; o interesse em criar organizações e/ou associações de deficientes; participação em diversas atividades de esporte, cultura e lazer; desejo de voltar ao mercado de trabalho; participação de modo competitivo em modalidades esportivas adaptadas; manifestação de regressar à escola.

          Unitermos: Inclusão sócio-educacional. Convivência. Experiência

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 136 - Septiembre de 2009

1 / 1

Introdução

    Ao longo de oitenta horas de curso na disciplina "Práticas Sociais e Processos Educativos", fui orientado a participar de uma vivência prática externa em alguma atividade de caráter social, filantrópico, esportivo ou cultural, onde fosse possível identificar algumas práticas sociais e processos educativos durante sua execução.

    Nessa trajetória preliminar, em vinte significantes encontros, perfazendo o total de oitenta horas, levantei diversas instituições que possibilitassem a realização de nossa convivência.

    Neste sentido, o presente estudo é resultado de uma vivência realizada em um projeto de extensão intitulado PROAFA (Programa de Atividades Físicas Adaptadas para Pessoas em Situação de Deficiência) da Universidade Federal de São Carlos/SP (UFSCar).

    O referido projeto ocorre duas vezes por semana em vários locais deste município e é importante salientar que dada as atividades realizadas, essas se dão em academias, piscinas, ginásios esportivos, trilhas, rios, matas, etc.

    As atividades desenvolvidas pelo projeto de extensão PROAFA centram-se em conteúdos diversificados relacionados à cultura corporal do movimento, tais como: atividades físicas (exercícios, caminhadas, natação, hidroginástica), esportivas (atletismo, ciclismo, bocha, entre outras modalidades individuais e coletivas) e de lazer (atividades lúdicas e recreativas). É, contudo, de fundamental importância ressaltar que, dessas atividades, participam pessoas em situação de deficiência de diferentes categorias, incluindo pessoas com deficiências físicas (DFs), visuais (DVs) e mentais (DMs).

    Cumpri-me ressaltar que os participantes desse estudo são pessoas em situação de deficiência como crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos. Entre as deficiências físicas, havia pessoas com seqüela de Acidente Vascular Encefálico (AVE), Traumatismo Crânio-Encefálico (TCE), Lesão Medular, Ataxia Cerebelar e Neuropatias; algumas conseguiam deambular (realizar a marcha) com apoio em bengalas, outros utilizavam-se de cadeiras de rodas (cadeirantes). Entre as deficiências visuais podem-se destacar as seguintes etiologias: catarata, toxoplasmose, retinose pigmentar, retinopatia (a prematuridade e descolamento de retina por trauma ocular). O nível da perda visual varia, sendo possível encontrar pessoas com baixa visão (visão remanescente) e pessoas totalmente cegas (perda visual completa). Entre as pessoas com deficiência mental encontram-se algumas com Síndrome de Down (entre outros fatores que variam de atraso no desenvolvimento neuro-psico-motor à dificuldades de aprendizagem na educação formal).

    Assim, o PROAFA atende pessoas deficientes da seguinte natureza:

  • Pessoas com Atraso no Desenvolvimento Neuro-Psico-Motor (ADNPM). Esse grupo é composto de sete indivíduos de ambos os sexos.

  • Nas atividades físicas adaptadas também são atendidos seis indivíduos com deficiência física como: cadeirantes, muletantes e pernas mecânicas;

  • Nesse projeto também são atendidos quatro senhores idosos cujas causas são: Acidente Vascular Cerebral (AVC), Acidente Vascular Encefálico (AVE) e pessoas com Síndrome de Down (SD);

  • São atendidos ainda oito deficientes visuais (DVs) de ambos os sexos e que participam também de todas as atividades físicas propostas pela equipe do projeto de extensão.

    Dada a diversidade das atividades físicas adaptadas oferecidas, são utilizados vários ambientes para sua realização: as atividades aquáticas ocorrem em academias, enquanto as atividades físicas e esportivas são realizadas nas instalações da UFSCar, além de ambientes externos, que possibilitem a convivência com diferentes esferas sociais. Nesse sentido, esse projeto visa, junto a aproximadamente 24 deficientes, romper barreiras, superar limites, enfrentar obstáculos, enfim, vencer desafios como:

  • Percorrer trilhas pelas matas;

  • Participar de Rafting (descida de rios de corredeiras em botes infláveis, onde é possível descer quedas d’água com altura média entre 50 cm a 3,5m); e

  • Realizar a tirolesa.

    Acerca dos esportes de aventura na natureza, nos quais ocorre a inclusão das pessoas em situação de deficiência devem ser apontados alguns questionamentos:

  • Quais são as práticas sociais vivenciadas nessa inserção?

  • Quais são os processos educativos vislumbrados nessa convivência social ao longo de quatro meses?

  • O que me levou a fazer essa inserção fora do ambiente escolar?

  • Quais foram as impressões acerca das práticas sociais para além da escola?

    Nessa abordagem, ainda irei pontuar algumas das minhas concepções acerca das práticas sociais e processos educativos, baseado em alguns teóricos, cuja tentativa é fazer um esforço no sentido de conceituar algumas práticas sociais bem como alguns processos educativos presenciados nessa convivência prática durante quatro meses, vinte encontros e oitenta horas.

    O objetivo primordial que optei nessa vivência foi compreender como as práticas sociais e os processos educativos podem contribuir para o processo de inclusão sócio-educacional das pessoas em situação de deficiência para além do ambiente escolar. Para tanto fiz a opção pela pesquisa qualitativa centrada na observação participante que, de acordo com Negrine (2004):

    A base analógica desse tipo de investigação se centra na descrição, análise e interpretação das informações recolhidas durante o processo investigatório, procurando entendê-las de forma contextualizada. Isso significa que nas pesquisas de corte qualitativo não há preocupação em generalizar os achados (p. 61).

    A pesquisa utilizou-se ainda do registro sistemático em diários de campo durante a convivência junto ao grupo de pessoas em situação de deficiência. De acordo com Bogdan e Biklen (1994) diário de campo “é o relato escrito daquilo que o investigador ouve, vê, experiência e pensa no decurso da recolha e refletindo sobre os dados de um estudo qualitativo” (p.150).

    Ao elencar alguns procedimentos como aproximação, convívio e a dialogicidade adotados no momento em que me decidi por esta convivência, pude olhar alguns aspectos teóricos que me despertaram para o quanto é necessário quebrar paradigmas, romper barreiras, superar obstáculos.

Desenvolvimento

    Séculos se passaram, regimes políticos surgiram, o mundo se “modernizou”, porém a marginalização, a exclusão e outras formas de estratificação social ainda perduram em nossa sociedade.

    Se as transformações políticas, tecnológicas e científicas contemporâneas de um lado trouxeram a modernidade, de outro lado o capitalismo contribuiu para que grande parcela da sociedade amargasse a exclusão social, a marginalização, a desigualdade, a desincerção, enfim, a desfiliação que, aos olhos dos críticos, significa perda de raízes sociais e econômicas, levando-os a um processo de desqualificados, desligados, desamparados, desenraizados, transformados em sobrantes, despossuídos, portanto, desabilitados socialmente.

    Deste modo, durante séculos a segregação, a exclusão e marginalização social marcaram a trajetória das pessoas em situação de deficiência em várias regiões do planeta. Em se tratando do Brasil, os traços da exclusão e marginalização são alarmantes, principalmente se considerarmos que no país há cerca de 25 milhões de deficientes (IBGE, 2000) e que apenas 3% desses encontram-se freqüentando alguma atividade escolar, sejam integrados parcialmente no Ensino Especial (APAE, Instituto de Cegos, Centros de Reabilitação...), ou incluídos no Ensino Regular, enraizados a duras penas e que lutam para não perder a memória e, por conseguinte, lutar para sair da marginalização social a que estão submetidas as pessoas em situação de deficiência.

    O problema é que as práticas sociais e os processos educativos formais se encontram ladeadas por dois discursos: de um lado o discurso da inclusão sócio-educacional, que entre outras dificuldades, esbarra no despreparo dos profissionais da educação que não têm ou não recebem formação adequada para conviver com esta realidade. De outro lado, o paradigma da integração que, a nosso ver, integra apenas aqueles que conseguem adaptar-se ao meio e se manter no sistema, sem que a sociedade se modifique para recebê-lo. Partindo dessa premissa, o grande questionamento é: “e aqueles que não conseguem se integrar?”. De acordo com Bosi apud Gonçalves Filho (1988):

    Não há memória para aqueles a quem nada pertence, tudo o que o trabalho criou, lutou, cairá no anonimato ao fim do percurso errante. A violência que separou articulações, desconjuntou seus esforços, esbofeteou suas esperanças, espoliou também a lembrança de seus feitos, cairá no esquecimento (p.110)

    Esses questionamentos, segundo Gonçalves Filho, incorrem num desenraizamento e numa perda de origem social.

    A inclusão sócio-educacional na qual se justifica esse estudo faz menção a alguns estudiosos (SASSAKI, 1997; MANTOAN, 2003; MRECH, 2006; entre outros) que são árduos defensores da Inclusão. De acordo com esses, Inclusão é:

    (...) o processo pelo qual a sociedade se adapta para poder incluir, em seus sistemas sociais gerais, pessoas com necessidades especiais, e simultaneamente estas se preparam para assumir seus papéis na sociedade. A inclusão social constitui, então, um processo bilateral no qual as pessoas, ainda excluídas, e a sociedade buscam, em parceria, equacionar problemas, decidir sobre soluções e efetivar a equiparação de oportunidades para todos (SASSAKI, 1997, p.41).

    A noção de inclusão não é incompatível com a integração, porém institui a inserção de uma forma mais radical, completa e sistemática. O vocabulário integração é abandonado, uma vez que o objetivo é incluir um aluno ou um grupo de alunos que já foram anteriormente excluídos; a meta primordial da inclusão é a de não deixar ninguém no exterior do ensino regular, desde o começo (MANTOAN, 2003, p.145).

  1. Atender aos portadores de necessidades especiais na vizinhanças de sua residência;

  2. Propiciar a ampliação do acesso destes alunos às classes comuns;

  3. Propiciar aos professores da classe comum um suporte técnico;

  4. Perceber que as crianças podem aprender juntas, embora tendo objetivos e processos diferentes;

  5. Levar os professores a estabelecer formas criativas de atuação com as crianças portadoras de deficiência;

  6. Propiciar um atendimento integrado ao professor de classe comum;

(MRECH, 2006, p.03).

    A relação humana em sua essência e por excelência deve se pautar em uma ação harmônica. Quando me refiro às pessoas em situação de deficiência, isso pode ser percebido no tratamento que esses grupos dispensam a natureza no sentido de preservá-la como um bem comum a todos os seres vivos.

    A prática esportiva na natureza leva os seres humanos a contemplar a fauna, a flora, além de buscar uma aproximação com o meio ambiente e criação de novos vínculos sociais. Deste modo, a convivência na natureza através das práticas esportivas é o principal fio condutor que contribui para que as pessoas em situação de deficiência possam não só sentir-se realizadas, mas sim perceber o quanto o esporte desenvolve aptidões, estímulos, sensações e emoções.

    Conforme já ressaltou Munster (2004) a prática de esportes na natureza não é estabelecida em função do grau a que estão submetidas as pessoas em situação de deficiência, porém essas atividades devem primar pelas características individuais de cada pessoa e, portanto, de cada deficiente envolvido nessa prática. Neste contexto, cabe considerar que os limites inerentes às práticas esportivas são superados pelas pessoas com deficiências, quando comentamos: toda vez que você encara o desconhecido, você amplia os seus limites. Assim, ao caracterizar minha vivência nessa prática social tive a certeza de que um dos maiores desafios dos deficientes é superar obstáculos, vencer barreiras, superar seus próprios limites.

    A relação homem-natureza pode se dar a partir do momento que concebe-se o esporte como um importante componente de convivência harmônica, capaz de estreitar distâncias, aproximar seres, romper limites. Nesse modelo, Munster (2004) considera:

    Justamente pelo distanciamento observado nas relações humanas em nossa contemporaneidade, como prefiro me reportar ao momento social em questão, os Esportes na Natureza são tidos como uma possibilidade de estabelecimento de novos vínculos sociais e estreitamento dos laços nas relações interpessoais, a partir das situações de cumplicidade e parceria necessárias para sua realização. (p. 26)

    Nesse aspecto acredito serem as práticas sociais e os processos educativos importantes instrumentos de libertação às pessoas que buscam romper com a opressão social, a alienação política e a educação formal pautada nos princípios do conservadorismo e o sistema de ensino arcaico que pouco tem contribuído para construção da cidadania.

    A inclusão sócio-educacional das pessoas em situação de deficiência nas práticas sociais que envolvem a participação nos esportes na natureza, deve observar princípios básicos no que tange a adequação e/ou adaptação do local onde as práticas esportivas vão ocorrer. Em se tratando do deficiente, por exemplo, monitores, estagiários, professores, etc. devem observar o ambiente no que se refere o espaço físico, bem como as atividades que vão ser realizadas. Segundo Munster (2004) daí a importância de ter os seguintes cuidados:

  1. ao local onde se desenvolverá a atividade: todo equipamento possui dimensões próprias e adaptar-se a esse ou aquele espaço, requer tempo. Enquanto o aluno vidente reconhece e domina o ambiente por meio do contato visual, o portador de deficiência visual necessita interagir com o espaço, percorrendo-o em todas as dimensões possíveis;

  2. aos locais que cercam o espaço da atividade, tais como os acessos de chegada e saída, vestiários, bebedouros, escadarias etc. Faz-se necessário perceber que o local de “trabalho” não se resume apenas ao local de “atuação direta” reservado para o desenvolvimento motor do aluno, ou seja, uma vez que o aluno com deficiência visual tem como pontos de referência também as informações auditivas, é importante que ele tenha uma dimensão do espaço de “influência indireta” em que irá atuar;

  3. à disposição dos materiais e obstáculos comuns e inerentes ao local de trabalho: o educador deve analisar as diferentes possibilidades de utilização do espaço físico e verificar as condições de segurança do mesmo, observando se existem obstáculos desnecessários ou indesejáveis que necessitem ser removidos ou que exijam proteção, na tentativa de prevenir possíveis acidentes. O aluno deverá ser informado de toda e qualquer alteração que venha a ocorrer na disposição dos equipamentos ou materiais no espaço físico;

  4. aos locais que antecedem ou sucedem o espaço onde será desenvolvida a atividade, tal como o caminho a ser percorrido durante o deslocamento (p.36/37).

    Nesses encontros pude vivenciar algumas práticas sociais fora do ambiente escolar que, confesso, me impressionaram. Observei pessoas em situação de deficiência desenvolvendo diversas atividades físicas e esportivas no ginásio da UFSCar, nas quais eram sempre envolvidos indivíduos com todos os tipos de necessidades especiais.

    O percurso pelas ruas da UFSCar na bicicleta alongada também conduzida por um guia vidente e um aluno com deficiência visual configura-se numa prática social capaz de impressionar aqueles que ainda vêem os deficientes como o outro, o diferente, enfim fora do contexto social formal.

    O caminhar pelas trilhas nas matas, o contato com a natureza, as fortes emoções ao escalar morros, montanhas apoiados em cordas, nos colocam mais próximos daqueles considerados “normais”, à medida que proporciona a sensação de enfrentamento e superação de obstáculos.

    Ao se referir às práticas sociais esportivas constatei nessa vivência social a prática do atletismo para cadeirantes e para outras pessoas em situação de deficiência. Esporte este que já faz parte como modalidade oficial dos Jogos Para-Olímpicos há várias décadas.

    Ao me referir às atividades na piscina, pude conviver com pessoas em situação de deficiência nas mais diversas atividades aquáticas. Nesse período observei e pratiquei os mais variados estilos de natação, aos quais estão incluídos deficientes físicos, deficientes auditivos, deficientes mentais, AVC, AVE, Síndrome de Down e outros com algumas dificuldades sensoriais.

    As práticas sociais aqui vivenciadas não são apenas para promoção do lazer. Em sua essência elas objetivam a inclusão social das pessoas em situação de deficiência na sociedade. Essas práticas, no entanto, ocorrem em academias, quadras de esportes, piscinas, rios, trilhas, pistas de atletismo, matas, passeios de bicicleta, escaladas, o Rafting em barcos, competições em outras atividades, etc.

    Mas onde ocorrem as práticas sociais? Ao olhar para a educação formal, não resta dúvida, elas ocorrem no ambiente escolar, no sistema de ensino, no processo de ensino e de aprendizagem. Fora do espaço escolar, essas também podem se dar nas comunidades, nas relações com grupos humanos, na inserção social, em atividades voluntárias e em ações de cidadania.

    Ao contextualizar as práticas sociais onde realizei minha vivência, não tenho dúvidas em afirmar que elas se constituíram em sua essência muito mais que um projeto, mais que uma avaliação feita de fora do ambiente escolar. Por sua vez, elas não visam simplesmente chamar a atenção para os efeitos práticos de uma experiência. Dessa forma, procura dar ênfase aos processos, porque permite sulear as ações no sentido de propor mudanças no sistema, buscar soluções para os problemas presentes junto à coletividade.

    A concepção de mundo, de ser humano e de sociedade se configura como o fio condutor das abordagens Freireana ao longo de seus escritos. O modelo de educação proposto por esse conceituado educador nos remete a uma nova concepção de prática social para além do ambiente escolar.

    As atividades físicas adaptadas em academias durante a semana, onde são atendidas pessoas em situações de deficiências física, motora, sensorial e ou com dificuldades de aprendizagem, configurou-se como fator relevante para que eu conseguisse vivenciar algumas práticas sociais que deram enfoque à leitura do mundo plural, porque aborda as múltiplas facetas, o respeito mútuo, onde professores, coordenadores, estagiários, etc, falam com os outros, não para os outros. Sabe ouvir o outro, dialoga-se, comunica-se, compreende-se, trocam experiências, valorizam-se as múltiplas realidades, num contexto onde o diálogo se dá a partir da leitura do mundo, de um conjunto de experiências vivenciadas, enfim, das múltiplas diversidades.

    Me parece um tanto quanto complexo traçar alguns conceitos de processos educativos, especialmente ao retratar sua dimensão numa ação educativa para além do ambiente escolar.

    Ao lançar mão de alguns conceitos acerca dos processos educativos é perceptível entender que esses ocorrem num contexto da vida, onde as pessoas vivem, convivem, aprendem e experienciam, trocam informações com o mestre sem que esse possa se preocupar sistematicamente em transmitir o saber elaborado pelas palavras e pela abstração. É nesse aspecto que Freire (1983) observa: “Vivia enquanto se aprende e aprende-se enquanto se vivia”. Dessa forma torna-se evidente que a aprendizagem se faz também a partir das experiências de vida, de espaços coletivos, enfim, da formação de grupos que buscam a construção de sua identidade coletiva.

    Se aprender e ensinar é um processo que envolve a transmissão, fixação, promoção de saberes, memórias, sentidos, significados, práticas, performance, então o que é formar? Para Freire (1997): “(...) formar é muito mais do que puramente treinar educandos no desempenho de destrezas. Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar a sensibilidade para sua produção e construção” (p.15). Nesse sentido, é que vivenciei a possibilidade de que os processos educativos também ocorrem para além da sala de aula, do sistema escolar, do saber elaborado no interior das instituições, pois sem a vivência prática, sem experiências, fora dos contextos, ignorando a diversidade, a meu ver a aprendizagem não é completa e, portanto, sem significados.

    Minha concepção acerca dos processos educativos vai além daqueles teorizados pela escola. Daí é que vejo que o ato de ensinar é assim uma arte vivida, percebida, dialogada. É um conjunto de experiências previamente adquiridas, produzidas e construídas ao longo do percurso. Educar é dar valor ao imaginário, aos saberes do grupo, enfim, é permitir as reflexões em todos os contextos, mesmo sendo eles fora do ambiente escolar.

    Ao se referir aos processos educativos não formais aplicados ao grupo de deficientes, penso que nesses, o educador seja aquele com o qual nos integramos, interamos, compartilhamos as experiências, mantemos o diálogo. Nos processos educativos o grande educador é o outro, aquele que não discrimina, que não rejeita o diferente, sabe conviver com as diferenças, sabe respeitar a diversidade.

    Ao compartilhar da idéia de que a dialogicidade é o fio condutor do processo de ensino e de aprendizagem, é importante identificar alguns processos educativos que, segundo Dussel (2001), devem ocorrer numa ação educativa plural que observa o outro, o diferente, enfim, que respeita a diversidade:

    O mestre libertador permite o desabrochar criador do Outro. O preceptor que se mascara por detrás da “natureza”, da “cultura universal”, e muitos outros fetiches encobridores, é falso mestre, o sofista cientificista, o sábio do sistema imperial que justifica as matanças do herói conquistador, repressor (p. 231).

    Um aspecto marcante nessa convivência é o respeito às características individuais dos participantes e os interesses pessoais de cada um, bem como gostos, desejos, limites, possibilidades, disponibilidade e participação voluntária das pessoas em situação de deficiência nas atividades físicas propostas, sejam elas, na academia, no ginásio de esportes ou nas práticas esportivas na natureza.

    Educação, cultura, esporte, lazer, entretenimento social, ainda não é um direito social de todos, pois é notório que uma parcela considerável da sociedade encontra-se desprovida desses direitos legitimados e constituídos pela sociedade civil.

    O mundo moderno, globalizado, avançado, sem fronteiras, centrado nas tecnologias científicas encontra-se num grande dilema: criar alternativas que possam contribuir para que haja uma aproximação saudável entre homens, mulheres, seres e natureza, sem que nessas relações possam existir prejuízos ambientais de qualquer gênero.

    As alternativas que reconciliam seres humanos e natureza surgem da necessidade de que é preciso buscar outros meios de convivência destes para com a mesma. O contato com os esportes na natureza, a possibilidade de ver nela uma forma de inclusão sócio-educacional, a sensibilidade que esta propicia às pessoas em todos os aspectos, configuram-se, a meu ver, como uma das práticas sociais de maior relevância, dada a ampla gama de atividades que esta prática pode promover às pessoas independente de classe, raça, cor, credo...

    O ingresso nos esportes na natureza é fator preponderante para reduzir preconceitos, eliminar barreiras, superar obstáculos, enfim, aproximar povos. Nesse modelo deve-se considerar o conjunto de práticas sociais atribuídas a um universo de pessoas de diferentes origens sociais, econômicas, culturais. Acerca dessa assertiva, Marinho (1999) faz a seguinte observação: “Partindo desse pressuposto cumpri-nos aqui observar o quanto as práticas sociais são relevantes para se efetivar a inclusão social, em especial quando referimo-nos aquelas que elevam a auto-estima das pessoas em todos os segmentos” (p.381).

    A inclusão social das pessoas com deficiências nesse estudo se justifica mediante a tese de que todos e todas têm o direito de poder ter uma melhor qualidade de vida em qualquer que seja o segmento social em que estejam inseridas.

    Essa vivência consiste na idéia de que é necessário estender as práticas esportivas a todas as pessoas em situação de deficiência, sejam elas, nas águas (piscinas, rios, etc.), ou em escaladas, montanhas, trilhas etc. Nesse sentido, justifica-se a riqueza de sensações, emoções e valores, bem como a auto-estima que o esporte propicia às pessoas, em especial quando me refiro aos deficientes em contato com a natureza.

    Ao observar os estudos acerca dos esportes na natureza, é importante ressaltar que estes constituem num relevante mecanismo de inclusão social para as pessoas em situação de deficiência.

    A prática social na qual se inserem os esportes de aventura na natureza e os esportes radicais, me deram a idéia do quanto é possível poder incluir todas as pessoas em diversas modalidades esportivas. Nesse modelo de inserção social no qual se inserem as pessoas em situação de deficiência, Betrán (2003) propõe:

    A utilização da expressão “Atividades Físicas de Aventura na Natureza” (AFAN) para designar um conjunto de práticas “[...] fundamentadas na perda momentânea da segurança corporal, com a ajuda da tecnologia e dos acidentes da natureza, para obter fortes sensações em função da interação equilíbrio-desequilíbrio-reequilíbrio” (p. 191).

Algumas reflexões

    As vivências aqui apontadas, as experiências vivenciadas nessa prática social e os processos educativos percebidos, me propiciaram uma nova concepção de vida frente o tratamento que as pessoas em situação de deficiência receberam no projeto, em especial ao me referir a alguns professores que vêm as práticas sociais e os processos educativos para além das arestas da educação sistematizada, centralizada nas páginas de livros, idealizadas nos gabinetes, dirigidas por decretos, enfim, pautadas na figura do professor como o único mentor do saber, da verdade e do conhecimento.

    Em síntese, nesse relato de experiências apresentei minha concepção acerca da inserção nesse curso. Para tanto, cumpre-me aqui justificar esta convivência, apresentar à comunidade, disponibilizar ao público leitor que tenha interesse por questões sociais como estas.

    Nessa convivência social onde estive inserido durante oitenta horas constatei o quanto a dialogicidade Freireana predomina nos diálogos envolvendo alunos do Departamento de Educação Física e Motricidade Humana (DEFMH) da UFSCar, monitores, estagiários, pesquisadores e professores que promovem suas intervenções, bem como pelas coordenadoras do projeto de extensão intitulado PROAFA.

    As práticas sociais nos esportes na natureza marcaram esta magnífica vivência. Em Brotas, cidade paulista, na qual ocorrem diversos tipos de esportes de aventura uma das vivências que muito me marcou foi a emoção de entrar em um bote, participar desse esporte caracterizado por especialistas como Rafting – que consiste em descer remando dezenas de cachoeiras com altura média variando entre 0,5 metros a 3,5 metros. A Tirolesa, esporte radical de aventura também praticado na natureza, que consiste em momentos de emoção, superação de limites, de quebra de barreiras, de desafios a serem enfrentados por pessoas em situação de deficiência.

    Nessa trajetória de convivência, um dos momentos gratificantes vivenciados foi observar o quanto o grupo consegue se relacionar, isto é, mesmo que nesse grupo haja pessoas em situação de deficiência de várias categorias. O traço marcante nessa vivência foi a relação social vivida pelo grupo, bem como o respeito mútuo que há entre os participantes (que são compostos por adolescentes, jovens, adultos e idosos), e entre estes com os coordenadores do projeto.

    A partir dessa convivência em um grupo composto por pessoas com diferentes deficiências foi possível compreender que as práticas sociais estão centradas em estratégias individuais ou coletivas, espontâneas ou organizadas, que se de um lado visa reformar ou conservar o sistema, de outro o objetivo é transformar afim de que os preconceitos e as discriminações possam ser eliminadas e que a construção da cidadania possa se efetivar.

    Ao longo dessa vivência constatei diversos processos educativos construídos a partir de ações educativas não formais preconizadas pela escola, pelo sistema de ensino, enfim pela educação formal centrada em pedagogismo e psicologismo idealizado por supostos educadores que nunca deram uma aula, nunca vivenciaram as múltiplas realidades, enfim, nunca viveram a experiência de fazerem juntos.

    Nesse período identifiquei alguns processos educativos que podem contribuir para o processo de inclusão social daqueles que são vistos como o estranho, o outro, o diferente ao sistema escolar.

    Nesse percurso procurei observar o quanto os processos educativos não formais também colaboraram para que pudesse aprender em grupo, com os grupos, e com a diversidade. Assim, identifiquei nessa inserção várias categorias de deficientes, cujo ponto marcante nessa vivência é o respeito individual aos seus limites.

    Minha avaliação acerca desse projeto é a melhor possível, pois além de promover às pessoas em situação de deficiência uma boa qualidade de vida, interação social, integração, entretenimento, lazer, cultura, inclusão nos esportes, promove também a inclusão sócio-educacional nos diversos segmentos da sociedade.

    Com base nos resultados obtidos, bem como a análise dos diários de campo realizados durante os quatro meses de convivência no PROAFA percebi que o processo de inclusão ocorreu para todas as pessoas participantes, não importando suas diferenças. Sendo que, a cada encontro, pude constatar o quanto era afetivo o relacionamento interpessoal entre todos.

    Observei o quanto todos os deficientes participam das práticas corporais adaptadas com desejo de superação nas diversas atividades realizadas: natação, trilhas a pé, escaladas, rafting, tirolesa, bicicleta alongada, atletismo, futebol de salão...

    Observei também, que essas práticas corporais além de provocarem inúmeras sensações e emoções, algumas novas inclusive para mim (deficiente visual total), elevaram a auto-estima dessas pessoas em situação de deficiência, favorecendo efetivamente a inclusão sócio-educacional destas. Neste contexto, cumpri-me acrescentar que contribuíram, ainda, para uma melhor qualidade de vida decorrente dos benefícios da própria realização de práticas corporais, ocorridas tanto em ambientes “domésticos” (piscina coberta e aquecida, quadra poliesportiva, mini-ginásio, etc.) ou “selvagens” (corredeiras, cachoeiras, bosques, etc.).

    Outros resultados obtidos nessa convivência, decorrentes de diálogos anotados nos diários de campo foram: decisão e participação de parte do grupo em associação de pessoas idosas; interesse em criar organizações e/ou associações de deficientes; aumento na participação em diversas atividades de esporte, cultura e lazer; desejo de voltar ao mercado de trabalho; interesse em participar de modo competitivo em modalidades esportivas adaptadas; manifestação de regressar à escola.

    O processo de inclusão sócio-educacional de todas as pessoas em situação de deficiência só irá ocorrer de um lado se a sociedade se adaptar para propiciar oportunidades em todos os aspectos. De outro, as pessoas em situação de deficiência devem organizar-se e manter a resistência coletiva, a fim de que suas raízes não sejam partidas, lançadas para longe, enfim, que seu valor e sua dignidade possa ser respeitada enquanto o outro, o diferente que vive na diversidade.

    A convivência mostrou o quanto o universo humano é rico de possibilidades, de atitudes, de vivencias e experiências. Mergulhar na diversidade é olhar com um terceiro olho para as diferenças, para o estranho, para o outro, para aqueles cuja sociedade chama de anormal ou de “coitadinho”, de diferente ou desprezado, enfim, de não perfeito ou de desfigurado pela “sorte”.

    Em linhas gerais, diria que os resultados propiciados por essa inserção foram conhecer que práticas sociais e processos educativos também se dão fora do espaço escolar que sempre foi pautado no pedagogismo e no psicologismo fechado, centrado em teorias que nem sequer experienciaram a realidade.

    As práticas sociais e os processos educativos vivenciados nessa inserção deram uma certeza: a veemente necessidade de pensar a escola, seu sistema de ensino, as metas que esta pretende alcançar para além do espaço escolar. A meu ver, a inclusão sócio-educacional de todos e todas só irá ocorrer mediante ações educativas práticas, nas quais o outro, o diferente, a diversidade possa ser olhada, vivenciada, experienciada.

    Em síntese, diria que os processos educativos vivenciados nesses vinte encontros são a constatação de que junto às pessoas em situação de deficiência ensina-se e aprende-se, vive e convive, partilha e compartilha, soma-se e multiplica-se, constrói e reconstrói, abrem-se janelas e vislumbram-se horizontes, há sensações e emoções, desejos e vontades, sonhos e realidades, desafios e possibilidades, enfim, práticas sociais e processos educativos que possam construir uma nova sociedade que não veja as pessoas deficientes como o outro, como o diferente, que haja respeito à diversidade.

    As reflexões acerca dos processos educativos vivenciados nessa inserção, em relação àqueles promovidos pela escola são:

    As relações que há entre os processos educativos examinados e aqueles promovidos pela escola podem se aproximar, se juntar, enfim, se multiplicar, desde que a escola e as instituições que promovem a educação se proponham a romper as barreiras da sala de aula, dos muros escolares, dos métodos tradicionais sistematizados, fechados fora da realidade. Os processos educativos serão frutíferos, irão trazer bons resultados, farão com que o ensino, a educação e a escola sejam transformadas numa instituição de liberdade, de saberes múltiplos, de ações educativas práticas, onde o processo de inclusão sócio-educacional possa ser uma garantia de todos e de todas, sem que se faça presente o preconceito, a discriminação e que as diferenças não se constituam num divisor de água entre aqueles considerados “normais” e aqueles vistos como diferentes, enfim, que as diferenças não sejam olhadas como obstáculos, mas sim como um atributo somatório na construção de uma cidadania coletiva. Isso não é utopia, isso é possível.

Referências

Outros artigos em Portugués

  www.efdeportes.com/

revista digital · Año 14 · N° 136 | Buenos Aires, Septiembre de 2009  
© 1997-2009 Derechos reservados