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O pior cego é aquele que só vê a bola. Relação 

entre Estado e futebol no 1º Governo Vargas

No hay peor ciego que aquel que solo ve la pelota. Relación entre Estado y fútbol en el primer Gobierno Vargas

 

*Acadêmico da Universidade Federal de Juiz de Fora.

**Mestranda em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora – PPGE\UFJF

(Brasil)

Anderson de Carvalho Mororó*

Priscila Gonçalves Soares**

priscilagsoares@yahoo.com.br

 

 

 

Resumo

          O presente artigo busca colocar em discussão as articulações políticas empreendidas no primeiro governo Vargas em relação ao futebol, com o uso deste como instrumento de garantia da paz social.

          Unitermos: Futebol. Identidade. Vargas. Paz social

 

Abstract

          The present article searchs to place in quarrel the joints politics undertaken in the first government Vargas in relation to the soccer, with the use of this as instrument of guarantee of the social peace.

          Keywords: Soccer. Identity. Vargas. Social peace

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 133 - Junio de 2009

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    Este trabalho lida com um tema muito pouco trabalhado, mas assaz importante para o entendimento das políticas getulistas engendradas durante o Estado Novo. Apesar de notório, o futebol tem sido pouco estudado nos campus acadêmicos, mesmo sendo considerado o principal esporte brasileiro. Essa situação de marginalização do esporte bretão é um alento, pois em nosso país, ele é tão importante quanto à musicalidade e a religião.1

    O futebol é um tema bastante abrangente, podendo ser abordado por diversos ângulos. O recorte feito neste estudo concentra-se basicamente na relação entre Estado e futebol no Brasil, mais especificamente, durante o 1º governo Vargas, mostrando esse esporte como uma estratégia estatal voltada para o apaziguamento da sociedade brasileira, já que havia sofrido um duro golpe. O futebol se apresenta somente como um dos instrumentos de manipulação das massas de Getulio Vargas, mas a importância deste momento está no fato de que, pela primeira vez, o esporte bretão recebia as atenções do Estado brasileiro. Enfim, o objetivo primordial deste trabalho é inserir o futebol dentro do contexto político no governo de Getulio Vargas.

    O presente trabalho está dividido em três partes. Primeiro estaremos desenvolvendo uma contextualização do futebol no período pré-Getúlio, buscando as raízes do esporte bretão no Brasil. Estaremos realizando uma breve história do futebol em terras tupiniquins, analisando a transformação de um esporte que, em seus primórdios, se caracterizava como essencialmente fidalgo,2 praticado somente pelas elites, até a sua afirmação de um esporte essencialmente popular e democrático, praticado por todos os níveis sociais. Esse momento é importante, pois a adoção do esporte bretão por Getulio Vargas foi resultado direto desse processo de popularização. Estaremos também analisando a evolução do futebol como política de Estado, onde passou a despertar interesse nos políticos nacionais. Apesar de ter ganhado status no Estado getulista, o futebol vinha galgando posições de importância perante a política nacional desde o final da década de 10. Nessa primeira parte também estaremos lidando com a relação entre futebol e nacionalidade.

    No segundo momento é nosso objetivo aprofundar a política getulista da Paz Social. Essa política foi essencial para a inserção de práticas antidemocráticas, característicos da situação ditatorial presente durante o Estado Novo. Foi uma espécie de alento encontrado pelos governistas para amenizar futuros atritos entre sociedade e Estado.

    Posteriormente, depois de contextualizar o futebol e o período político do momento, estaremos desenvolvendo o objeto central do nosso tema: a relação entre estado getulista e Futebol. O esporte bretão se encaixa perfeitamente nos ideais de Paz Social implantados por Getulio Vargas, tanto que além de adotar como uma política estatal, passa a exercer enorme influência na prática desse esporte no Brasil. É importante ressaltar que o futebol vinha recebendo a atenção do estadista desde que ele assumiu o governo de forma provisória em 1930. A instauração do Estado Novo veio somente reforçar uma política de valorização do esporte bretão no Brasil que já vinha sendo homologada. Além de está inserido dentro do contexto de Paz Social, o principal objetivo de Getulio Vargas era utilizar o futebol como um instrumento irradiador de um sentimento nacional. Ele percebe a importância deste esporte perante a sociedade brasileira. A sua tática era utilizá-lo como um objeto de construção de um ideário em comum, aliando o esporte bretão à constituição de uma nação. É a transformação de um em nós. Esta política é bastante recorrente, sendo aproveitado nos dias atuais como uma forma de manipular o povo em meio as constantes crises institucionais.

    Este trabalho têm objetivos bastante visíveis. Pretendemos, além de conferir maior valor ao tema futebol como constituinte de um trabalho histórico, aprofundar um pouco mais na questão da Paz Social e a construção de um espírito nacionalista no período getulista. Utilizamos todos esse preceitos para chegar ao objetivo central deste trabalho, que é trabalhar com mais afinco a relação entre Estado e Futebol no Brasil.

Primórdios do futebol no Brasil

    A prática do futebol, em seus primórdios, se caracterizou pelo seu elevado caráter elitista.3 Foi um fato presenciado não só em São Paulo e Rio de Janeiro, mas presente em todo lugar onde o futebol tenha disseminado. A prática do esporte bretão, desde a sua ascendência até meados da década de 10 do século XX, limitava-se apenas a um círculo bastante restrito da população. Era praticado em lugares fechados, longe do conhecimento de todos aqueles que não exerciam o futebol. Eram praticantes que, em sua grande maioria, ocupavam o extrato máximo da sociedade. Tanto jogadores quanto os torcedores eram muitos bem trajados e marcados pelo elevado cavalheirismo. Faltava popularidade, faltavam torcedores, mas nada disso preocupava os primeiros futebolistas. O esporte bretão transformou-se, naquele momento, num evento social da moda, tornando-se ponto de encontro e confraternização das principais famílias da sociedade. Era uma verdadeira festa, porém extremamente restrita.

    Essa fase, denominada por Leonardo Afonso como momento fidalgo do futebol brasileiro,4 era marcada pelo seu alto grau de amadorismo. Os praticantes eram em sua maioria trabalhadores ingleses altamente especializados, com forte presença das elites. Os jogadores ou praticantes não recebiam qualquer tipo de salário. Além de não receberem qualquer ordenado, eram também responsáveis pela manutenção dos clubes, custeando todas as suas despesas, desde a manutenção dos campos até a compra de material esportivo, que era todo importado. Alguns clubes tinham um quadro assaz restrito de sócios, que através de polpudas contribuições mensais, custeavam também o dispêndio do clube. Diferente de como é hoje, onde a maioria dos praticantes do futebol utiliza o como uma forma de ascensão social, a prática do esporte bretão em seus primórdios se apresentava apenas como um passatempo para as elites do período. A maioria dos clubes tinha estatutos com conteúdo altamente excludente, para não dizer discriminatório. Muitos não permitiam a inserção de pessoas negras em seus quadros de sócios, mesmo aqueles que tinham a capacidade de arcar com os altos custos de praticante e sócio das agremiações. Eram impedidas também aquelas pessoas que exerciam, em seu trabalho, qualquer atividade braçal. Todas essas limitações citadas eram uma forma da nata da sociedade assegurar para si o monopólio5 da prática futebolística, tentando evitar assim qualquer forma ou lampejos de popularização desse esporte. Mas essas medidas alcançaram êxito por um escasso espaço de tempo.

    Não existe uma data específica para criar um marco sobre a popularização do fidalgo football. Relatos de jornais6 apontam para um público, que sem condições de arcar com o alto preço das entradas e com elevado valor das mensalidades de sócios, buscavam formas, muitas vezes precária, de assistir um match de futebol. O jogo despertava um enorme fascínio perante aqueles desfavorecidos espectadores, tanto que buscavam praticá-lo em diversos espaços próprios, longe dos relvados da elite. Nessas novas expandiduras eram aceitos jogadores negros, mestiços, mulatos, pobres, enfim todas as pessoas que admiravam o futebol praticado pela elite, mas não tinham lugares para exercê-lo.

    O futebol no inicio da primeira década do século XX exercia um extremo fascínio para aqueles que passaram a acompanhá-lo. O futebol, longe de ser popular, era desprestigiado com relação aos outros esportes, como a luta romana e o remo.

    Bastava olhar para um remador, mesmo vestido, na rua. Vestido na rua destacava-se mais. Todo mundo raquítico, ele estourando de forças: os ombros largos, a cintura fina, o paletó quase não se fechando, estufando no peito. Via-se logo que era um remador.7

    O esporte bretão, segundo cronistas da época,8 era um esporte para moças, pois não exigia a vitalidade e não criava músculos, além de apresentar praticantes muito bem vestidos, o que criava uma imagem de esporte essencialmente afeminado, diferente de outros esportes praticados na época, onde a força física era fundamental para os exercícios destas atividades, produzindo praticantes extremamente musculosos. Defensores do futebol argumentavam que o esporte bretão era uma arte, longe de ser acessível a qualquer pessoa.9 O futebol, além desse fato, exercia um fascínio enorme para aqueles que o acompanhavam. Diferente dos esportes como o remo, o esporte bretão tinha extrema facilidade em “produzir” novos adeptos. Segundo Mario Filho, um grande cronista da época, o brasileiro tinha a vocação para o futebol. Essa era a grande vantagem que o esporte bretão tinha sobre os outros esportes populares na época. Por exemplo, o entusiasmo provocado pelo remo era totalmente diferente. “Terminada a regata, o torcedor não voltava para a casa com vontade de entrar para um clube de remo”.10 Fato que se diverge do futebol. Ao dar fim a um match, ou mesmo durante as partidas, o torcedor já ensaiava os seus chutes. “O jogador chutava, lá dentro do campo, e o torcedor, cá fora, chutava também.”  11 O fascínio que o esporte bretão despertava entre a população que o assistia era o grande trunfo que o esporte tinha para romper as barreiras da fidalguia e alcançar a sua popularidade. No final da década de 10 o futebol se vulgarizava por todos os cantos das grandes cidades, principalmente pelo Rio de Janeiro. ”Qualquer preto podia jogar futebol.”. 12 O futebol assumia, apesar dos contratempos impostos pela elite, uma via bastante popular, um caminho sem volta.

    A imprensa assumiria um papel crucial no processo de popularização do futebol praticado no Brasil. Os jornais começaram a perceber o momento em que o futebol deixava de ser apenas um passatempo das elites para se tornar uma febre em todo o país. Eles começaram a encarar o futebol como um produto que viesse suprir a demanda de um público que queria acompanhar futebol mais de perto. Já havia um mercado consumidor, só faltava a mercadoria. A adoção de matérias esportivas nos diários “coincidiu com a circulação crescente de jornais” 13 . Em diversas partidas, realizadas em 1913, entre o time inglês Corinthians Club e clubes nacionais, demonstrou o enorme potencial que o futebol tinha para o mercado editorial. Foram escritas páginas inteiras de jornais sobre a visita que o time britânico fez ao Brasil. Foi um sucesso total. A partir deste momento os jornais passaram a contratar jornalistas e fotógrafos exclusivos que iriam trabalhar somente com o esporte, atribuindo mais ênfase ao futebol. Foi só no final da década de 10 que o futebol ganhará diários sobre o esporte bretão.

    A conquista do futebol no meio jornalístico foi de suma importância para o processo de expansão do esporte bretão por todo território brasileiro. O futebol, com o crescente aumento da cobertura jornalística sobre os matchs, atingia o interior. Contribui para essa expansão a tendência do interior, durante a República Velha, de copiar hábitos culturais da cidade.14 O futebol nessas regiões imitava toda a estrutura de exclusão presentes nos grandes centros, onde a elite, como já foi comentado, monopolizava a prática do futebol.15 Assim como nas áreas urbanas, as cidades do interior também sofreram um movimento de popularização do futebol. Em pouco tempo surgem as primeiras “peladas”, onde faltava material esportivo básico, mas não faltava motivação para a prática do futebol.

    Tanto a imprensa quanto o futebol são regidos por uma união de mão-dupla.16 A comunidade editorial pretendia, ao lançar colunas sobre o futebol em seus jornais, atrair mais leitores e conseqüentemente vender mais exemplares, lucrando a mais com esporte. Mas, ao mesmo tempo, esses jornais contribuíram, de forma inesperada, para ampliar ainda mais o número de adeptos e de torcedores por todo país.

Futebol e nacionalismo

    Segundo Hobsbawn, o surgimento dos esportes em geral foi um fator fundamental no fortalecimento do ideal nacionalista “[...] o esporte como um espetáculo de massa foi transformado numa sucessão infindável de contendas, onde se digladiavam pessoas e times simbolizando Estados-nações, o que hoje faz parte da vida global."

    O movimento de ascensão de jogadores negros e mestiços, presentes tanto nos clubes brasileiros quanto no selecionado (apesar de ainda ser limitado à presença desses grupos raciais), permitiu que esse esporte viesse a ocupar uma posição central na construção da identidade nacional. Na ausência de um maior envolvimento brasileiro em guerras – matéria prima na construção de fronteiras de identidade na formação dos Estados nacionais unificados na Europa – o futebol forneceu um simulacro de conflito bélico para o qual era possível canalizar emoções e construir sentidos de pertencimento nacional. Esse ideário chegou e transformou campeonatos mundiais de futebol em verdadeiras guerras, onde os soldados (jogadores) iriam a campo defender a nação brasileira.17

    Segundo o historiador Fábio Franzini, o torneio sul-americano de futebol disputado no Rio de Janeiro em 1919 foi um marco não só para a popularização do futebol, como também foi um importante momento com relação à construção de um ideário nacionalista. Em seu trabalho, ele dedica enorme importância a esse acontecimento. Segundo o historiador, esse foi um momento esportivo que mobilizou não só a capital da república, como também todo o Brasil. Jornais e rádios se incumbiam da função de levar as notícias das vitórias do selecionado brasileiro por toda a terra tupiniquim.

    Essa cobertura criou uma expectativa com relação ao resultado da seleção brasileira neste torneio. Reuniu massas de todas as raças e credos, todos abriam mão das suas preferências clubísticas para torcer para apenas um time. Era a transformação de um em nós, ou seja, o selecionado brasileiro estaria representando toda uma nação. Até então, nunca havia se registrado uma euforia tão grande com relação a um acontecimento, principalmente esportivo. Neste momento o Brasil carecia de figuras, imagens ou algo que servisse como um difusor de um sentimento nacional, de um ideário onde todos se identificassem com alguma coisa, com algo comum. O futebol cairia perfeitamente no papel de formador de uma identidade social, seria essa coisa que o Brasil precisava para se formar como uma nação de brasileiros.

    O Brasil vence o campeonato depois de uma dramática decisão contra a seleção do Uruguai, tida como o melhor time de futebol do momento. As fortes comemorações do título evidenciaram e consolidaram o processo de popularização do futebol no Brasil. Ainda existiam barreiras a serem quebradas, mas o futebol tornou-se algo natural, como se fosse um esporte enraizado e criado pelos brasileiros. O esporte bretão assume um papel essencial na sociedade brasileira, ele passou, neste instante, a fazer parte dela, um sentimento presente até os dias de hoje, transformando o Brasil em terra do futebol. O atacante Friedrich se tornou o principal herói desta conquista ao marcar o gol decisivo que levou o selecionado brasileiro a vencer os uruguaios pelo placar mínimo. Esse jogador era o único mestiço do time brasileiro. Era filho de um alemão com uma mulata brasileira. Tinha características faciais de um mulato, porém com olhos azuis. Ele foi um dos maiores nomes do futebol brasileiro em todos os tempos, se configurando como o maior goleador brasileiro existente até hoje. Ao marcar na final da copa sul-americana, Fried, como era chamado, foi bastante aclamado pelos torcedores. Esses, ao verem um mestiço ser considerado o melhor jogador de um scrath constituído por jogadores essencialmente brancos, tomaram a figura deste jogador como um vencedor, como um autêntico representante da raça brasileira. Gritos de nós somos campeões se espalharam pro todo o Brasil. Estava lançado o gérmen da identificação do futebol como algo essencialmente nacional.

    Na década de 20, com o passar dos anos os feitos do titulo de 19 haviam sido esquecidos. A prática do futebol competitivo continuou sendo quase exclusivamente branca e elitista. Mas uma marca ficou visível. Com a vitória do selecionado de 19 criou-se uma enorme legião de torcedores, que selecionavam algum time para torcer e acompanhar nos relvados da cidade, no caso Rio de Janeiro. A partir de meados da década de 20 a situação dos praticantes do futebol começa a alterar. Começaram a surgir os bônus pelas vitórias, uma espécie de prévia dos salários pagos aos jogadores, até então não havia nenhum tipo de pagamento para os praticantes do futebol. Começaram a privilegiar o mérito do jogador, ou seja, a questão racial fica de lado, jogadores agora têm que ser bons, não importa a raça. Esse movimento foi uma resposta a fortes pressões exercidas pela, agora, enorme massa de torcedores. A cada derrota em algum campeonato eram cobradas providências dos dirigentes.

    Foi neste contexto em que jogadores de classes e raças distintas daquela que estava em vigor começavam a aparecer na prática do futebol profissional. Os campos de várzea do Rio de Janeiro eram recheados de praticantes de cor. O negro e o mulato eram reconhecidos como os melhores praticantes de futebol, muito melhor que os brancos.

    O mulato e o preto eram, assim, aos olhos dos clubes finos, uma espécie e arma proibida. Não um revólver, uma navalha. Se nenhum grande clube puxasse a navalha, os outros podiam continuar lutando de florete.18

    Não que a superioridade dos jogadores de cor estejam na entonação das suas cutis. Segundo o jornalista Mario Filho, a superioridade futebolística do mestiço se deve a exaustiva prática do futebol, onde jogavam praticamente todos os dias, levando ao aperfeiçoamento da sua técnica. Já os jogadores da elite cultuavam o esporte bretão somente nos finais de semana, sem haver qualquer tipo de treino ao longo da semana. A fidalguia, devido a essa reconhecida superioridade dos jogadores de cor, utilizava todos os instrumentos possíveis para que esses praticantes “privilegiados” não ingressassem em equipes da primeira divisão do campeonato carioca. Mas todo o esforço foi em vão. Em 1923 surge uma agremiação de portugueses denominada Vasco da Gama. Era um time do subúrbio carioca e a sua importância se deve ao fato de ser o primeiro scrath a permitir o ingresso de jogadores que estavam à margem da elite futebolística, como os negros, mulatos, pobres e imigrantes. Foi duramente repreendido, mas o seu pioneirismo seria prática recorrente, anos à frente, de todos as equipes de futebol do Rio de Janeiro.

    A década de trinta pode se dizer foi a década da consolidação do futebol como o esporte rei do Brasil. Haviam milhões de praticantes e torcedores, que juntos, com o forte apoio da imprensa, constituíram o esporte bretão como a mais popular prática esportiva. Foi neste período que o futebol recebe amplo apoio do Estado. Era uma intervenção que buscava auxiliar a prática do futebol em todos os setores, desde o financiamento de viagens e pagamento de salários de dirigentes até a regularização da profissão de jogador de futebol, que até então era considerado amador. Foi neste momento que se organizou sindicatos e estipulou-se salários para esses jogadores.

    Esse apoio foi aumentando conforme acentuava o apoio popular sobre o futebol. Getúlio Vargas foi o primeiro estadista a reconhecer o futebol como um instrumento manipulador de massas e usou deste expediente ao longo de todo o seu governo, intensificando durante o Estado Novo. Esse tema será tratado com mais afinco nos capítulos posteriores.

O governo de Vargas e a paz social

    Procurar estabelecer o uso que o sistema político nacional fez do futebol é o cerne do presente estudo. Cabe agora delimitar a temporalidade de nosso objeto, e para isso faz-se necessário contextualizar o 1º período Vargas de 1930-1945.

    A década de 30 marca o início de um novo rumo na política brasileira com a ascensão do gaúcho Getúlio Vargas ao poder. A Revolução de 30 não trouxe contudo grandes rupturas, já que essas só consolidariam-se em fins do Estado Novo em 1945.

    Vargas consegue implantar seu ideário de inspiração fascista, graças em parte, a um esgotamento da eficiência acumuladora da economia cafeeira, a política agora seria em nome da ordem e do progresso e não mais atendendo em toda sua plenitude a oligarquia paulista e mineira.

    O estado varguista desenvolve a construção de uma nova e verdadeira identidade nacional. Tem-se um processo ideológico e doutrinário que pressupunha repensar a sociedade como um todo, dando-lhe uma nova fundação. No mesmo movimento que elaboravam o ideário de um passado de crise e de ausência de identidade, davam organicidade à nação definindo elementos como povo e nação.

    Elabora-se um novo padrão de articulação entre o Estado e a sociedade a partir da instauração de uma estrutura corporativa de representação de interesses. Sob a tutela do Estado, empresariado industrial e trabalhadores urbanos são incorporados; com isso percebe-se uma maior liberdade de ação aos empresários, em contrapartida a submissão disciplinar e controladora dos trabalhadores urbanos pelo Estado.19

    Esta seria a tônica do estado varguista, sob a égide da Paz Social, proclamaria a colaboração entre as classes. Sob a arquitetura de Oliveira Vianna esse Estado se construiria com a criação de vários órgãos técnicos, conselhos e comissões.

    Por fim Vargas amplia os direitos sociais, introduzindo e aperfeiçoando a legislação social – sindical, trabalhista e previdenciária. Infelizmente os direitos civis e políticos foram repressivamente restringidos – eis o preço pago: um regime ditatorial em troca da política social.

    Através da instituição de políticas sindicais, trabalhistas, Vargas trouxe para si o povo, o que lhe permitiu (óbvio que por meio de grande aparelho repressivo e propagandístico) impor seus ideais fascitóides de ordem e progresso e de construção do nacionalismo, calando a voz das minorias. Este era basicamente o seu conceito de Paz Social para o pleno desenvolvimento do país, com a construção de um novo homem nacional sob a tutela do trabalho.

Vargas e o Futebol

    Não reconhecendo direitos individuais e somente os coletivos, com um Estado sobrepondo-se à luta de classes, com leis trabalhistas sendo as leis da harmonia social, Vargas governou.

    Neste momento, configura-se como fenômeno de massa e popular nos anos de 30 e 40 o futebol, onde as elites dirigentes do país, o vêem como um componente fundamental na cruzada disciplinadora nacional, visando sua harmonia.

    No ano de 1933, a profissão de jogador de futebol é criada, juntamente com sua sindicalização, dando-se assim os primeiros passos para sua disciplinarização e construção da identidade nacional. Tal profissionalização trazia a idéia de igualdade entre povo e elite (embora os preconceitos raciais não tivessem desaparecido), pois tirava a hegemonia elitista do futebol, no momento em que incorporava figuras provenientes das classes baixas além dos negros.

    O conceito de disciplina, era tanto ideológico e moral – no sentido de uma organização ampla da sociedade – quanto específica do esporte, como um pressuposto de racionalidade operativa e eficácia competitiva, a partir de uma suposta neutralidade técnica.20

    O futebol então transcende e torna-se um fenômeno social, conferindo princípios de cidadania a uma parcela significativa da população. Ao se tornar profissional, o atleta foi transformado em trabalhador, significando muito dentro da ordem autoritária e corporativista do período, sob a qual era a categoria “trabalho” e sua legislação que pretendiam definir o cidadão e a cidadania.

    Dentro desse espírito técnico, é criado em 1941 o Conselho Nacional de Desportos, visando todo o ordenamento desportivo, inclusive o futebol (em fase de transição do amadorismo elitista para o profissionalismo popular).

    Segundo Vianna,

    As diferenciações sociais tão explícitas em outros níveis vão se minimizar sob o efeito aglutinador do futebol, abrindo espaço para a formação de um sentimento de pertencimento à sociedade brasileira, o que foi de encontro ao processo de reelaboração de elementos de apelo popular promovido pelo governo de Getúlio Vargas com vistas à unificação cultural do país, estabelecendo uma homogeneidade em meio à diversidade.21

    Em relação a seleção nacional, apesar da nação já estar como diz Fábio Franzini “de chuteiras” desde 30, será somente em 1938, na Copa do Mundo da Itália, que o sentimento popular encontra o nacionalismo do recém-instaurado Estado Novo convergindo para a seleção de futebol. A Copa de 38 com seu impacto no Brasil, consolidava-se a idéia de “pertencimento” através da identidade nacional expressada pela seleção de futebol, tudo isso com o auxílio dos meios de comunicação que contagiou o país.

    Após a popularização, o futebol torna-se um meio de sobrevivência e, depois, uma forma de trabalho, o futebol se transforma em “patrimônio nacional” pelo regime. A partir de 38 o futebol então um reflexo de sua popularização, passa a ser controlado pelo Estado, cujo intuito era estatizar, moralizar e disciplinar o esporte brasileiro, ou seja, adequá-lo a ordem corporativa.

Considerações finais

    A trajetória do futebol é bem interessante no país, de esporte amador, praticado somente pela elite, vai se transformando pouco a pouco, em popular e de massa, incorporando em seus plantéis os elementos até então discriminados na sociedade brasileira, o pobre, o mulato, o negro, o camponês e o indígena.

    A partir desta incorporação, perceberemos então a atuação do Estado, que ao profissionalizar o esporte, traz para si o controle deste, num programa de intervenção e controle pertencente a um movimento autoritário que responsabilizava o republicanismo liberal, anterior a 1930, da crise e da instabilidade e, principalmente, da incapacidade de fundar uma verdadeira identidade nacional brasileira.

    A grande proposta deste trabalho, é contribuir embora de maneira pequena, para o resgate do tema futebol por parte dos historiadores, visto que o grande número de trabalhos são realizados por sociólogos, antropólogos e jornalistas.

    Necessitamos de uma interpretação da complexa dinâmica sociocultural (política, econômica, institucional e simbólica) construída, ao longo de mais de cem anos, em torno do futebol no Brasil. Análises que privilegiem um estudo dos dirigentes esportivos, que nos levariam às relações entre futebol e política, para além da ladainha do “ópio do povo”.

    Encerra-se o presente trabalho com uma brilhante conclusão de Fábio Franzini, um dos poucos historiadores que trabalham o futebol em profundidade,

    Se o futebol já era popular e mobilizador, a partir dos anos 30, passa a ser utilizado de modo sistemático pelos governantes como forma rápida de atingir “as massas”. É, sem dúvida, uma apropriação ideológica condenável, mas isso não quer dizer que seja esta sua única dimensão sócio-política, ao contrario: ainda que não se bastando por si só, o futebol continuou (e continua) a ser uma forma de setores excluídos da nossa sociedade conquistarem o acesso a bens e a direitos que lhes são comumente vedados – dos quais o primeiro talvez seja o direito a se sentirem brasileiros.22

    São por esses entre outros fatos, que o pior cego é aquele que só vê a bola.

Notas

  1. WITTER, José Sebastião. Para que serve o futebol: In WITTER, José Sebastião & MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Futebol e cultura: coletânea de estudos. São Paulo: Imprensa oficial: Arquivo do Estado, 1982, p. 11.

  2. PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma historia social do futebol do Rio de Janeiro, 1902 – 1938. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000.

  3. WITTER, José Sebastião. Para que serve o futebol: In WITTER, José Sebastião. op. cit., p. 23-4.

  4. PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda., op. cit., p.21

  5. Idem, p.87.

  6. Idem, p.58.

  7. FILHO, Mario. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro. Mauad, p. 48.

  8. PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda., op. cit., p.37.

  9. Idem, p.37.

  10. FILHO, Mario. op. cit., p. 50.

  11. Idem.

  12. Idem.

  13. LEVINE, Robert M. Esporte e sociedade: o caso do futebol brasileiro. p. 25.

  14. Idem, p. 26.

  15. Idem.

  16. FRANZINI, Fábio. Corações na ponta da chuteira. São Paulo. DP&A, p. 51-2.

  17. FILHO, Mario. op. cit., p. 13.

  18. FILHO, Mario, op. cit., p. 120

  19. SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1992

  20. MANHÃES, Eduardo Dias. Política de esportes no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p.31.

  21. VIANNA, Luis Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. p.213.

  22. FRANZINI, Fábio. op. cit., p. 51-2.

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