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O futebol é feminino. O ‘jogo’, masculino: ‘um pouco’ da trajetória das mulheres baianas no processo de valorização do esporte

The soccer is feminine. The ‘game’, masculine: ‘a little’ of the trajectory
of the bahian women in the process of valuation of the sport

 

*Professora de Educação Física, Mestranda em Educação pelo PPGE da Faculdade de Educação da Universidade
Federal da Bahia. Grupo de Pesquisa HCEL, História da Cultura Corporal, Educação, Sociedade

**Profª Drª pesquisadora do PPGE da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia.
Líder do HCEL, História da Cultura Corporal, Educação, Sociedade.

Graduada em Educação Física. Mestrado e Doutorado em Educação Física pela Universidade Gama Filho-RJ

Anália de Jesus Moreira*

nanamoreiraam@hotmail.com

Maria Cecília de Paula Silva**

cecilipaula@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

Resumo

          O Futebol no Brasil conserva-se androcêntrico. Parto da constatação de que apesar das boas apresentações em competições internacionais, entre elas a conquista de medalhas de ouro pela seleção feminina nos jogos Pan-americanos de Santo Domingo (2003) e do Rio de Janeiro (2007) e a recente conquista de medalha de prata nos jogos Olímpicos de Pequim, o incentivo esportivo dirigido à categoria de mulheres continua subalternizado culturalmente e economicamente. Um dos argumentos que mais influenciam o preconceito está na leitura da biologia sobre a suposta fragilidade física e natureza materna da mulher. Desta forma no Brasil, o futebol é sexualizado. Desvelar essa face do machismo possibilita compreender que ao “calçar as chuteiras”, as mulheres do Brasil transgrediram uma das áreas de maior representação do papel masculino e que traduz o espaço público como “do homem”: os campos de futebol. E assim, trocando os saltos por birros, as mulheres botaram os dois pés na rua, impondo ao mundo masculino do futebol momentos de rara igualdade de papeis proporcionados pela técnica e pela ginga porquanto sejam sem sexo estes fatores. Na década de 80, a performance de mulheres baianas foi decisiva para a valorização do futebol feminino em nível mundial e no Brasil. Mas há pouca memória. Enquanto no futebol masculino, os astros que “penduraram as chuteiras” são imortalizados pela mídia e pelos órgãos de fomento sob o pretexto de construir memória, às mulheres cabe o anonimato e a marginalização. Destarte, deixamos de reconhecer que as mulheres trabalhadoras, majoritariamente negras e de periferia, ajudaram a construir através do futebol, uma história de enfrentamento e superação.

          Unitermos: Futebol. Feminino. Gênero. História. Esporte.

 

Abstract

          The Football in Brazil seems to continue even take issue stated in androcentric empowerment. Our assertion part from the fact that despite the good showings in international competitions, including the conquest of the selection of gold medals in women's Pan American Games in Santo Domingo (2003) and Rio de Janeiro (2007) and the recent conquest of medal silver in the Olympic games in Beijing, promoting sports for the category of women continues subalternizado culturally and economically. One of the arguments most influencers of prejudice is linked to the reading of biology on the alleged physical fragility and maternal nature of women. Thus in Brazil, football is sexualizado. Desvelar face of machismo that allows wedge to understand that the soccer shoes, women in Brazil rebellious one of the largest representation of the male role and that reflects the public space as "the man": the football fields. Thus, by changing the jumps birros, women botaram both feet on the street, requiring the male world of football rare moments of social equality offered by technical and the ginga how these factors are without sex. In the 80, the performance of women was baianas fundante for the enhancement of female football in world and Brazil. But there is little memory. While men in football, many of which "hung the soccer shoes" are imortalizados by the media and the bodies of promotion on the pretext of building memory, for women it is the anonymity and marginalisation. Thus, we leave to recognize that women workers, mostly black and suburbs, helped to build through football, a history of confrontation and overrun.

          Keywords: Football. Women. Gender. History. Sports.

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 13 - N° 124 - Setiembre de 2008

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1.     Introdução

    O Futebol no Brasil conserva-se androcêntrico. Parto da constatação de que apesar da boa performance em competições internacionais, entre elas a conquista de medalhas de ouro pela seleção feminina nos jogos Pan-americanos de Santo Domingo (2003) e do Rio de Janeiro (2007) e a recente conquista de medalha de prata nos jogos Olímpicos de Pequim, o incentivo esportivo dirigido à categoria de mulheres continua subalternizado culturalmente e economicamente.

    Em países como a Alemanha, Estados Unidos, China e Japão, onde o preconceito contra as mulheres do futebol é mais brando, há garantias de pelo menos a manutenção de ligas de futebol feminino, bons salários e a prática democratizada no espaço escolar e nos clubes. No Brasil a realidade é o desemprego, o desrespeito e o descaso. Não há campeonatos regulares nem organizações de ligas, portanto, não há mobilidade do esporte em nível educativo e cultural. A baixa visibilidade contribui para a pouca memória social sobre a presença feminina nos campos de futebol.

    Um dos argumentos que mais influenciam o preconceito é a leitura da biologia sobre a suposta fragilidade física e natureza materna da mulher. Desta forma no Brasil, o futebol é sexualizado. Desvelar essa face do machismo possibilita compreender que ao ‘calçar as chuteiras’, as mulheres do Brasil transgrediram uma das áreas de maior representação do papel masculino e que traduz o espaço público como ‘do homem’: os campos de futebol. E assim, ‘descendo do salto’, as mulheres botaram os dois pés na rua, e impuseram ao mundo masculino do futebol momentos de rara igualdade de papeis proporcionados pela técnica e pela ginga porquanto estes fatores independam de sexo.

    Na década de 80, a performance de mulheres baianas foi decisiva para a valorização do futebol feminino em nível mundial e no Brasil. Mas há pouca memória. Enquanto no futebol masculino, os astros que ‘penduraram as chuteiras’ são imortalizados pela mídia e pelos órgãos de fomento sob o pretexto de construir memória, às mulheres cabe o anonimato e a marginalização. Assim, parece estranho dizer que a baiana Sisleide Lima do Amor, (Sissi), tenha sido por duas ocasiões, (2001-2002) considerada a segunda melhor jogadora do mundo e que a primeira seleção brasileira formada em 1989, tinha oito jogadoras da Bahia convocadas, seis das quais titulares. Destarte, deixamos de reconhecer que as mulheres trabalhadoras, majoritariamente negras e de periferia, ajudaram a construir através do futebol, uma história de enfrentamento e superação da lógica do privilégio masculino.

    Neste artigo destacamos a importância mulheres baianas no processo de reconhecimento do futebol feminino, ainda que este reconhecimento não se traduza visibilidade política e em igualdades de salários com os homens. Através de uma análise sobre a história do esporte feminino, a fisiologia do corpo feminino e as qualidades exigidas para a prática do futebol, ousamos afirmar que o futebol é feminino e que o “jogo” no Brasil é masculino.

2.     O “jogo” é masculino

    No Brasil, se falarmos em ‘pé’ de igualdade entre homens e mulheres do futebol, estaremos cometendo falácias. Parto do ponto de que já sepultamos a suposta inapetência técnica da mulher. Refiro-me, portanto, ao ideário construído historicamente sobre as possibilidades e limites do corpo feminino na prática do futebol. Chegamos a esta pontuação analisando brevemente a escrita do corpo feminino e masculino ao longo dos tempos.

    Desde o episódio mitológico de Adão e Eva, o corpo feminino é destacado como coadjuvante e apêndice do masculino, no tempo e no espaço. Na história antiga, as representações do corpo partiam de uma posição hierárquica e imóvel. No Egito Antigo, a imagem mitológica de Ozires se compunha na necessidade de imortalidade e sacralização. O corpo da mulher (Ísis) neste contexto é invisibilizado pela opulência do poder masculino. Tornou-se desta forma a deusa-do-lar.

    Na Grécia Antiga, tivemos a inauguração do corpo estético, educado para o culto do espírito, e da intelectualidade como signos masculinos. Do lado Romano, o corpo aparece sem sentido em si, porto da alma, disposto na hegemonia do cristianismo. O corpo da mulher romana era, portanto, a reserva de sacralidade, natureza e negação.

    o corpo na Grécia antiga, era visto como elemento de glorificação e de interesse do Estado. O corpo era valorizado pela sua capacidade atlética, sua saúde e fertilidade. Em Esparta, atividades corporais recebiam um lugar de destaque na educação de jovens, que buscavam um corpo saudável e fértil. Já em Atenas, no modo de educação corporal, prevalecia o ideal de ser humano belo e bom. Nas demais cidades Gregas, a atividade corporal, encontrava-se em torno dos Jogos Olímpicos. Porém as atividades corporais das classes menos favorecidas, tinham como objetivo, a preparação para a guerra. (Paim, Strey, 2004. p.1)

    Na música “Mulheres de Atenas”, o compositor Chico Buarque destaca o corpo feminino na sociedade como mero objeto do desejo e do serviço do homem: “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas/Elas não tem gosto ou vontade/Nem defeito, nem qualidade/Têm medo apenas”.

    No Renascimento, o corpo tanto masculino quanto o feminino assumiu uma nova dimensão, a da beleza e da fragilidade, retratados nas obras de Michelangelo e Da Vinci. Na revolução científica, o cartesianismo recorta o corpo: a)corpo e mente: ”penso, logo existo” b)corpo público X corpo privado. Nesta segunda perspectiva, o corpo público é reiterado na posição androcêntrica. O corpo feminino é enclausurado e naturalizado. Na pós-modernidade, o corpo se assume multifacetado, comportado em fragmentos. Em termos de estatuto cultural, o corpo masculino se firma como supremo nas relações de gênero, e o da mulher como corpo consumido e consumidor. É neste modelo de corpo que começou a ser construída a história mais recente do futebol feminino. Conforme Maria Cecília de Paula Silva, (2002) este modelo culturalmente deve ser “Frágil e soberano, abnegado e vigilante”:

    elaborado desde meados do século XIX, que pregava novas formas de comportamentoe de etiqueta tanto para as moças das famílias mais abastadas como as das classes trabalhadoras, exaltando as virtudes burguesas da laboriosidade, da castidade e do esforço individual. Os corpos femininos, naquele momento, exaltavam características femininas – tais como a ternura, o amor, o afago, entre outros56 com preocupações estéticas, além da representação simbólica do corpo feminino reprodutor e a preocupação em melhorá-lo (p. 25).

    As antíteses deste corpo descrito por Paula Silva, assumiram no futebol feminino conotações pejorativas agressivas:‘Maria Sapatão’, ‘moleque-macho’, ‘perna-de-pau’. São algumas das expressões presentes na memória de muitas jogadoras. Tais exclamações estão associadas a pouca “cultura” das mulheres no futebol e, por conseguinte a sua baixa aptidão para uma performance igualitária com os homens. Tal visão tem forte apoio na leitura de que a biologia e fisiologia do corpo feminino, porquanto determinantes, se constituem em antagonismos para uma prática legitima do esporte.

    O senso comum se apóia principalmente na delicadeza estética da mulher, associada principalmente a simbologia dos seios e a sua inerente tarefa reprodutora. Destaca ainda a vocação da mulher para o espaço privado. Tais afirmações têm ligações estreitas com os paradigmas da educação brasileira e o contexto cultural e simbólico da sociedade.

    No século XX, o corpo feminino é visto como portador dos “bons costumes”, da exigência de “moça de família” (ROCHA LIMA, 2001). Por tais considerações os primeiros modelos instituídos de Educação Física vetavam o corpo feminino na prática desportiva.

    Segundo os “bons costumes” da época, a decência da “moça de família” era vista pelo vestir, além do peso do sobrenome da família. Até então, moças recatadas não tinham direito de suar em público, mostrar o cabelo assanhado e afazer exercícios, pois estes eram considerados atividades apropriada aos homens, sendo parte integrante dos símbolos de sua virilidade, robustez e força” (ROCHA LIMA, p.1, 2001).

    Na era higienista, início do século XX, o ideário de corpo feminino passou a integrar as políticas de “regeneração da raça” cujos pilares foram evidenciados nas concepções de supremacia do corpo masculino e branco. Por extensão, o corpo da mulher passou a ser exigido na tarefa de perpetuação da espécie eugênica e manutenção das famílias: “Mulheres fortes e sadias teriam mais condições de gerarem filhos saudáveis os quais, por sua vez, estariam mais aptos a defenderem e construírem a Pátria” (Castellani, 1994:56).

    O pensamento do pedagogo Fernando de Azevedo, membro da sociedade eugênica de São Paulo balizou o papel da Educação Física na modelação dos corpos femininos, dentro e fora da escola.”Tem como um de seis intuitos primaciais desenvolver, por meio da higiene e trabalhos de campo, corpos sadios e bem trabalhados, nervos postos à prova para a realização do propósito do amor e do papel bio-educativo que lhes está destinado. (Soares, 1994:147). Sob o prisma da inferioridade biológica e da diferença desigual, o corpo feminino resiste. A separação de sexo ainda é, via de regra, um dos grandes impedimentos para uma posição igualitária da mulher nos esportes”.

    A construção cultural do corpo feminino como decorrência de um fato social revela o processo da dominação e adestramento dos instintos sexuais do individuo, que vem se mantendo ainda nos dias de hoje, como conseqüência induz o homem a viver sobre a marca de estereótipos sociais e sobre modelos de comportamento previamente estabelecidos pela sociedade. (ROCHA LIMA, p. 5, 2001)

    Sendo a identidade feminina fragmentada, sua transgressão através da prática do futebol encontra a resistência masculina. Por não dispor de grande memória, o futebol feminino pode ser considerado um sub-futebol ou um outro ‘jogo’, uma categoria inferior segundo o senso comum, a mídia e autoridades esportivas.

3.     O futebol é feminino

    Talvez devêssemos adotar a posição ‘politicamente correta’ e dizer que o futebol também é feminino, preferimos, no entanto, contrapor de uma forma mais provocante. Começo com a famosa frase de Simone de Beauvoir (1987, p. 9) (...) não se nasce mulher, torna-se mulher”. Nossa primeira consideração parte justamente da construção cultural da identidade feminina, historicamente fragmentada e biologizada. Assim, entramos na discussão sobre a relação de poder entre os sexos, seus papeis e lugares sociais e culturais. Falamos de gênero.

    Mulheres e homens constroem, dessa forma, suas identidades, acreditando serem pertinentes ao seu gênero todos os dispositivos que lhes são impostos e conseqüentemente, aprendidos. Mas por ser muito sutil o poder que permeia as relações entre os gêneros, nem sempre é percebido como fenômeno de dominação e, por isso, encontra-se tão enraizado e vem se perpetuando nas sociedades. (FAGUNDES. p. 151, 2005)

    A dominação masculina nos campos da atividade física, Educação Física escolar e cultura esportiva pode ser contada como fator que atrasa a afirmação da mulher no futebol. O mesmo fenômeno é menos eficaz em esportes onde a virilidade masculina não é tão exigida, a exemplo do vôley, natação, e tênis. Estes esportes, cronologicamente assumiram as primeiras posições na história atlética feminina. A primeira mulher sul-americana a competir em jogos olímpicos foi a nadadora Maria Lenk, jogos de Los Angeles em 1932. A primeira medalha de ouro em esportes individuais femininos foi conquistada recentemente pela saltadora Maurren Maggi nos jogos de Pequim.Vale lembrar que os jogos olímpicos da Era Moderna foram iniciados em 1896, na Grécia, sendo que a participação feminina era restrita a corrida de cavalos.

    No Brasil o primeiro jogo de futebol para mulheres aconteceu em 1913, 17 anos depois da realização da primeira partida internacional de futebol feminino entre as seleções da Inglaterra e Escócia. No jogo brasileiro homens fantasiados de mulher completaram um dos times devido à ausência de competidoras, a maioria senhoras da sociedade paulistana. Em junho de 1921, imprensa noticiou uma partida entre o Tremembé Futebol Clube e Senhoritas Catarinenses, mas ainda não se tem confirmação sobre a ‘veracidade ou fantasia do jogo’ vez que foi realizado às vésperas do feriado de São Pedro, uma data de grande comemoração e festa.

    Na década de 40, o futebol feminino praticamente foi erradicado, proibido inclusive no Brasil sob a alegação de provocar prejuízos à saúde da mulher. Desta forma até pelo menos a década de 60, somente vedetes, modelos e atrizes simulavam jogos de futebol. Finalmente em 1970, a categoria feminina no futebol foi reconhecida pelo Conselho Nacional de Desportos, CND. O órgão foi acossado por outros países especialmente Estados Unidos e Alemanha, nações que atualmente dividem com o Brasil a hegemonia internacional no esporte.

    Na escola brasileira, o futebol para mulheres assumia até a década de 80, importância de complementaridade, perdendo em preferência pedagógica para a brincadeira de baleado e ginástica, atividades consideradas mais femininas. Tais experiências foram apoiadas pela face sexista do percurso epistemológico da Educação Física.

    No final da década de 80, a FIFA, Federação Internacional de Futebol pensou em tornar oficial o futebol das mulheres. Em 1991, foi realizada na cidade de Guangzou, na China, a primeira Copa Experimental de Futebol Feminino. Uma baiana, Sisleide Lima do Amor (Sissi) ficou entre as três melhores atletas da competição, embora o Brasil não tenha obtido uma boa colocação. Em 1991, aconteceu o primeiro Campeonato Sul Americano em Maringá-PR, com outras edições em 1995, em Uberlândia-MG e 2003 em Mar Del Prata-ARG. O Brasil é tricampeão continental.

    Já foram realizadas quatro copas do mundo, sendo que o Brasil nunca ganhou esta competição. Nas duas edições Olímpicas, o Brasil ficou em medalha de prata: 2004, em Athenas e 2008, em Pequim. As brasileiras mantêm hegemonia intercontinental, são bi-campeãs do torneio Pan americano (Santo Domingo, 2003 e Rio de Janeiro, 2007). A oficialização do futebol feminino nas décadas de 80 e 90 provocou um verdadeiro ‘boom’. Mulheres de todas as classes sociais colocaram os pés fora do espaço privado. A luta a partir de então seria pela quebra de preconceito.

    O número de mulheres brasileiras que hoje praticam o futebol em clubes e área de lazer aumentou na década anterior. Porém, os campeonatos regionais são poucos, não há evento de porte nacional, numero considerável de mulheres nas comissões técnicas dos clubes de futebol feminino, nem nas entidades que regem este esporte. Além disso, vários preconceitos e estereótipos ainda cercam a prática da modalidade, tais como a associação de sua imagem à homossexualidade ou os perigos de choque nos órgãos de função reprodutiva. (GOELLNER, 2005).

    O que se diz sobre a constituição biológica e fisiológica do corpo da mulher constrói os principais tabus do futebol feminino. Trata-se de um discurso inferiorizante por via da naturalização do corpo feminino e de seus papeis na sociedade. Revelo minha suspeita de que as críticas a suposta masculinização do corpo feminino através do futebol atende a uma perversa manifestação do machismo, engrendrado e disseminado inclusive pela mídia.

    Assim, desconfio da maneira ‘peculiar’ adotada por alguns jornalistas televisivos nas narrativas de jogos femininos em Pequim, quando tentaram atribuir a erros eminentemente técnicos ou táticos ao suposto desequilíbrio natural das mulheres. É a sexualização do esporte. Como disse Teresa Fagundes, “a sexualidade se realiza na corporeidade em completa sintonia com o psiquismo. A sexualidade compreende, também, aspectos ligados à emoção, aos sentimentos e conflitos” (p.156).Esta dimensão segundo a autora, associa-se às representações do social, do histórico e do cultural: “a sexualidade ganha a feição do contexto cultural em que se insere, plasmada pela linguagem, normas e valores vigentes nas sociedades, em diferentes épocas”. (idem, p.157).Assim, as atletas que representam esportes “menos masculinos ou, generalizados, como o voley de quadra e voley de praia, são aclamadas ”musas” do esporte. Para as mulheres do futebol que não se importam em trajar uniformes semelhantes aos dos homens, restam as comparações pejorativas. Desta forma, Marta eleita por duas vezes a melhor jogadora do mundo, passou a ser mais conhecida como a ‘Pelé do futebol’.E tantas outras, sobrevivem graças a apelidos ou comparações do estilo de jogo com personalidades masculinas.

    Foi assim que a jogadora Hortência do basquete teve seu potencial técnico diminuído ao ser chamada algumas vezes de a ‘Oscar de saias’ e Paula, outra grande jogadora, herdou o apelido de ‘Magic’ do americano Magic Johnson. No esporte, quando a comparação entre homens e mulheres obedece a uma ordem, esta favorece o masculino. A mulher é sempre a imitadora, a menos original, a ’ costela de Adão ‘.

    Assim, não precisamos de tanto esforço para compreender que as cestas geniais de Hortência e Paula, os dribles, passes e gols impressionantes de Marta, a cadência e a percepção espacial de Formiga, os chutes e cabeçadas de Cristiane, não podem ser sexualizados, vez que são qualidades técnicas e táticas, ou seja, aquisições e apreensões humanas. Arrisco-me a conjecturar sobre as possibilidades financeiras e de reconhecimento público a partir do potencial técnico de Marta numa projeção de que ‘fosse Marta um homem e não uma mulher’. Também aceito provas que a técnica de Marta é inferior a de Ronaldo ou Alexandre Pato, observando-se as diferenciações e proporções de força e velocidade do exemplar masculino, e sua equalização categorizada: homens jogam com homens, mulheres com mulheres, juniores com juniores, etc.

    Assim posso concluir que a qualidade técnica (habilidade específica) não pode ser mensurada a partir do sexo de quem a detém. O parâmetro que coloca Oscar acima de Hortência e, Ronaldo acima de Marta é o cultural androcêntrico.”Os princípios fundamentais da visão androcêntrica do mundo são naturalizados sob a forma de posições e de disposições elementares do corpo que são percebidas como expressões naturais de tendências naturais”. (Bourdieu, 1995: 156-157).

    Nas escolas e clubes ainda se ouvem coisas como “o futebol masculiniza, machuca os seios, tonifica exageradamente as pernas das mulheres”. Não obstante ser uma opção de cada um, masculinizar ou feminilizar seu corpo, atento para o fato de que na prática do futebol e outros esportes não se exigem apenas a força dos músculos, e sim uma sintonia da constituição total corpórea qual seja ela física, psíquica, técnica, emocional e cultural. A desculpa da fragilidade das mamas objetiva principalmente a atingir o elemento simbólico da naturalidade da mulher para a perpetuação da espécie: sua função de amamentar.

    Um corpo delicado não poderia ser submetido a esforços intensos, do mesmo modo que o trabalho da força não lhe era indicado, sob a pena de tornar-lhe a aparência masculina. “Se no homem uma musculatura hipertrofiada é considerada como atrativo sexual, de maneira alguma na mulher pode ser considerada como encanto físico” (BALLARINY, 1940: 52, apud PACHECO, 1998).

    Diante de tais constatações, faço, pois algumas provocações: 

  1. para nadar, correr, jogar basquete, voley, lançar dardos, dançar, fazer ginástica, trabalhar em obras da construção civil, dirigir ônibus, carregar filhos, compras de supermercados, arar a terra, etc, a mulher precisa “destarrachar os peitos? Por que, então os seios atrapalhariam tanto a prática do futebol?”; 

  2. Alguém contou quantas vezes um homem “aparou uma bola no peito” durante uma partida e verificou a proporção desta jogada ao uso dos pés? Por que seria diferente com as mulheres?

    Observo ainda que consensualmente consideramos os testículos como a “parte mais sensível do corpo masculino”. Estes podem ser descritos anatomicamente como “órgãos reprodutores, de fina enervação, que tem uma forma pendular, sujeito a oscilações regulares”. A grande importância do testículo neste comentário refere-se a sua localização: entre os membros inferiores, região conhecida como pélvis. Em termos biomecânicos são os membros inferiores os mais exigidos na pratica do futebol. Ao que me consta não se cogita a possibilidade dos homens deixarem seus testículos em casa quando forem jogar futebol, ou andar a cavalo. Portanto, o “mito dos peitos” não pode mais se constituir em justificativa para colocar a mulher em situação técnica inferior ao homem.

4.     “um pouco” da trajetória das mulheres baianas no processo de valorização do esporte

    Inicio este último ponto fazendo uma reparação: tratarei aqui do “pouco” e não de “um pouco” da trajetória das mulheres baianas no processo de valorização do futebol. A articulação literária que farei a seguir está apoiada na memória e no meu acervo imagético e documental particular, vez que fiz parte de uma geração fundamental do futebol feminino da Bahia, geração esta que antecedeu a atual “Era Marta”. Digo que é o “pouco”, porque a pesquisa sobre o tema é incipiente tanto por via da imprensa quanto em termos documentais e acadêmicos. As pistas são carentes de sistematização. Portanto, fatos narrados aqui podem perecer de exatidão temporal, porque não disponho de todas as datas em que os fatos foram produzidos e vivenciados. O recorte que farei é bastante fresco e parte do ano de 1980 até os nossos dias.

    O primeiro campeonato de Futebol Feminino foi realizado no ano de 1984 tendo a equipe do Clube Bahiano de Tênis como campeã e o Clube Flamengo de Feira de Santana como vice. Jogava no Bahiano de Tênis aquela que considero o marco ou a inspiração para a geração subseqüente do futebol feminino. Maria Helena Nova, ostentava fama de ídala do esporte e arrebatava elogios pela alta técnica. O Bahiano era formado por jogadoras oriundas de classe média-alta. Além de Helena, atuavam também, a tenista Tânia Meireles e a professora de Educação Física, Solange. Os tipos eram muito parecidos: jogadoras altas, de pele mais clara, com raríssimas componentes negras. Em contraponto, o Flamengo de Feira, vice-campeão era formado por mulheres da própria cidade e região, levadas para o clube após as “peneiras” promovidas pelo dono e treinador do time Michelin. Outro adversário forte do Bahiano era o Clube Ypiranga, formado por mulheres da periferia do bairro, a maioria negra. A hegemonia do Bahiano durou até a descoberta pelo Flamengo, de jogadoras como Sissi, Doralice e Nalvinha, oriundas de outras cidades do interior.

    Em 1986, o Flamengo ganhou seu primeiro campeonato. No ano seguinte, o campeonato passou a ser organizado pela TV Itapoã que transmitia alguns jogos aos domingos para todo o estado, com grande audiência. Abertura do campeonato levou 65 mil pessoas ao estádio da Fonte Nova. 48 times de vários municípios foram inscritos, obrigando a organização do evento a realizar zonais eliminatórias. Em Salvador existiam 13 clubes, entre eles o Ypiranga e o Esporte Clube Bahia. No interior, surgiram equipes como Catuense Itabuna e Coaraci, times que contribuíram para pulverizar o esporte. Com a realização de competições também de Futsal feminino, outras ídalas apareceram. São memoráveis os nomes de Flor-de Liz, Conceição Brown, Susi Bitencourt,Tereza Adílio, Norma Mamede. Com tantos clubes, foi preciso expandir os jogos para os campos de várzea e clubes de periferia. Várias partidas aconteceram no clube do Tejo, no IAPI, estádios de Itapuã e Periperi, Vila Canária, campo do Galícia. O futebol feminino assumia seu perfil: era praticado por mulheres trabalhadoras, de maioria negra, moradoras da periferia. No mesmo ano, os clubes foram cedendo seu espaço e assim, as jogadoras puderam pisar em gramados antes só desfrutados pelos homens: os campos do Galícia, do Ypiranga, da Associação Atlética e o Fazendão, do Esporte Clube Bahia e a Fonte Nova.

    Outros dois campeonatos foram ainda organizados pela empresa de comunicação, até o futebol feminino ser chancelado pela Associação de Futebol Feminino em 1989. Com o anúncio de que se pretendia realizar campeonatos em vários estados tendo em vista a formação de uma seleção brasileira, alguns clubes de futebol profissional começaram a se interessar pela categoria feminina. Assim o Bahia desmantelou o Flamengo de Feira, o Ypiranga e a Catuense e montou com jogadoras destas agremiações um supertime que foi campeão invicto por 3 anos consecutivos e representante do estado em competições nacionais. A visibilidade dada pelo clube valeu em 1991 a convocação de metade do time baiano, nada menos do que seis jogadoras, para a seleção brasileira. Outras quatro baianas de times diversos foram chamadas a testes em Teresópolis-RJ, centro de treinamento da CBF, a maioria não retornou a Salvador.

    As jogadoras foram contratadas por clubes como o Radar, do Rio de Janeiro, o Palmeiras, SAAD e Corithians de São Paulo. Seis baianas: Sisi, Flor-de-liz, Solange, Doralice, Nalvinha e Susi viajaram para participar da primeira copa do mundo na China. A exceção de flor-de Liz, centroavante, as cinco baianas foram titulares. O Brasil ficou em nono lugar.

    O sucesso das baianas inspirou centenas de meninas a calcaçarem chuteiras ou tênis. Foi o começou da marcação da Bahia como ‘estado-celeiro’ do futebol feminino do Brasil. A febre do esporte invadiu as escolas básicas e as universidades. A facilidade de saída das jogadoras desestimulou os clubes a continuar com a categoria. Sem poder negociar passes das jogadoras nos moldes do “busines” masculino, os grandes clubes foram perdendo o interesse pelas competições. Ainda assim, saíram da periferia as jogadoras Formiga e Elaine que integram hoje a seleção feminina.

    Afirmo que a realidade do futebol feminino na Bahia é decadente. Apesar de a Federação Bahiana de Futebol assumir a tutela de uma copa anual, de curta duração, o número de clubes relativamente pequeno, tira o atrativo das competições. O clube mais saliente hoje é o São Francisco do Conde, formado por jogadoras de Salvador e da própria cidade. Está a seis anos sem perder um campeonato. Ainda assim, algumas jogadoras têm conseguido sair do estado em busca de contratos e projeções. É o caso de da lateral Elaine que joga no Futebol da Suíça e de Miraildes Formiga que atua em São Paulo. Algumas jogadoras aceitam “empreitadas” para participar de campeonatos em outros estados do país ou paises estrangeiros. Nada que lhes garanta conforto financeiro.

    A situação itinerante das jogadoras se deve a não profissionalização do esporte no Brasil. Sem direito ao passe, os clubes profissionais recusam propostas para estruturar divisões de base com vistas ao crescimento do esporte. Sem o passe, não há mercado e em conseqüência disso, a mais-valia no futebol feminino perde consistência. O esporte comunitário ainda é o mantenedor da fábrica do futebol feminino.

    Com tantas mazelas, há que se perguntar: a que se deve o crescimento da seleção brasileira feminina nos últimos eventos internacionais? A performance da seleção se deve principalmente a experiência de algumas jogadoras que atuam no exterior. Estas jogadoras experimentam uma forte rotina de competições, o que lhes garante boa performance individual e coletiva, panorama que não acontece no Brasil. Um outro fator é a disposição da Confederação Brasileira de Futebol em garantir apoio para manutenção das categorias sub 17 e adulta, usando como critério de seleção os poucos eventos esportivos dos estados. A CBF dispõe hoje de bons “olheiros das mulheres”.

    O Brasil acabou de perder a medalha de ouro nos jogos Olímpicos de Pequim. Atribuo a perda do ouro à imprevisibilidade desportiva em alto rendimento, porque o desempenho do Brasil frente à Alemanha foi impressionante em técnica, vontade e determinação. Ao final da partida, além do choro que se tornou uma rotina em copas do mundo e jogos olímpicos para as brasileiras, as meninas demonstravam incertezas quanto ao futuro. Grande parte delas, a exceção das que jogam no exterior e se constituem em minoria, retornou ao Brasil com medalha de prata e sem garantia de emprego e renda.

    Da geração, 1980-2000, quase todas penduraram as chuteiras. A única bem sucedida no futebol de que temos notícias é Sissi. Completados 40 anos, Sissi ainda joga num grande clube de uma Universidade da Califórnia-EUA. A baiana revelou recentemente o desejo de tornar-se treinadora da Seleção Feminina, um feito que seria inédito na história do Futebol Feminino do Brasil. A seleção nunca foi treinada por uma mulher.

Referências

  • BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. São Paulo: nova fronteira, 1980.

  • BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Educação e Realidade. 20(2): 133-184, jul./dez., 1995.

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