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As práticas corporais na cultura escolar: a estrutura do contexto e a construção de significados

 

Licenciada em Ed. Física pela Universidade do Oeste de Santa Catarina - UNOESC/SMO.
Especialista em Educação Física Escolar pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM.
Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação/CE/UFSM.

Andréia Paula Basei

andreiabasei@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

Resumo

          O espaço escolar, com seus rituais, normas e estruturas privilegia ou desenvolve algumas representações em torno do corpo em movimento de seus alunos que muito tem a ver com o que historicamente constitui-se sobre sua expressão. Mas até onde essa expressão é espontânea? Será que ela representa mesmo o que o sujeito está passando no momento? Será o contexto escolar um espaço que privilegia essas representações? Ou será que a escola esta fazendo com que os alunos in(corpo)rem papéis sociais e relações de poder que farão parte do seu mundo quando adultos? Partindo dessas indagações, objetivamos refletir sobre o espaço escolar e as práticas corporais que o permeiam e como estão agindo na modelagem do corpo dos sujeitos segundo os significados sociais atribuídos a ele.

          Unitermos: Cultura escolar. Educação Física escolar. Práticas corporais. Sentido / significado do movimentar-se.

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 13 - N° 121 - Junio de 2008

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Introdução

    Falar sobre práticas corporais em âmbito escolar, num primeiro momento nos remete a aula de Educação Física como um espaço de referência. No entanto, existe a necessidade de ampliarmos nossa visão, pois somos corpo em todos os momentos, estamos sempre sendo, fazendo e pensando enquanto um ser corpóreo. O corpo é a condição de existência no homem no mundo e as práticas corporais são sua forma máxima de expressão de desejos, necessidades, emoções, conflitos e, por que não, de pertencimento e identificação a um determinado grupo social e sua cultura identitária. Para tanto, salientamos que ao falarmos em práticas corporais, não estamos pressupondo que existem práticas que não sejam corporais, que existe a possibilidade de separar o movimento do pensamento, mas muito além disso, queremos reforçar a unicidade do ser humano ao movimentar-se.

    Ao tratarmos do espaço escolar, esse entendimento precisa fazer parte do “repertório” dos professores que ao veicularem concepções, valores, crenças e atitudes a partir de suas ações, estão colaborando na formação dos sujeitos – alunos – e na sua construção como docentes. Construção esta, que estará vinculada a cultura escolar e as representações que os professores e alunos possuem. Balizando essas representações em torno do corpo, percebemos que elas podem indicar uma in(corpo)ração de símbolos e sentidos produzidos socialmente e transmitidos historicamente no interior da cultura modelando os corpos dos sujeitos conforme suas regras, normas e referências disciplinares.

    O espaço escolar, com seus rituais, normas e estruturas privilegia ou desenvolve algumas representações em torno do corpo em movimento de seus alunos que muito tem a ver com o que historicamente constitui-se sobre sua expressão, como a dualidade cartesiana, como um corpo alienado ao trabalho e, agora, pensamos em um corpo como expressão do ser no mundo. Mas até onde essa expressão é espontânea? Será que ela representa mesmo o que o sujeito está passando no momento? Será o contexto escolar um espaço que privilegia essas representações? Ou será que a escola esta fazendo com que os alunos in(corpo)rem papéis sociais e relações de poder que farão parte do seu mundo quando adultos?

    Partindo dessas indagações é que surgiu a motivação e necessidade por escrever este ensaio. Objetivamos assim refletir sobre o espaço escolar e as práticas corporais que o permeiam e como estão agindo na modelagem do corpo dos sujeitos segundo os significados sociais atribuídos a ele. Nossas reflexões estão baseadas, prioritariamente, pela referência a dois espaços escolares, observados durante a realização do estágio curricular no curso de graduação em uma escola da rede pública estadual de ensino: a aula de Educação Física, escolha justificado pela nossa formação na área e por tratar da cultura do movimento enquanto base e fundamentação para os seus conteúdos e, o recreio escolar, por se caracterizar como um espaço diferenciado, que “possibilita” aos alunos “expressarem-se livremente” diante das situações vivenciadas.

Cultura e cultura escolar, ou será... culturas!

    O sentido e o significado atribuídos as ações nos levam a localizá-los dentro de um contexto e um tempo em que acontecem, necessidade esta, que nos reporta a idéia de cultura. De acordo com Geertz (1989, p. 56), partindo de uma perspectiva antropológica, “[...] a cultura é melhor vista não como complexos padrões concretos de comportamentos [...], mas como um conjunto de mecanismos de controle [...] para governar o comportamento”.

    Partindo desse conceito, entendemos a cultura escolar como expressão desse conjunto de mecanismos de controle da ação dos sujeitos dentro da instituição. Compartilhando essa idéia, Pérez Gómez (2001), traduz a cultura escolar como

    [...] o conjunto de significados e comportamentos que produzem a escola como instituição social, [...] os rituais e [inércias] que a escola estimula e se esforça em conservar e reproduzir, condicionam claramente o tipo de vida que nela se desenvolve e reforçam a vigência de valores, crenças e expectativas ligadas a vida social dos grupos que constituem a instituição escolar.

    A cultura escolar é uma das preocupações durante as discussões acerca da organização escolar, do currículo e do tratamento didático-pedagógico dado ao conteúdo. No entanto, considerando alguns acontecimentos na história da educação, dentre eles e de grande importância, o surgimento do paradigma científico, com suas bases afincadas no positivismo, a organização escolar acabou por criar uma cultura padronizada, disciplinadora dos sujeitos.

    Tradicionalmente a escola tem mantido o corpo sob controle em seu cotidiano, uma vez que, as suas diversas estratégias metodológicas regularmente apontam para o imobilismo, para a construção do conhecimento priorizando o aspecto cognitivo, pouco atento as expressões corporais e os movimentos construídos pelos alunos, que traduzem um conjunto acumulado de conhecimento e cultura.

    Candau (2000, p. 182) ao tratar dessa questão escreve que a escola, influenciada pela modernidade, “terminou por criar uma cultura escolar padronizada, ritualística, formal [...] que enfatiza processos de mera transferência de conhecimentos, quando esta de fato acontece, e está referida a cultura de determinados atores sociais”, produtores da cultura hegemônica e universal.

    Sobre essa questão trazemos as contribuições de Foucault (1987) ao tratar sobre a instituição escolar e seus sistemas e relações de poder. Conforme o autor, a sua organização espacial, o regulamento meticuloso que rege sua vida interior, as diferentes atividades aí organizadas, os diversos personagens que aí vivem e se encontram, cada um com uma função, um lugar, um rosto bem definido - tudo isto constitui um ‘bloco’ de capacidade-comunicação-poder. A atividade que assegura o aprendizado e a aquisição de aptidões ou tipos de comportamento aí se desenvolve através de todo um conjunto de comunicações reguladas (lições, questões e respostas, ordens, signos codificados de obediência, marcas diferentes do ‘valor’ de cada um e dos níveis de saber) e através de toda uma série de procedimentos de poder (enclausuramento, vigilância, recompensa e punição, hierarquia piramidal).

    Dessa forma, a escola enquanto instituição social auxilia na manutenção da hierarquia de poder, reforçando estruturas sociais, onde o corpo e suas manifestações através de movimentos, de certa forma, ameaçam o controle escolar com sua infinidade de expressões e possibilidades, promovendo o descontrole do rígido sistema da escola que geralmente se sustenta pela obediência de diversas regras construídas, por vezes, sem sentido e significado para os alunos.

    Essas características que definem a cultura escolar, se traduzem em um importante aspecto para uma reflexão crítica. Considerando que vivemos em uma sociedade amplamente diversificada culturalmente, que nos dificulta inclusive identificar, como indica Hall (2005), a identidade cultural de um sujeito devido a multiplicação dos sistemas de significação e representação cultural, a escola, inserido num contexto social mais amplo, não pode fechar os olhos para essa situação, simplesmente ignorando-a.

    Por isso a necessidade preconizada por Pérez Gómez (2001) de se considerar a escola como um espaço de cruzamento de culturas, cuja responsabilidade que a distingue das outras instituições é a mediação reflexiva das diferentes culturas existentes na sociedade.

    As práticas corporais como integrantes da cultura escolar, trazem inscritas as marcas de uma determinada cultura, que não devem, ou não deveriam ser homogeneizadas. Não deveriam porque a estrutura do contexto escolar em seus vários espaços, na sala de aula, na sala dos professores, no pátio, no recreio e na aula de Educação Física acaba por abarcar e ter sob controle o corpo dos sujeitos, modelando-os dentro dos padrões socialmente desejados.

    Dessa forma o corpo, entra num sistema de disciplinamento que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que esquadrinha, o desarticula e o recompõem. A disciplina fabrica assim, corpos submissos e exercitados, corpos dóceis (FOUCAULT, 1987, p. 127).

Espaços escolares e as práticas corporais: caracterizando e aula de educação física e o recreio

    O espaço escolar possui particularidades em relação a outros espaços sociais e, embora como parte de uma instituição social – escola – é influenciado e produzido por determinações histórico-culturais que ultrapassam os muros escolares. Para entendermos as manifestações simbólicas do meio escolar, portanto, devemos considerá-lo dentro de um contexto mais amplo.

    É através desses espaços de ação e de construção de relações e significados que o sujeito se desenvolve socialmente. O espaço escolar é responsável por grande parte da formação da personalidade e identidade dos sujeitos. No entanto, ao ingressarem na escola, estes se deparam com espaços diversificados e que possuem características, de certa forma, antagônicas, pois provocam estados de interação que podem ser considerados como opressores, exigindo silêncio, disciplina e postura dos alunos em detrimento a sua livre expressão através de suas ações de movimento.

    A aula de Educação Física, em nossa compreensão, deve propiciar um espaço onde as expressões por meio do “se-movimentar” são mais livres, mais exploradas, possibilitando um “diálogo entre homem e mundo” (GORDJIN apud HILDEBRANDT-STRAMANN, 2001, p.103).

    Nessa condição, a concepção do se-movimentar traz como pontos de referência: movimento é uma ação de um sujeito, vinculada a uma determinada situação concreta e relacionada a um sentido/significado (BUYTENDIJK apud TREBELS, 1992). Assim, o sujeito que “se-movimenta” é visto como um ser rico em intencionalidade, intencionalidade esta que dá sentido as ações humanas, que configura-se na relação com o mundo e, que abre a possibilidade de superar um mundo confiável e conhecido para desafiar e experimentar o desconhecido.

    No entanto, em muitos casos, isso não está presente na Educação Física escolar, pois, a adoção de padrões estereotipados de movimento, do movimento técnico e mecânico, facilmente encontrado nas aulas, nos aponta para o que McLaren (1991, p. 137) denominou de 'estado de estudante', o qual “[...] se refere a uma adoção de gestos, disposições, atitudes e hábitos de trabalho esperados do 'ser um estudante'”. Conforme o autor ainda, nesse estado, “[...] os jovens geralmente ficam quietos, demonstram boas maneiras, são previsíveis e obedientes, [...] há pouco movimento físico, exceto sob o comando do professor”. Na aula, isso é percebido quando os alunos são expostos a uma série de limitações de suas ações de movimento, e conseqüentemente das relações sociais e culturais de troca e aprendizagem de novas formas de movimento, e seus sentidos/significados. E ainda, são expostos a uma avaliação, onde para obterem êxito precisam realizar o movimento tal qual foi demonstrado pelo professor, deixando-o alheio ao seu movimento, como se este, seu meio de expressão e linguagem estivesse completamente errado e/ou inadequado.

    Tratando agora, sobre o recreio escolar, ele pode ser compreendido como o tempo livre que a criança dispõe dentro da escola, como um tempo único, principalmente no aspecto de liberdade de escolha das atividades que deseja realizar e com quem irá realizá-las, sem a interferência direta dos adultos.

    Nesse sentido, essas características nos reportam para ao estado de interação denominado de ‘estado de esquina de rua’, proposto por McLaren (1991), em que as ações, raramente se conformam a um cenário previsível, “os limites entre espaços, papéis e objetos são mais plásticos, adaptáveis e maleáveis, [...] os estudantes parecem mais imprevisíveis, barulhentos e desordeiros, que em outros estados de interação [...]”.

    Segundo o autor, o movimento corporal, nesse estado, traz tons de alegria, farra e geralmente não possuem as demarcações de gestos precisos, e além disso, há muito contato físico. Os comportamentos geralmente enfatizam as funções pessoais que normalmente são controladas, e que nesse estado não são consideradas como tabu, como, por exemplo, algumas manifestações corporais. E ainda, conforme McLaren (1991, p. 135), “[...] o espírito característico nesse estado é lúdico ou da natureza do jogo e da brincadeira”.

    A partir disso, consideramos importante as colocações de Huizinga (2000), ao falar da natureza e significado do jogo como fenômeno cultural, onde encontramos inúmeros aspectos que podem ser associados ao que as crianças vivem na escola, e especialmente durante o recreio, que independente das atividades pode ser considerado como um jogo de interação com os outros sujeitos e com o meio. Assim, este momento “[...] trata-se de uma evasão da vida 'real' para uma esfera temporária de atividade com orientação própria” (HUIZINGA, 2000, p.11), constituindo-se num “faz de conta” onde a criança expõe seus sentimentos mais íntimos e sua visão com relação ao mundo, geralmente o mundo adulto, do trabalho, chegando a representar esses papéis nas atividades e na interação com os outros, tornando esse momento como algo sagrado e permeado por muita seriedade.

    Partindo dessas caracterizações dos espaços escolares que nos propomos refletir, compreendemos que o contexto escolar influencia de maneira bastante significativa na construção de significados e sentidos que os sujeitos vão estabelecer para suas manifestações através do movimento, compreendido enquanto uma totalidade localizada num contexto social, histórico e cultural determinados, e nos processos de interação que são vivenciados em âmbito escolar, ou mesmo, fora dele.

A construção de sentidos/significados para as práticas corporais

    Para refletirmos sobre a construção e/ou in(corpo)ração de significados sociais nas práticas corporais na escola, e para melhor explicitarmos nossa leitura do contexto escolar, recorremos a Tikunoff (apud PÉREZ-GOMEZ, 2001) ao considerar que existem três tipos de variáveis que estão presentes em processos de interação - que não devem ser entendidas isoladas, mas como complementares - tais como os observados na aula e no recreio, que possibilitam a aprendizagem e o desenvolvimento dos sujeitos.

    Primeiramente, vamos caracterizar e exemplificar as variáveis situacionais. Estas, “[...] constituem o contexto complexo e mutável em que vivem, experimentam e se relacionam os indivíduos de um mesmo contexto” (TIKUNOFF apud PÉREZ-GOMEZ, 2001, p. 247). Dentre elas, cabe distinguir e destacar ‘o clima de objetivos e expectativas’, que de acordo com o autor, é formado pelas relações de convergência ou conflito entre os objetivos e as expectativas dos diferentes indivíduos e as relações de poder nas formas de definir os objetivos da situação. E, o ‘cenário de convivência’ que diz respeito ao espaço, a estrutura da atividade, a organização de tempo e espaço e os papéis que os indivíduos desempenham.

    Para uma melhor compreensão de como isso é percebido nas aulas trazemos algumas situações que foram observadas em contexto reais, onde percebemos que desde a entrada na escola o esporte aparece como conteúdo hegemônico das aulas de Educação Física, principalmente no que se refere as atividades realizadas pelos meninos, passando a definir e orientar o ‘clima de objetivos e expectativas’ com relação a aula. Os meninos passam grande parte das aulas jogando futebol, ou então simplesmente “jogando bola”, como eles mesmo dizem e configuram sua concepção de aula de Educação Física. Uma das questões fundamentais na compreensão desse processo, ligadas aos objetivos e expectativas na realização da atividade é o fato das crianças desde muito cedo serem inseridas nesse meio – esportivo -, o que em parte constitui o desejo dos pais terem filhos atletas e o sucesso que isso poderá proporcionar, e também as relações de poder sobre a imagem transmitida pela mídia, pela indústria cultural. Dessa forma também, na organização das atividades observamos uma hierarquização do poder, onde os que ‘jogam melhor’ decidem sobre a organização e regras do jogo, criando para isso um ‘cenário de convivência’ muito semelhante ao encontrado fora do âmbito escolar e que diz respeito aos esportes normatizados, distribuindo determinados papéis aos sujeitos conforme suas características.

    Já com relação ao recreio, observamos que essas situações são mais maleáveis, em função da ‘liberdade’ que os alunos possuem ao organizarem-se para realizar alguma atividade. Neste espaço, eles conversam sobre as atividades que irão realizar, distribuindo os papéis para cada um durante a brincadeira, que geralmente é organizada por aluno que exerce a função de líder, cabendo a ele também decidir sobre determinadas regras para a atividade. São geralmente atividades bastante dinâmicas, principalmente as realizadas pelos meninos, tais como a brincadeira de pego, polícia e ladrão, entre outras, já as meninas brincam de mamãe e filhos, amarelinha e casinha. Na atividade de pego, verificamos que as regras são bastante conhecidas por todos, e os alunos não demoram para se organizar e começar a brincar, sendo que, não existe um espaço delimitado para a atividade, eles apenas determinam um lugar onde estarão “salvos” se estiverem cansados.

    Ao brincarem de casinha, por exemplo, as meninas tem um papel a desempenhar, distribuído entre elas: uma é mãe, e as outras as filhas. Nesta atividade, a que faz o papel de mãe, determina o que as outras devem fazer, e quem não aceita é excluída do grupo pelas outras. Observando esse ponto, concordamos com Kunz (2003, p. 99) ao dizer que, “[...] no seu brincar a criança constrói simbolicamente sua realidade e recria o existente”. É nessa tentativa de representar sua realidade que acontece a incorporação de diferentes papéis, onde como citado no exemplo, percebemos claramente os alunos assumindo papéis que a instituição social/familiar lhes coloca. Dessa forma, “as instituições incorporam-se na experiência do indivíduo por meio de papéis. [...] Ao desempenhar papéis, o indivíduo participa de um mundo social” (BERGER; LUCKMANN, 1998, p. 103). Assim, ao tentar fazer parte desse mundo, verificamos que desde muito cedo as crianças são estimuladas a assumir mais responsabilidades, deixando de explorar várias situações do “faz de conta” do mundo infantil, e com isso, prejudicando suas capacidades de vivenciar atividades de movimento, além das tradicionais, para corresponder ao clima de objetivos e expectativas esperados delas.

    O segundo grupo de variáveis presentes nesse processo de interação trata-se das variáveis experienciais. Estas estão relacionadas com os significados e os modos de atuação que desenvolvem os diferentes sujeitos, considerando a sua história de vida, experiência e modos de compreensão e atuação (TIKUNOFF apud PÉREZ-GOMEZ, 2001, p. 247).

    Para uma melhor compreensão dessas variáveis, fazemos referência às práticas movimento dos alunos nas séries finais do ensino fundamental e no ensino médio. Estas, até então expressas através da incorporação de habilidades técnicas das modalidades esportivas, agora aparece para a maioria dos alunos destituída de significados. Esse fato, acreditamos estar relacionado com a cultura de movimento desde os primeiros anos de vida e especialmente após a entrada na escola, ou seja, pela falta de vivência e experiências de movimento, os alunos vão perdendo o interesse, incorporando outras responsabilidades e interesses substituindo as práticas de movimento pela desenvolvimento de atividades profissionais.

    Dessa forma, percebemos que a aula de Educação Física, configura-se como um “jogar por jogar”, e que pela falta de objetivos que justifiquem sua prática, com o passar do tempo foi destituindo a seu sentido, tornando a relação corporal dos alunos com o movimento, formas intensamente estranhas. Como exemplo, citamos a realização do jogo de futebol entre os meninos, nas varias turmas observadas, onde percebemos muita cobrança dos alunos com relação à forma de executar os fundamentos do jogo. Para eles, existia uma única forma de realizar aquele movimento, tendo como referência o esporte de rendimento. A criação de novas formas de movimentos “não regulamentadas”, próprias dos alunos, não oferece nenhum prazer na sua realização. O que pode estar relacionado com a falta de conhecimento corporal e, com isso, das novas formas de movimento que poderiam ser exploradas, transformando inclusive, o sentido que esta prática possui para os alunos.

    E, o terceiro grupo de variáveis relaciona-se às variáveis comunicativas, isto é, os níveis e elementos que alimentam, condicionam e canalizam a comunicação de significados, onde podem distinguir-se diferentes níveis, como: intrapessoal, interpessoal, grupal e global. (TIKUNOFF, apud PÉREZ GÓMEZ, 2001).

    Para exemplificar como ocorre esse tipo de variável, citamos a brincadeira de amarelinha realizadas pelas meninas durante o recreio, elas criam uma determinada ordem e estabelecem regras, primeiramente, constroem a amarelinha com giz no pátio da escola. Em seguida, já com o grupo organizado estabelecem uma ordem para cada uma realizar suas tentativas, sendo que durante a atividade, todas permanecem muito atentas para ver se as colegas não estão desrespeitando as regras.

    Nesta atividade, como existe uma dependência da habilidade motora, principalmente a localização espacial e o equilíbrio, os alunos que não possuem estas incorporadas, são prejudicados, ou seja, independente de ser uma brincadeira ou não, todos querem atingir o êxito na atividade, e se não conseguem se excluem do grupo, e buscam outras atividades. Conforme a atividade vai se desenvolvendo, uma das meninas estava com muitas dificuldades, com isso ela sugere que sejam modificadas algumas regras, obviamente tentando facilitar a sua participação, porém, as demais não aceitaram a sugestão dela e a mesma saiu da brincadeira, ou seja, não houve uma interação de fato entre elas, as intenções para a atividade eram diferentes, e esta que apresentou novas sugestões, pode ser caracterizada como a desmancha prazeres do grupo, e, portanto é excluída.

    A partir dessa situação, percebemos que os alunos possuem internalizada essa capacidade/necessidade de construção de regras, embora tenham dificuldades com uma das competências para que ocorra efetivamente a interação entre os participantes da atividade, trata-se da competência do agir comunicativo. De acordo com Baecker (1996) é “[...] uma condição para a interação social, porque através dela é possível ocorrer um entendimento entre os participantes da interação para a conjugação/coordenação/sincronização de suas ações”.

    Essa variável comunicativa é também observada nas aulas de Educação Física, uma vez que se coloca como condição imprescindível para que a aula e/ou atividade se dê. Contudo, salienta-se a importância de se estimular todos os alunos a comunicarem-se, a participar ativamente dos discursos, uma vez que, habitualmente, existe um líder que coordena as atividades, ou então o professor é que dá todas respostas. A partir das colocações de Kunz (2001), o diálogo é um processo fundante da educação, entendendo a palavra como expressão do estar-no-mundo. E, nas aulas de Educação Física, especificamente, trata do movimento humano, como sendo o diálogo entre o homem e o mundo, cujos sentidos/significados devem ser dialógica e argumentativamente feitos e refeitos.

    Percebemos, ainda nas aulas, que os alunos estão conscientes de que sua participação em um determinado grupo, não pode se dar somente pelas suas preferências e opiniões, mas estas devem ser discutidas para que se chegue a uma conclusão que seja o desejo da maioria, o que implica em dever e direito de cada um dos sujeitos envolvidos. Assim, como educadores precisamos fomentar nos alunos a capacidade comunicativa, visto que a mesma não é dada, como simples produto da natureza, mas deve ser desenvolvida (KUNZ, 2003, p. 31).

Considerações finais

    Considerando nossas observações e reflexões com relação ao espaço escolar, compreendemos que ao mesmo tempo em que a escola funciona como repressora e disciplinadora dos corpos dos sujeitos, através de seus rituais e normas ela pode também configurar-se como um dos importantes instrumentos de transformação se ultrapassar essa concepção instrumentalizadora do movimento.

    Tradicionalmente a escola mantém o corpo sob controle em seu cotidiano, pois as suas diversas estratégias metodológicas regularmente apontam para o imobilismo, para a construção do conhecimento priorizado no aspecto cognitivo, pouco atento as expressões corporais e os movimentos construídos pelos alunos, que traduzem um conjunto acumulado de conhecimento, cultura e história. Assim, a escola enquanto instituição social auxilia na manutenção da hierarquia de poder, reforçando estruturas sociais pouco focadas em mudanças.

    Dessa forma, é importante ressaltar a necessidade de se considerar a diversidade de manifestações culturais entre as sociedades e até mesmo, dentro de cada sociedade, buscando subsídios para compreender cada uma dessas manifestações a partir de suas relações com o corpo dos sujeitos que formam a sociedade, produzem cultura(s) e carregam suas marcas na forma como vêem e agem, construindo suas relações com o mundo.

    Nesse sentido, o corpo deve ser percebido como condição de existência do homem no mundo, que sente, que pensa e que age como esse corpo, que é “[...] a expressão da cultura, e portanto, cada cultura vai se expressar por meio de diferentes corpos, porque se expressa diferentemente como cultura” (KOFES apud DAÓLIO, 2004, p. 39). Contudo, aí reside algumas questões que foram nosso foco nesse texto e que devem ser enfatizadas, visto que, muitas vezes somos pressionados a in(corpo)rar – como se refere Gonçalves (1994) – uma expressão corporal ou práticas corporais consideradas ideais para nossa cultura, mediante gratificações e punições, o que na escola aparece através das atividades realizadas pelos alunos em seus diferentes estados de interação.

    Como nos aponta Vigarello (apud SOARES, 1998, p. 17) “[...] o corpo é o primeiro lugar onde a mão do adulto marca a criança, ele é o primeiro espaço onde se impõem os limites sociais e psicológicos que foram dados a sua conduta, ele é o emblema onde a cultura vem inscrever seus signos como também seus brasões”. Dessa maneira, “[...] atuar no corpo implica atuar sobre a sociedade na qual o corpo está inserido” (DAÓLIO, 2004, p. 42). Essa condição, na aula de Educação Física, configura-se num processo de reconhecimento de que, cada sujeito possui expressões diferentes, faz parte de culturas de movimento diferentes e significativas em seu contexto, o que precisa ser problematizado para que os sujeitos tenham a possibilidade de experienciar práticas corporais provenientes de outras culturas, tornando-os significativos e ampliando suas possibilidades de agir, construir e representar sua cultura por meio do movimento.

    Nesse contexto, precisamos ampliar nossa visão e trabalhar para que na escola, e mais especificamente, nas aulas de Educação Física Escolar, as experiências de movimento dos alunos não sejam silenciadas, ou mesmo enquadradas em padrões estereotipados de um modelo de cultura que se pretende transmitir como paradigma hegemônico, determinado por outros âmbitos sociais. Dessa forma, a Educação Física, por suas características singulares e apelo prazeroso que possuí em relação às outras disciplinas do cotidiano escolar, pode aproveitar tais oportunidades para redimensionar o seu papel social e a sua função pedagógica, colaborando para uma formação emancipatória.

Referências

  • BAECKER, Ingrid Marianne. Identitätsfördrung im Bewegungsunterricht Brasilianischer Grundschulen, Universidade de Hamburgo. República Federal da Alemanha, 1996. (Tese de Doutorado - Tradução Autora).

  • BERGER, Peter I.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. 15.ed. Petrópolis: Vozes, 1998.

  • CANDAU, Vera Maria (org). Reinventar a escola. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

  • DAÓLIO, Jocimar. Educação Física e o conceito de cultura. Campinas, SP: Autores Associados, 2004.

  • FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: vozes, 1987.

  • GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

  • GONÇALVES, Maria Augusta Salin. Sentir, Pensar, Agir: Corporeidade e Educação. Campinas, SP: Papirus, 1994.

  • HILDEBRANDT-STRAMANN, Reiner. Textos pedagógicos sobre o ensino da Educação Física. Ijuí: Unijuí, 2001.

  • HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: O jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva S.A., 2000.

  • KUNZ, Elenor. Didática da educação física 1. 2.ed. Ijuí: Unijuí, 2001.

  • ____. Didática da educação Física 2. Ijuí: Unijuí, 2003.

  • MCLAREN, Peter. Rituais na escola: em direção a uma economia política de símbolos e gestos na educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991.

  • PÉREZ GÓMEZ, A. I. A cultura escolar na sociedade neoliberal. Poro Alegre: Artmed, 2001.

  • SOARES, Carmen Lúcia. Imagens da educação no corpo: estudo a partir da ginástica francesa no século XIX. Campinas, SP: Autores Associados, 1998.

  • TREBELS, Andréas H. Plaidoyer para um diálogo entre teorias do movimento humano e teorias do movimento no esporte. Aprendizagem Motora, Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Vol. 13- Número 13- Jun. 1992 (338-334).

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