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O papel educativo da ginástica militarizada
na filosofia crítica de Karl Marx

   
Doutorando em Filosofia - Universidade Gama Filho.
Professor de Sócio-Antropologia do Movimento
Humano da Universidade Federal do Amazonas.
 
 
Dirceu Ribeiro Nogueira da Gama
dirceugama@ufam.edu.br
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
     O presente artigo busca desenvolver uma linha de reflexão temática sobre o virtual papel pedagógico assumido pela ginástica militar no seio das análises históricas e projeções filosóficas de Karl Marx (1818-1883) sobre o capitalismo, tendo-se em vista um pronunciamento seu no I Congresso da Internacional de Trabalhadores, realizado no ano de 1866.
    Unitermos: Ginástica. Educação Física. Filosofia. Karl Marx.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 12 - N° 116 - Enero de 2008

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Introdução

    Poucos pensadores produziram um sistema de idéias tão impactante para a compreensão da forma como se constróem as relações sociais no decorrer dos processos históricos como o filósofo alemão Karl Marx (1818-1883). O rigor, a originalidade e a consistência argumentativa de seus estudos interferiu diretamente no modo como as ciências humanas do século XIX concebiam a si mesmas e aos seus objetos, a ponto de levá-las a rever com radicalidade diversos pressupostos epistemológicos e métodos de trabalho. Para Napoleoni (1978), o grande mérito de Marx foi ter demonstrado que a organização material da produção econômica e a composição objetiva e subjetiva dos estamentos sociais das coletividades ao longo das épocas interpenetram-se de modo dialético, gerando efeitos dinâmicos que espraiam-se sobre os outros setores em torno dos quais a vida comunitária se estrutura, como a educação, o direito, a religião, as artes, etc.

    No caso específico da educação, uma das grandes contribuições de Marx foi observar a transformação do tema da preparação para o trabalho em questão educacional de suma importância na Modernidade, haja vista que até meados do século XVIII os processos de formação de mão de obra ocorriam nos centros manufatureiros, corporações de ofícios e campesinato. Tal mudança de paradigma, na leitura de Manacorda (1966), vincula-se aos imperativos de diversificação, sofisticação e ampliação da base técnica produtiva das sociedades ocidentais européias desencadeados pela Revolução Industrial, fato esse que repercutiu na geração de uma demanda crescente por indivíduos dotados de habilidades, competências e conhecimentos condizentes com esses fins.

    Sob esse prisma, educar para o trabalho, então, representa uma contingência que, pela análise de Marx & Engels (1968) no clássico texto ´Manifesto do Partido Comunista`, corresponde ao movimento civilizador do capital. Portanto, ele também agencia uma pedagogia social de condicionamento de indivíduos para a geração de mais-valia, na medida em que o tempo de trabalho que excede a satisfação das necessidades vitais dos operários, e que no sistema capitalista destina-se ao aumento contínuo do capital, deve igualmente ser preenchido com atividades de instrução profissional.

    Longe de interpretar esse acontecimento como algo danoso, Marx antevê na radicalização de suas premissas a possibilidade para a abertura de horizontes pedagógicos inovadores, capazes de nortear a formação global de todos os homens, porque seu ponto de partida é o reconhecimento de que, no mundo moderno, as esferas da produção material, existência e ciência atingem um grau de interligação jamais visto em outras épocas. Urge dizer que, ao contrário do que advogam algumas interpretações simplistas de seu pensamento, Marx não rejeitou as conquistas burguesas no plano da educação; o que ele acrescentou de peculiar foi a viabilidade delas promoverem a sublimação das capacidades humanas caso reconstituídas organicamente no seio da práxis.

    Em se tratando da participação da educação física no supracitado panorama, a proliferação dos métodos e escolas gímnicos verificados na Europa do século XIX não permaneceu alheia aos olhares de Marx, conforme podemos perceber no documento que escreveu para os delegados do I Congresso da Internacional dos Trabalhadores, realizado em Genebra no ano de 1866:

"Por instrução, nós entendemos três coisas: primeira, instrução intelectual; segunda, educação física, assim como é ministrada nas escolas de ginástica e pelos exercícios militares; terceira, treinamento tecnológico, que transmita os fundamentos científicos gerais de todos os processos de produção e que contemporaneamente introduza a criança e o adolescente no uso prático e sua capacidade de manusear os instrumentos elementares de todos os ofícios (...) Do sistema da fábrica (...) nasceu o germe da instrução do futuro, que unirá para todas as crianças além de uma certa idade o trabalho produtivo, com a instrução e a ginástica, não somente como método para aumentar a produção social, mas também como único método para formar homens plenamente desenvolvidos". (Marx, citado por Manacorda, 2001, p. 297-298).

    No fragmento anterior, percebe-se o acento específico dado por Marx ao exercício físico inspirado em prerrogativas militares. Caso entendamos a observação dessa predileção como fato proposital, podemos assumir a hipótese de que ela adequa-se aos fundamentos ontológicos e teleológicos de uma educação comprometida com a emancipação do proletariado. Isso, por conseguinte, traz consigo um problema, pois, se de um lado, as propostas de Marx ainda hoje constituem uma referência teórica para a elaboração de discursos educacionais críticos, por outro são escassas as pesquisas que procuram discutir essa sua afeição por um tipo tão específico de sistematização pedagógica do movimento humano. Logo, refletir sobre tal questão impõe-se como tarefa a ser realizada, tendo em vista a necessidade de melhor situá-la no cômputo geral das análises de Marx sobre educação e sociedade.


Marx e a educação do corpo no bojo do século XIX: cotejando aproximações e interpretações

    De uma maneira geral, os estudos sobre popularização, teorização e expansão da prática de atividades físicas no alvorescer da Modernidade, enquanto signos da gênese de um novo leque de valores culturais não observados em épocas anteriores, apontam para a vigência de dois grandes eixos paradigmáticos fornecedores de identidades epistêmicas (Defrance, 2000):

  • De um lado, têm-se o modelo esportivista de origem inglesa, cuja institucionalização, mesmo mantendo boa parte dos costumes e tradições da cultura corporal bretã do medievo, não permaneceu fechada às contribuições das nascentes camadas urbanas, representadas pela burguesia industrial, empresários do comércio e trabalhadores assalariados. As lutas religiosas e políticas, a cultura vitoriana, as formas educativas das escolas de elite e a ratificação do Imperialismo colonial interferiram na constituição desse singelo corpo de saberes, atestando assim sua composição multifacetada.

  • Do outro, na mesma época, vários países da Europa continental, com destaque para Suécia, França, Espanha, Dinamarca e Alemanha, desenvolveram um conjunto de práticas ginásticas militarizadas e não competitivas, embasadas em descobertas experimentais ocorridas nos campos da anatomia, fisiologia, química e física. Dentre as várias escolas ginásticas européias criadas no período oitocentista, particularmente a Francesa e a Alemã atribuíram grande valor a esse quesito, conforme podemos aduzir dos trabalhos de Ramos (1982).

    Mas por que motivos singelos Marx enalteceu esses métodos ginásticos? O que será que neles foi antevisto? Para responder a essa pergunta, convém situá-la em torno de algumas das prerrogativas que suportam seu projeto filosófico.

    Um primeiro ponto a ser considerado em seus estudos sobre educação diz respeito ao reconhecimento de que a formação escolástica do homem, para se efetivar enquanto projeto de liberdade, não pode deixar de primar pela omnilateralidade, agregando à escola as demandas da ciência, do trabalho fabril e rural, da cultura clássica e das artes. Essa abrangência faz-se necessária para contrapor-se aos modos de agir e pensar do senso comum, principalmente no que tange a crença de que a eficiência das forças produtivas sociais, na difícil missão de conquistar a natureza, depende de uma dicotomia irreconciliável entre saber e fazer. O rompimento definitivo com essa situação anacrônica requer, acima de tudo, que a educação catalise intensos e eficazes processos sócio-políticos de subjetivação das vontades coletivas, assumindo-se enquanto condição sine qua non para a criação de um corpo homogêneo de atitudes e valores.

    Ora, os exercícios e técnicas das ginásticas científicas militarizadas do século XIX engrandecidos por Marx, frisa Soares (2002), creditavam ao incremento da aptidão física o bom funcionamento fisiológico das funções e sistemas do organismo, melhoria essa que subentendia a colocação do indivíduo em sessões de treino muitas vezes causadoras de extrema dor e desconforto orgânicos. Muito mais do que acontecimento ausente de sentido, a autora defende que tal lógica inseria-se num panorama que concebia o território da carne como sítio material a ser ocupado com conteúdos morais que dificilmente sairíam do âmbito da idealidade metafísica sem a participação de dor física intencionalmente provocada. E quais conteúdos morais seriam esses? Todos aqueles que, de maneira direta ou indireta, dialogavam com a moralidade da exaltação à pátria, do trabalho capitalista e da saúde social, resume Soares (2002).

    Embora carecendo de maiores explicitações, o argumento de Soares (2002) nos obriga a retomar Nietzsche (1987), pois foi ele o primeiro a exibir, em ´Genealogia da Moral`, o montante de dor necessário de ser provocado no homem com o intuito de civilizá-lo. São célebres os agressivos métodos evocados para incrustar no mesmo um mínimo de memória, de culpa, de senso de promessa e dívida, em suma, de moral: apedrejamentos, empalamentos, dilaceramentos, pisoteamentos por cavalos, fervura em óleo e vinho, esfolamentos, amputações, etc.

    Mais tarde, fundamentado nas investigações de Nietzsche, porém com outro olhar, Foucault (1979) demonstrou o quanto a Modernidade européia pós século XVIII escondeu, sob o discurso da libertação universal humana via racionalização técnica do cotidiano, o amadurecimento de sutis aparelhos higienistas de definição do normal e do patológico, do desejado e do inaceitável, do verdadeiro e do falso. Aos mecanismos de tortura, sucedeu-se a defesa de um auto-controle controle voluntário não mais introjetável pelo recurso às correntes, algemas, chicotes, facas ou porretes, mas sim pelo poder disciplinador de uma ginástica padronizante que investia sem cessar no regramento do corpo sob a justificativa de promover a saúde e capacitar para o trabalho. Isso é patente na seguinte transcrição:

"O domínio, a consciência de seu próprio corpo só puderam ser adquiridos pelo pelo efeito do investimento do corpo pelo poder: a ginástica, os exercícios, o desenvolvimento muscular, a nudez, a exaltação do belo corpo[...] O poder penetrou no corpo, encontra-se exposto no próprio corpo". (Foucault, 1979, p. 146).

    Diante do expôsto, podemos aferir que, na qualidade de vetores de libertação das potencialidades humanas aprisionadas pelo modo de produção capitalista, os movimentos revolucionários preconizados pela filosofia de Marx, no esteio de instituírem uma ordem socialista alternativa, também não abriram mão da padronização do funcionamento anátomo-fisiológico do corpo por meio do adestramento gímnico. Isso quer dizer que, malgrado o antagonismo das cosmovisões capitalista e socialista divergirem quanto aos seus projetos de humanidade desejada, ambos investem, para exercer o poder, no controle bio-político do corpo material das pessoas, não interessando se o que está em jogo é a submissão do estado às liberdades e garantias individuais ou vice versa.

    Em termos de educação física, nota-se, em Marx, um imperativo de rompimento com as didáticas derivadas da visão rousseauniana e romântica, que anteviam na criança um ser regido por leis próprias inalienáveis que deveriam, sob qualquer imperativo, ser seguidas (Brougére, 1992). Não obstante a educação marxiana afastar-se da burguesa por insistir na necessidade da escola ser práxica e não idealizada, as duas atuam de forma parecida exercendo o papel de ferramentas de controle social disciplinar, exatamente como nos moldes descritos por Foucault (1979).


Considerações finais

    A noção geral que boa parte do meio acadêmico possui da personalidade de Marx é a de um erudito profundamente versado em história da filosofia, dotado de rara genialidade, que conseguiu arrolar com minúcias o contraditório funcionamento das sociedades de classe capitalistas (Reale, 1990). Tal imagem porta uma certa verossimilhança, mas convém lembrar que, a título de exemplificação, muitas das teorizações de Marx reunidas em ´O Capital`, uma de suas obras mais emblemáticas, são seguidas da exposição de enormes massas de dados por ele colhidas sobre o dia a dia do sistema fabril inglês. Mais do que um fato pontual, isso serve para denotar o intenso conhecimento que teve dos problemas da época em que viveu e a urgência de suplantá-los com base em informações empíricas. Logo, por mais surpreendente que pareçam suas análises sobre educação física, e ainda que derive daí a surpresa de muitos por causa de seu singelo interesse pela ginástica oitocentista, o minucioso escrutínio dos paradoxos da educação burguesa calcado em documentos, descrições estatísticas, pareceres legais, etc. figura entre os objetos de estudo centrais do filósofo (Manacorda, 2001).

    Uma dúvida que desde já urge ser colocada, principalmente para suscitar futuras investigações, remete ao porquê de Marx ter subestimado o esporte nas reflexões que redundaram na configuração de sua pedagogia práxica. Sabe-se que o conjunto de modificações políticas, econômicas, sociais e culturais trazidas pela Revolução Industrial, institucionalização do Parlamentarismo e término do Absolutismo repercutiu de maneira direta na moderna organização dos modernos estados nacionais britânicos, e, por conseguinte, em muitos dos seus diagnósticos sobre limites e raio de ação do capitalismo. Tais processos também alavancaram o aburguesamento da educação como um todo, que não abriu mão de incluir nos territórios escolares diversas atividades corporais descendentes dos antigos jogos agonísticos cavalheirescos, porém reformuladas nas suas regras e circunstâncias de prática (Tubino, 1982; Elias & Dunning, 1986). É de se esperar, então, que Marx tivesse ciência do rumo desses eventos e do valor que lhes era atribuído pela nascente camada de industriais e comerciantes urbanos para a formação de seus filhos. Mas que critérios levaram-no a desacreditar essa escolha? Por que não eram credibilizadas para finalidades disciplinares?

    Essas e outras questões que dela podem derivar abrem margem para a realização de muitas pesquisas, haja vista que muito pouco ainda é conhecido do pensamento de Marx sobre filosofia e pedagogia do movimento humano.


Referências bibliográficas

  • BROUGÈRE, G. Jeu et éducation. Paris: L'Harmattan, 1995.

  • DEFRANCE, J. Sociologie du sport. Paris: La Decouverte, 2000.

  • ELIAS, N. e DUNNING, E. Quest for excitement. Sport and Leisure in the Civilizing Process. London: Blackwell, 1986

  • FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

  • MANACORDA, M. A. Il marxismo e l´educazione. Roma: Armando, 1966.

  • ___________. História da educação: da Antiguidade aos nossos dias. São Paulo: Cortez, 2001.

  • MARX, K. e ENGELS, F. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Escrita, 1968.

  • NAPOLEONI, C. Smith, Ricardo, Marx. Considerazioni sulla storia del pensiero economico. Turim: Boringhieri, 1978.

  • NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. São Paulo: Brasiliense, 1989.

  • RAMOS, J. J. Os exercícios físicos na história e na arte. São Paulo: IBRASA, 1982.

  • REALE, G. História da filosofia: do Humanismo a Kant. São Paulo: Paulus, 1990.

  • SOARES, C. Imagens da educação no corpo. Campinas: Autores Associados, 2002.

  • TUBINO, M. J. G. Teoria geral do esporte. São Paulo: IBRASA, 1982.

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