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A Educação Física e a sexualidade nos parâmetros
curriculares nacionais: conservadorismo e normatização sexual

   
*Acadêmica do Curso Psicologia do CESUMAR, Maringá - PR.
Bolsista do Programa de Bolsas de Iniciação Científica do PIBIC/CNPq-Cesumar.
*Mestrando em Educação - Universidade Estadual de Maringá - Bolsista CNPQ.
***Doutor em Educação Especial - Professor do Centro Universitário de Maringá.
(Brasil)
 
 
Dayenne Karoline Chimiti*  
Thiago Pelegrini**  
Alex Eduardo Gallo***
thi_uem@pop.com.br
 

 

 

 

 
Resumo
     Para o Parâmetro Curricular Nacional (PCN) que enfoca a orientação sexual, a escola deve introduzir e transmitir um conhecimento planejado, organizado e sistematizado multidisciplinarmente a fim de ampliar as informações da criança acerca da sexualidade. Nesse sentido, o documento afirma que a disciplina de Educação Física oferece temática e ambiente propício a consecução dessa proposta. Partindo destes pressupostos, o objetivo deste trabalho é traçar uma discussão que analise as propostas contidas nos PCNs de Orientação Sexual e Educação Física, sua intencionalidade e viabilidade. Para que se alcancem os objetivos, utilizar-se-á como metodologia a análise do discurso, com ênfase nas relações de poder em torno da sexualidade, instituídas no campo escolar discutidas por Michel Foucault e Marilena Chauí. Ante o exposto, concluí-se que os PCNs analisados procuram, pela colocação da sexualidade em discurso, fomentar uma forma sutil de controle sobre os indivíduos, utilizando-se de mecanismos e práticas que visam produzir sujeitos autodisciplinados, no que se refere as relações sexuais e a sexualidade.
    Unitermos: Parâmetros Curriculares Nacionais. Sexualidade. Educação Física. normatização.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 12 - N° 113 - Octubre de 2007

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Introdução

    A sexualidade humana tem sido ao longo dos tempos objeto de estudo de vários pesquisadores. Concebidos no interesse da medicina preventiva, esses estudos focalizaram, principalmente, o comportamento e as práticas sexuais. Geralmente, limitavam-se por uma noção de risco, no sentido epidemiológico do termo. Como conseqüência, o campo da sexualidade ficou por muito tempo relacionado à sua dimensão puramente comportamental, reforçando uma acepção naturalizada, redutora e biologizante da temática. Partindo desses pressupostos, encontra-se uma dificuldade em localizar uma visão unívoca acerca da sexualidade.

    Assim, considera-se que a sexualidade deve ser entendida como construção social que parte da práxis e, consequentemente, é condicionada pelos diferentes momentos históricos e políticos. Corroborando esta assertiva, busca-se nos escritos de Michel Foucault (1997) a compreensão de que a sexualidade coloca-se não apenas no palpável, mas sim, no discurso que o sustenta, na ideologia subjacente aos padrões de "normalidade" impostos na convivência social.

    Partindo dessa perspectiva, a formação e a informação acerca da sexualidade estão sujeitas a serem apreendidas de maneira inadequada. No entanto, segundo orientação oficial, cabe a escola, introduzir e transmitir um conhecimento planejado, organizado e sistematizado a fim de ampliar as informações da criança sobre a sexualidade (BRASIL, 1997). Nesse sentido, compreende-se conforme os apontamentos de Yara Sayão (1997), que o trabalho a ser realizado na escola, trata-se da "Orientação Sexual".

    No Brasil, afirma à autora mencionada, os primeiros registros de discussões sobre a Educação Sexual na escola datam do início do século passado, mais precisamente em 1920. Influenciada pelas correntes médicas e higienistas, essa educação tinha como objetivo combater a masturbação e as doenças venéreas, além de preparar a mulher para exercer o papel de esposa e mãe. Visava-se, sempre, a saúde pública e a moral higiênica, capaz de assegurar a reprodução da espécie. Contribuindo com essas informações, Paulo R. M. Ribeiro ao discutir a divulgação da educação sexual no Brasil, considera que

A veiculação da importância e necessidade da educação sexual através de livros publicados por médicos, professores e sacerdotes, cientificamente fundamentados, que visavam orientar a prática sexual dos indivíduos (2002, p. 18).

    Os discursos e práticas de educação sexual, presentes e anunciados, encontravam-se numa difícil e intrincada rede de superposições e proposituras. Posições e contrapontos sempre existiram, mas estes tempos foram marcados por uma militância fervorosa na defesa da educação sexual na escola. Segundo Edna Aparecida da Silva (2001), os estudos sistematizados à época não eram muito significativos, porém muitas iniciativas institucionais e sociais preconizavam a educação sexual como disciplina ou espaço institucional potencialmente educativo, capaz de propor informações, orientações e questionamentos éticos sobre a vivência e a expressão da sexualidade.

    Dessa forma, a Orientação Sexual no país, ficou marcada por diferentes concepções nos vários momentos de sua história1. No entanto, ressalta-se na história recente dessa prática, a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases (Lei n°. 9.394) em 1996 e o estabelecimento dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) em 1997, como marcos que possibilitaram um reconhecimento "oficial" da Orientação Sexual, de sua necessidade e importância como ação educativa no interior da escola.

    O primeiro documento produzido pelo Ministério da Educação, intitulado "Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental - Versão Preliminar", de dezembro de 1995, tinha por objetivo fazer um diagnóstico crítico da situação do ensino fundamental, preconizando a necessidade de amplas mudanças. O documento afirmava que:

[...] os PCNs são um instrumento para a qualidade do ensino, que permitirá concretizar uma proposta à sociedade, de modo que seja útil para orientar o trabalho educativo que os professores desenvolvem nas diversas escolas de nosso país (BRASIL, 1995, p. 2).

    A esse respeito, Ribeiro (2002) destaca que a criação da nova LDB e dos PCNs foram fundamentais para atender as necessidades dos alunos, professores e envolvidos no contexto escolar, no que se refere à Orientação Sexual. O autor acredita, também, que essa publicação possibilitou um tratamento mais crítico e eficaz a temática, ponto de discordância fundamental com a tese defendida nesse trabalho, que considera o discurso sobre a sexualidade contido nos PCNs inadequado por estar imbuído em um ideário conservador e normatizador.

    Nessa medida, o PCN volume 10, responsável por tratar como tema transversal a Orientação Sexual, tem como pressuposição um trabalho multidisciplinar que possa envolver toda a área educativa, inclusive a Educação Física. Diante disso, pretende-se traçar uma discussão que analise as propostas contidas nos PCNs de Orientação Sexual e Educação Física, sua intencionalidade e a presença de componentes discursivos normatizadores.

    Para alcançar os objetivos propostos utiliza-se como metodologia a análise do discurso, com ênfase nas relações de poder em torno da sexualidade instituídas no campo escolar. Nessa acepção, incorpora-se a noção de poder-corpo de Michel Foucault (1984; 1987; 1993; 1997) e de repressão sexual sob a perspectiva de Marilena Chauí (1990).

    Nessa compreensão, para Foucault (1984) a incitação ao discurso acerca da sexualidade, é uma das formas significativas da "nova moral sexual" moderna, baseados na moral vitoriana2 e seus impactos sobre a sociedade contemporânea. Esse pensador entende que essa forma discursiva não se traduz em uma suposta liberação e afirmação positiva da sexualidade, mas em um crescente processo de estímulo controlado, sublimado, capaz de fornecer subsídios à repressão.

    Com relação ao conceito de "repressão", buscou-se em Chauí, a compreensão de que a repressão sexual compõe-se

[...] como um conjunto de interdições, permissões, normas, valores, regras estabelecidas histórica e culturalmente para controlar o exercício da sexualidade, pois, como inúmeras expressões sugerem, o sexo é encarado por diferentes sociedades (e particularmente pela nossa) como uma torrente impetuosa cheia de perigos [...] (1990, p.13).

    Nessa linha, a mesma autora avalia que quanto mais oculta e dissimulada, mais eficaz e eficiente à repressão se faz. Pontua-se que a linguagem discursiva dos documentos analisados constrói-se sob esse prisma. Dessa forma, faz-se uso das teorizações de Chauí (1990) para desvelar o caráter repressivo e normatizador contido na tentativa de pedagogização do sexo da criança propalada pelos PCNs de Orientação Sexual e Educação Física.

    A problemática esboçada é apresentada em quatro momentos. No primeiro, faz-se considerações acerca da proposta fundadora dos PCNs, em um segundo momento discute-se o conceito de sexo e sexualidade utilizado pelo PCN - 10 e suas implicações. Em terceiro lugar, apresenta-se os contrapontos entre normatização e orientação sexual. Por fim, versa-se a respeito da intencionalidade e viabilidade das propostas contidas nos PCNs de Orientação Sexual e Educação Física.


Orientação ou normatização sexual?

    Para a discussão proposta é essencial destacar o título dado ao tema transversal que se propõe discutir a sexualidade. O termo "Orientação Sexual" pressupõe o sentido de direcionar, conduzir, encaminhar, e este apontamento caminha para aquilo que pode ser considerado como moralmente aceito pela sociedade. Trata-se de uma pedagogia que determina e conduz a caminhos tidos como verdadeiros e corretos no sentido do que se pode chamar de "programa para uma boa saúde sexual", ou seja, um programa voltado para a "higienização" da sexualidade.

    Após o esclarecimento do termo "orientação sexual", volta-se à compreensão da inserção da Orientação Sexual na escola. Nesse sentido, revisa-se as justificativas que contribuíram para o reconhecimento oficial desse conhecimento no campo educativo, através de sua implementação como tema transversal. Assim, conforme o PCN volume 10, o motivo que levou a essa inclusão foi o aumento da gravidez indesejada, do risco de contaminação com o vírus Human Immunodeficiency Vírus (HIV), entre os jovens e a dificuldade dos pais em tratar abertamente desse assunto.

    Para além do ensejado, a proposta abarca, contraditoriamente uma visão biologicista atrelada ao reconhecimento da importância da escola voltada à educação da sexualidade ligada à vida, à saúde, ao prazer e ao bem-estar, que integra o ser humano (BRASIL, 1997).

    Deste modo, o PCN que trata da Orientação Sexual como tema transversal, entende que a sexualidade é formada pelas dimensões biológica, psíquica e sociocultural. Partindo destes pressupostos, o trabalho referendado deve ser sistemático e sistematizado com a finalidade da promoção da saúde e ações educativas/preventivas no combate as doenças sexualmente transmissíveis, especialmente, a Síndrome da Deficiência Imunológica Adquirida (SIDA).

    Contudo, tais expressões como "sexualidade ligada à vida, sexualidade ligada à saúde", fazem alusão ao cuidado do corpo, à higienização, responsabilidade da criança pela sua integridade física e moral, orientando comportamentos e atitudes sexuais ligadas ao biológico e à normatização de gestos e posturas. Sintetizando, Antonio Flavio Barbosa Moreira (1996) traduz esses aspectos como "boa saúde sexual".

    A partir da compreensão de sexualidade que o PCN traz, a Orientação Sexual na escola passa a ser compreendida como

[...] um processo formal e sistematizado que acontece dentro da instituição escolar, exige planejamento e propõe uma intervenção por parte dos profissionais da educação. O trabalho de Orientação Sexual na escola é entendido como problematizar, levantar questionamentos e ampliar o leque de conhecimento e de opções para que o aluno, ele próprio, escolha seu caminho (BRASIL, 2000, p. 121).

    A definição exposta tem um encaminhamento no âmbito pedagógico e coletivo, com objetivos de informar e discutir tabus, preconceitos, crenças e atitudes, contando, para tanto, que o professor se dispa de seus preconceitos. Seus idealizadores acreditam que esse trabalho servirá para preencher lacunas nas informações e conteúdos trazidos pelas crianças nas aulas.

    Vale ressaltar, que o professor será o responsável, exclusivo, pela mediação desse conteúdo. Para que isso aconteça, o PCN versa sobre a necessidade do educador se preparar, tendo acesso à formação específica e apoio constante para tratar da sexualidade com consciência e aporte teórico. Referente a este "preparo", fala-se da naturalidade em trabalhar a temática, porém essa acepção é proveniente das Ciências Naturais, ocasionando certo tom irrefutável, que não procede em uma discussão historicizada.

    No entanto, estas exposições vêem marcadas com um discurso naturalista e normalista da sexualidade. A sexualidade é vista sob o ponto de vista biológico, atrelada às funções hormonais. Confirmando esta assertiva, vê-se que apesar do PCN contemplar comportamentos diversificados da sexualidade, não se problematiza a categoria sexualidade sob o ponto de vista de sua constituição histórica, da mesma forma que em relação a outras categorias, como homossexualidade e heterossexualidade.

    A vinheta abaixo indica o enunciado encontrado no PCN, que delimita, exatamente, o que Chauí (1990) refuta como educação sexual, para a autora trata-se, na verdade, de repressão sexual:

O trabalho pedagógico é feito principalmente por meio da atitude do professor e de suas intervenções diante das manifestações de sexualidade dos alunos na sala de aula, visando auxiliá-los na distinção do lugar público e do privado para as manifestações saudáveis da sexualidade correspondentes à sua faixa etária. É a partir dessa percepção que a criança aprenderá a satisfazer sua necessidade de prazer em momentos e locais onde esteja preservada a sua intimidade. Os conteúdos trabalhados devem também favorecer a compreensão de que o ato sexual e intimidades similares são manifestações pertinentes à sexualidade de jovens e de adultos, não de crianças (BRASIL, 1997, p.30) (sem grifo no original).

    Chauí (1990) descreve que um dos aspectos significativos da repressão está no tocante do não reconhecimento da sexualidade infantil e não-genital. E que através das normas e regras definidas pela sociedade e também pela ciência é que acontecem as permissões e proibições nas práticas sexuais. Nesse sentido, o trecho citado traduz claramente a restrição de conteúdos e manifestações considerados pertinentes apenas a adultos. A sexualidade infantil assume, então, um caráter exploratório, pré-genital configurando o que Chauí entende por repressão sexual.

    Outro ponto questionável do documento é a mensagem de prevenção e promoção da saúde carregada com uma bandeira em prol de uma sexualidade ligada à vida e ao prazer. Nota-se este aspecto, também, na divisão didática dos conteúdos contemplados no PCN, uma vez que, se coloca em um mesmo capítulo a sexualidade "livre" de preconceitos e tabus e a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, implicando em uma associação direta entre sexualidade e doença.

    Seguindo este pensamento buscou-se na assertiva de Helena Altmann a caracterização desse constructo normatizador no interior escolar:

[...] através da colocação do sexo em discurso na escola, há um complexo aumento do controle exercido sobre os indivíduos, o qual se exerce não através de proibições, punições, mas através de mecanismos positivos de poder que visam a produzir sujeitos autodisciplinados no que se refere à maneira de viver sua sexualidade (2001, p. 582).

    Nesse campo, observa-se que os conteúdos propostos no PCN ora analisado, contrariamente a tratar de um referencial fomentador com sugestões abertas e flexíveis como se propõe, tende a buscar uma educação para o autodisciplinamento da sexualidade dos educandos, a fim de estruturar comportamentos definitivos com mentalidade e práticas preventivas.


Educação Física e orientação sexual

    Conforme o PCN de Orientação Sexual a disciplinas Educação Física é conceituadas como espaço privilegiado de intervenção pedagógica a respeito das questões que envolvem a orientação sexual. Destaca-se o "uso do corpo" e a tematização da "cultura corporal", como atributos facilitadores da transmissão de conhecimentos sobre o corpo, relações de gênero e interações com a sexualidade.

    Ressaltamos, novamente, baseando-se em Foucault (1987), que os controles disciplinares da atividade sexual encontram lugar em todas as pesquisas, teóricas e práticas, sobre a "máquina natural" do corpo. Assim, os conteúdos abordados pela disciplina são imbuídos nesse poder disciplinar, que tem por correlato a formação de uma individualidade que valoriza excessivamente a importância do natural e do orgânico.

    Referente ao conceito de naturalidade, faz-se uma breve retrospectiva histórica que auxilia na compreensão da temática. Utiliza-se do conceito de natureza que emergiu durante o século XVIII e que ainda se apresenta no século XXI. A ascensão dessa naturalização, segundo Richard Miskolci (2005), tornou-se o alicerce de toda uma ciência sobre o ser humano. Como influência teve-se o reflexo de atribuir naturalidade aos fenômenos cominando uma credibilidade insdicutível aos fatos tratados pela Ciência Natural.

    Vale ressaltar ainda que Miskolci (2005) afirma que as identidades não podem ser explicadas biologicamente, e sim através da investigação dos processos históricos e sociais que as constituem. A compreensão desses processos colocou em evidência as assimetrias de poder que instituem as identidades e como a naturalização justifica e permite a manutenção das desigualdades.

    Muitos termos e justificativas encontrados nos PCNs foram fundamentados no conceito de naturalização e utilizados, portanto, com o intuito de manter o status quo, em diferentes momentos da presente discussão, desde a perspectiva de sexualidade encontrada nos documentos até na formação e atuação do professor ao lidar com o tema.

    O PCN de Orientação Sexual cita a disciplina de Educação Física como ambiente propício para trabalhar a temática. Embora, a disciplina desponte como "ambiente prazeroso" de convívio com o corpo e de desabrochar de relações de gênero, mantém-se um discurso autoritário e conservador que põe ênfase no autocuidado, na disciplinarização dos sujeitos e na conseqüente regulação de sua sexualidade de acordo com normas de prevenção de doenças e de manutenção da saúde.

    Os aspectos mencionados estão explícitos no recorte abaixo:

Os conhecimentos sobre o corpo, seu processo de crescimento e desenvolvimento, que são construídos concomitantemente com o desenvolvimento de práticas corporais, ao mesmo tempo que dão subsídios para o cultivo de bons hábitos de alimentação, higiene e atividade corporal e para o desenvolvimento das potencialidades corporais do indivíduo, permitem compreendê-los como direitos humanos fundamentais. A formação de hábitos de autocuidado e de construção de relações interpessoais colaboram para que a dimensão da sexualidade seja integrada de maneira prazerosa e segura (BRASIL, 2000, p. 29-30).

    Segundo Foucault, essas características incorporadas pela disciplina, compõe-se em

métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as "disciplinas" (1987, p. 118).

    Nota-se, também, a preocupação patente com a formação de uma "mentalidade preventiva", atenta a uma série de cuidados higiênicos que abrangem desde aspectos nutricionais até uma prática sexual normatizada. A "higienização" do espaço pedagógico ocupado pela Educação Física, retirada das incursões discursivas da área desde o arrefecimento do movimento higienista, é novamente vivificada como contribuição significativa da disciplina para os ciclos de escolarização.

    Frisa-se que a disciplina, como supracitado, fabrica corpos submissos e exercitados, o que Foucault (1987) define como "corpos dóceis". É nessa relação de sujeição estrita que a coação disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada.

    Referente a esse discurso de proteção e prevenção sexual, Andréa Vieira Braga (2006), entende que todo o conhecimento sobre sexo que vier a ser produzido em sala de aula, oferecerá argumentos para a efetivação de um modelo de educação sexual que busca prevenir, normatizar e higienizar a sexualidade.

    No que tange às questões de gênero no texto analisado, sugere-se que há diferenças sexuais construídas histórica e socialmente, no entanto as diferenças sexuais, também, são evocadas pelas características materiais dos corpos, ou seja, a criança é levada a se descobrir menino ou menina através desse paradigma. Além desta máxima, não se sugere a necessária problematização e discussão acerca da gênese e constituição do gênero, e sim o "combate as discriminações e o questionamento de estereótipos associados ao gênero", condicionados ao surgimento de situações-problema que exijam o tratamento dessa temática (BRASIL, 2000, p. 145).

    Pode-se perceber a contradição explícita no que se refere às proposições acerca de gênero, do documento, no fragmento citado abaixo:

Nessa exploração do próprio corpo e do corpo dos outros e a partir das relações familiares é que a criança se descobre num corpo sexuado de menino ou menina. Preocupa-se então mais intensamente com as diferenças entre os sexos, não só as anatômicas, mas todas as expressões que caracterizam homem e mulher. A construção do que é pertencer a um outro sexo se dá pelo tratamento diferenciado para meninos e meninas, inclusive nas expressões diretamente ligadas à sexualidade, e pelos padrões socialmente estabelecidos de feminino e masculino. Esses padrões são oriundos das representações sociais e culturais construídas a partir das diferenças biológicas dos sexos, e transmitidas através da educação, o que atualmente recebe a denominação de relações de gênero. Essas representações internalizadas são referências fundamentais para a constituição da identidade da criança (Brasil, 1998, p. 296) (sem grifo no original).

    Nesse sentido, retoma-se o que Foucault (1993) chama de "ideal regulatório", ou seja, a sexualidade e a produção de significados a partir do corpo do outro é definida e regulada através de práticas discursivas produzidas pelo poder disciplinar que as nomeia. Corroborando essa assertiva, Britzman (2001) sugere que a magnificência dessa construção exige um tipo de educação, que é sustentada pelo ideário eugenista, de que certo conhecimento seja afixado a certas identidades.

    Acredita-se, também que há a necessidade de se teorizar outros aspectos fundamentais para a educação sexual infantil que não se acham eleitos no discurso, como a presença da sexualidade infantil e a formação do caráter homossexual dos gêneros. Deve-se, ainda, se considerar o fato de que as identidades sexuais são constructos sociais indissociáveis das dinâmicas do saber utilizado como forma de poder.

    Merece atenção, por fim, o fato que nas duas disciplinas propostas, há uma imensa lacuna entre a função atribuída e os caminhos previstos para o desempenho de tal papel. Muito embora, destaca-se ambas as disciplinas como campos propícios ao debate e aprendizado de questões referentes à sexualidade, os PCNs não a relacionam com os conteúdos próprios de cada disciplina de forma detalhada e, tampouco, aponta indicativos de uma perspectiva de abordagem pedagógica.


Considerações finais

    Após a análise efetuada, considera-se que o eixo norteador dos Parâmetros Curriculares Nacionais, desde seu documento introdutório, foi elaborado com uma fundamentação teórica questionável, dadas às contradições encontradas nas propostas pedagógicas e nos temas transversais, ditos como alternativos, mas encaminhados como publicação oficial. Considera-se, ainda, que o currículo escolar é um campo fértil para disseminação e manutenção da cultura hegemônica, na qual busca-se legitimar e sustentar um ideário de imposição de condutas programadas sobre a sexualidade dos indivíduos.

    Focando diretamente os PCNs que abordam a sexualidade, nota-se, inicialmente, uma inconsistência nos termos base que regem a temática. Sexo e sexualidade são definidos por perspectivas oriundas das Ciências Naturais, ou seja, com um viés biologicista.

    Diante das considerações arroladas, reitera-se que, apesar, de um discurso, aparentemente, libertador a favor de uma sexualidade orientada pelo prazer os PCNs de Orientação Sexual e Educação Física, vêm carregados com um conteúdo naturalista e normatizador, que entende a sexualidade sob o ponto de vista biológico, relegando sua constituição histórica e a diversidade das práticas sexuais.

    Entende-se que partindo de pressupostos de origem biológica, o encaminhamento seguinte, apesar da sugestão de um tratamento do conteúdo sob uma perspectiva histórica, segue, com magnificência, o discurso com sustentáculos na saúde. Nesse paradigma, a normatização e a disciplinarização são conseqüências aceitáveis. Assim, apesar da indicação da disciplina de Educação Física como portadoras de um ambiente favorecedor de experiência com o corpo e com a sexualidade, mantêm-se um discurso autoritário e conservador com ênfase no autocuidado e na disciplinarização da sexualidade.

    A forma de disciplinarização utiliza-se de técnicas minuciosas que definem, paulatinamente, o poder sobre os corpos. Os discursos analisados tratam de legitimar e manter, através da perspicácia de seus elaboradores, mensagens sutis, com intenções de múltiplos interesses que alcançam um grande êxito.

    Por fim, constata-se que os PCNs procuram, pela colocação da sexualidade em discurso, fomentar uma forma amena de controle sobre os indivíduos, utilizando-se de mecanismos e práticas que visam a produzir sujeitos autodisciplinados no que refere-se a sua individualidade sexual.


Notas

  1. Para mais informações acerca desse tema, consultar: RIBEIRO, Paulo Rennes Marçal. Sexualidade e Educação Sexual: apontamentos para uma reflexão. Araraquara: Editora Cultura Acadêmica, 2002, cap. 1.

  2. Por Moral vitoriana compreende-se um conjunto de virtudes vinculadas a postura moral, formadas por uma conotação sexual de castidade e fidelidade conjugal, obsessivamente puritana (MORAIS, 1999).


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