Lecturas: Educación Física y Deportes. Revista Digital

ENTRE DUAS CONCEPÇÕES PEDAGÓGICAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: UMA SÍNTESE COMO PROPOSTA
Prof. Pedro Rodolpho Jungers Abib

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3. A Educação Física Plural
Essa concepção é defendida por Jocimar Daolio, a partir de suas incursões teóricas no campo da Antropologia Social. Baseado em autores como Mauss (1974), Geertz (1978), Laplantine (1988) entre outros, ele parte da interpretação do movimento humano enquanto manifestação de cultura, de uma cultura própria, definida pela história de corpo e pelas vivências de cada um, para fazer uma crítica à grande maioria de profissionais ligados à Educação Física. Esses profissionais, segundo ele, não têm o costume de observar e valorizar as diferentes formas de expressão de movimentos presentes numa aula, desconsiderando todas as diferenças culturais existentes entre alunos e grupos de alunos.

É preciso destacar no entanto, que a Educação Física Plural não tem o caráter propositivo, no sentido de estabelecer critérios para a elaboração de programas escolares.

Encarar o movimento humano enquanto 'técnica corporal' (MAUSS,1974) construída culturalmente e definida pelas características de determinado grupo social - ou, em outras palavras, considerar que qualquer gesto é uma técnica corporal porque é uma técnica cultural - permite uma nova abordagem ao objeto de estudo da Educação Física. Permite que as diferenças entre os alunos sejam percebidas, e seus movimentos, fruto de sua história de corpo, sejam valorizados independente do modelo considerado 'certo' ou 'errado'. Isso é válido inclusive, no que diz respeito ao processo ensino-aprendizagem por exemplo, de determinadas modalidades esportivas, pois:

"... se todo movimento é técnico, não podemos falar numa técnica considerada perfeita ou correta, ou melhor, senão num contexto e numa situação devidamente delimitados. E notem que a Educação Física brasileira sempre defendeu o ensino de um técnica correta, elegendo alguns movimentos como melhores, e desconsiderando outras formas de expressão" ( DAOLIO, 1995)

A eficiência técnica, segundo o autor, sempre foi uma exigência da Educação Física em relação aos alunos, quer seja ela biomecânica, fisiológica ou em nível de rendimento esportivo. Ao buscar essa eficiência, desconsiderou a eficácia simbólica, ou seja, as maneiras como os alunos lidam, culturalmente, com as formas de ginástica, as lutas, os jogos, as danças, os esportes. Completa o autor dizendo:

"...falar em eficiência implica em pensar no fim, no resultado, no produto final. Falar em eficácia simbólica - que pode muitas vezes não funcionar em termos biomecânicos ou de rendimento esportivo, mas que é a forma cultural como os alunos utilizam as técnicas corporais - implica em considerar o processo, o meio..." (DAOLIO, 1995)

Nessa concepção, a Educação Física escolar não deve se colocar como aquela que escolhe qual a técnica que deve ser ensinada, mas deve ter como papel oferecer a base motora necessária a partir da qual o aluno pode praticar (ou não) a técnica eficiente.

Em outros termos, sua função deve ser a de eleger junto com o grupo de alunos, quais são as atividades valorizadas culturalmente naquele grupo, para então proporcionar essa base motora que permita ao aluno, a partir da prática, compreender, usufruir, criticar e transformar os elementos da chamada Cultural Corporal. A escolha vai depender portanto, segundo o autor, do grupo, do bairro, da cidade e da própria comunidade, que elege suas atividades mais significativas. Não cabe ao professor sozinho fazer isso, nem à Educação Física, enquanto área acadêmica.

Na Educação Física tradicional parte-se, conforme Daolio, da consideração que os alunos são todos iguais e procura-se destacar o diferente, o mais hábil entre todos. Na Educação Física Plural parte-se da consideração de que os alunos são diferentes e que a aula, para alcançar todos os alunos, deve levar em conta essas diferenças. A pluralidade de ações implica aceitar que o que torna os alunos 'iguais', é justamente sua capacidade de expressarem-se diferentemente.

4. Uma síntese de duas concepções como proposta
Na verdade, essas duas concepções analisadas são desdobramentos de um pensamento da Educação Física brasileira que surge no início da década de 80, em virtude da chamada crise que se instaura nessa área do conhecimento que tem como marco, entre outras publicações, o livro "Educação Física cuida do corpo e...mente" (MEDINA,1983), onde o autor procura questionar e fazer uma crítica aos modelos tradicionais existentes. A partir daí muito se tem discutido e produzido, inaugurando uma nova fase para Educação Física no Brasil.

Por essa razão, justamente por partirem ambas do mesmo eixo teórico proveniente dessas discussões, é que essas duas abordagens possuem características semelhantes, baseando-se em princípios norteadores que dão um outro sentido e significado ao papel da Educação Física, principalmente no âmbito da escola, em oposição aos paradigmas hegemônicos existentes até então.

No entanto, ao estabelecerem seus pressupostos teórico-filosóficos, elas acabam percorrendo caminhos diferentes, pois apesar de buscarem quase que o mesmo objetivo, pois utilizam-se do referencial de duas ciências que possuem epistemologias gestadas conjuntamente no século XIX, e até hoje possuem proximidades e interfaces - a Sociologia e a Antropologia Social - fazem uso de metodologias diferenciadas em relação ao objeto de estudo.

Ao basear-se no referencial teórico da Sociologia baseada no materialismo histórico-dialético de Karl Marx, a Educação Física Crítico-Superadora, concentra sua análise nas estruturas de dominação e poder presentes na sociedade, para depois estabelecer sua proposta político-pedagógica. Parte portanto, de uma análise macro-estrutural, buscando compreender e interpretar a complexa teia de relações sociais, como elemento chave de sua proposta de intervenção pedagógica. Procura entender primeiro a sociedade, para então construir sua concepção de ser humano e de educação, conforme a classe social pela qual faz a opção, e o projeto de sociedade que vislumbra.

Em nosso entender, essa concepção representa um grande avanço para o pensamento da Educação Física brasileira pois introduz, através da Sociologia de cunho marxista, o pensamento crítico nessa área do conhecimento apontando claramente para um projeto político-pedagógico de transformação social. Porém, por concentrar sua análise numa perspectiva macro-estrutural da sociedade, acaba correndo o risco de não ser capaz de interpretar o ser humano no que lhe é mais específico: sua individualidade e sua subjetividade.

Talvez tenha sido esse o grande erro da maioria dos sistemas de governo considerados 'socialistas' nos países onde foram aplicados: não considerar os aspectos ligados à subjetividade dos sujeitos, a partir de uma coletivização exacerbada não só dos meios de produção, mas também das idéias, preferências, sonhos e diferenças étnicas e culturais de toda uma população que não era, e nunca será, homogênea.

Não queremos afirmar aqui, que a Educação Física Crítico-Superadora defenda essa concepção de mundo e de sociedade, porém alertamos para o risco de que uma análise macro-estrutural menos atenta, pode impedir uma interpretação mais aprofundada da realidade social, a partir da pluralidade e diversidade que se fazem presente não só em qualquer grupo de alunos, como também nas diversas 'tribos' existentes numa sociedade, utilizando o conceito pós-moderno de Maffesoli (1987).

É o risco que se corre quando a análise da estruturas de dominação em nossa sociedade, é feita simplificadamente, situando o dominante de um lado e o dominado de outro, esquecendo-se que a teia de relações sociais hoje em dia, é muito mais complexa, e que não podemos cometer o erro de cair numa generalização nada eficaz quando utilizamos apenas conceitos como dominado, oprimido ou popular, que pode acabar desconsiderando toda uma diversidade étnica e uma pluralidade cultural presentes nesses grupos.

Essa diversidade étnica e cultural determina uma série de fatores, que em última instância, vão nos remeter a universos simbólicos e sistemas de valores diferenciados, e que têm que ser levados em conta ao tentarmos elaborar uma proposta pedagógica que leve em consideração as características de uma sociedade injusta e autoritária como a nossa, constituída por grupos populares muito distintos entre si.

Por outro lado, o próprio discurso Pós-moderno tão em moda ultimamente, serve muito bem aos interesses dos setores mais estratificados da sociedade, pois permite 'abrandar' as relações de dominação e poder, deslocando o eixo da discussão do âmbito geral para o específico. Em nossa opinião esse 'desfocamento' da questão, contribui para que o centro da discussão não seja mais as macro-estruturas que em última análise, vão determinar as desigualdades sociais, mas sim as micro-estruturas, as particularidades presentes na diversidade e na pluralidade, explicação portanto, menos abrangente.

As discussões envolvendo os conceitos de diversidade e pluralidade, muito comuns hoje em dia, são fundamentais, sobretudo em função dos equívocos históricos cometidos por experiências no campo socialista, que nunca deram a devida importância a essa questão. Porém, se nos limitarmos a esse tipo de análise, corremos o risco de não sermos capazes de interpretar a nossa realidade de forma mais abrangente, no que diz respeito as determinantes sócio históricas das condições extremamente injustas que o atual modelo de sociedade nos impõe.

Entendemos ser absolutamente necessário identificar junto aos grupos populares, quais são suas representações e como lidam com essa nova realidade que se apresenta nesse universo 'globalizado', reconstruindo valores e significados, ao reinterpretar seu mundo segundo esses códigos, numa perspectiva de pluralidade e diversidade cultural. Contudo não podemos em hipótese alguma, como querem os pós-modernistas, abandonar os intrumentos de análise da macro-estrutura e de suas determinantes sócio-político-econômicas, pois somente elas podem explicar as relações de dominação e poder presente em nossa sociedade.

Não se trata de desconsiderar portanto, o conflito de classes, nem o instrumental materialista histórico-dialético de análise, mas lançar um novo olhar para essa legião de excluídos, a qual devemos dar a devida importância em nosso projeto político-pedagógico. Dar a devida importância, significa considerar toda a diversidade presente nesse universo de excluídos. Portanto esse olhar deve levar em conta essas diferenças, deve ser um olhar mais revelador. E é justamente aí que o pensamento antropológico traz sua grande contribuição.

A Educação Física Plural por sua vez, através da abordagem antropológica, parte justamente da preocupação em interpretar o ser humano, a partir da diversidade e da pluralidade presentes na sua história de corpo, sua cultura, enfim, seu mundo.

Essa proposta teórica faz o caminho inverso de uma abordagem sociológica: parte do ser humano, sua cultura e suas especificidades, para depois então tentar explicar a sociedade da qual faz parte esse ser humano.

Essa concepção de Educação Física representa também um grande avanço para a área, na medida em que inclui essa importante contribuição da Antropologia - dá-nos a possibilidade de um 'novo olhar' para esse ser humano que se movimenta e que, em se movimentando e expressando assim sua diferença em relação ao outro, produz cultura.

Porém, ao analisarmos com maior profundidade a obra de Daolio, percebemos que ela não se propõe a fazer um estudo aprofundado sobre os mecanismos de dominação e alienação presentes em nossa sociedade - talvez por não ser esse o propósito da Antropologia, pois enquanto ciência preocupada com o homem, até analisa esses mecanismos, porém em situações particulares, devidamente contextualizadas.

Entendemos que essa análise mais particularizada é muito importante, principalmente se o objetivo é um enfoque pluricultural dentro de um processo educativo. Porém, os aspectos mais gerais, macro-estruturais e que, por esta razão, determinam as relações de dominação presentes na sociedade, são imprescindíveis para uma análise mais abrangente. Isso se quisermos caracterizar a Educação Física, enquanto disciplina capaz de contribuir para uma maior consciência crítica dos alunos em relação à sua realidade e o seu contexto sócio-político-econômico-cultural.

Não podemos portanto, desconsiderar uma análise baseada em elementos do referencial teórico proveniente do materialismo histórico-dialético, ao idealizarmos um proposta político-pedagógica comprometida com a transformação social.

As contradições existentes em nossa sociedade, os mecanismos de dominação, alienação e exploração, têm que ser explicitados em qualquer processo pedagógico que tenha como objetivo a formação de indivíduos mais críticos, autônomos e construtores de seu futuro. A interpretação de sua realidade, é elemento chave nesse processo.

Percebemos então o caminho inverso percorrido pelas duas concepções de Educação Física aqui analisadas: uma, parte da sociedade em direção ao ser humano, e a outra, parte do ser humano em direção a sociedade.

A nossa proposta se baseia justamente na crítica ao que torna essas duas concepções, em nosso ponto de vista incompletas, ou seja, o risco que ambas correm de não serem capazes, no âmbito de um programa de Educação Física escolar, de interpretar o ser humano em movimento - o nosso objeto de estudo - em toda sua complexidade, e de forma mais abrangente, considerando tanto as determinantes sociais que sobre ele atuam, como também as suas especificidades e diferenças culturais.

A título de exemplificação dessa proposta, podemos descrever um processo pedagógico envolvendo o conteúdo futebol, numa aula de Educação Física, onde o professor deverá estar atento no sentido de valorizar, não só as diversas formas de praticar esse futebol sob o ponto de vista da cultura popular (variações de jogos como o "golzinho" e o "virou" na Bahia, ou a "rebatida" e o "tentear" em São Paulo), como também as implicações político-ideológicas que envolvem esse fenômeno esportivo em nosso país, como a alienação, a espetacularização, e a mercadorização, provenientes da forma como esse esporte é estruturado em nossa sociedade.

Portanto, entendemos que uma proposta de Educação Física escolar, não deva prescindir nem do referencial teórico fornecido pela Sociologia, nem tampouco daquele fornecido pela Antropologia. Ou dito de outra forma: uma abordagem sociológica sobre o ser humano em movimento, não pode ignorar os instrumentos de análise próprios da Antropologia, assim como uma proposta pedagógica com bases antropológicas não pode desconsiderar as contribuições teóricas da Sociologia, sobre as estruturas de poder e dominação presentes em nossa sociedade.

Por essa razão, a proposta pedagógica que ora defendemos, pressupõe a síntese dessas duas concepções analisadas - a Educação Física Crítico Superadora e a Educação Física Plural - como uma nova proposta em busca da superação dessas duas importantes abordagens teóricas da área, pois entendemos que o tempo em que vivemos, exige uma visão mais ampliada de nossa realidade. Uma visão que possa ser abrangente o suficiente para interpretar o fenômeno do ser humano em movimento, tanto sob o ponto de vista de suas particularidades, como também a partir de sua contextualização nessa sociedade em que vivemos.

As transformações pelas quais passa o mundo atual, nos pede respostas rápidas e ao mesmo tempo coerentes com tais mudanças, sem que com isso no entanto, percamos de vista o projeto de homem e de sociedade pelo qual gerações e gerações têm lutado.

Queremos reafirmar nesse trabalho, a grande contribuição que essas duas concepções trouxeram para o processo de transformação pelo qual passa essa disciplina. Porém, isoladas, são concepções limitadas, pois entendemos que somente ao se completarem, através da utilização mútua dos elementos teóricos de análise que as caracterizam, podemos avançar no sentido da construção de uma proposta pedagógica de Educação Física realmente transformadora e em consonância com o nosso tempo, e com um projeto de sociedade mais humano e justo.

A proposta teórica que aqui defendemos ainda carece de uma maior sistematização e aprofundamento (apesar de fazer parte de dissertação de mestrado recentemente defendida), pois os aspectos aqui delineados apontam para a necessidade de um trabalho posterior no sentido de uma melhor estruturação. Porém, acreditamos poder contribuir através dessas reflexões, na perspectiva da construção e reconstrução de um projeto político-pedagógico transformador para a Educação Física Escolar, nesse atual momento histórico.


Referências bibliográficas

Lecturas: Educación Física y Deportes
Revista Digital

http://www.efdeportes.com/
Año 3. Nº 11. Buenos Aires, Octubre 1998.