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Violência no contexto esportivo.
Uma questão de gênero?
Violence in the sporting context. Is it a gender issue?

   
*Professora de Educação Física da ULBRA/SM. Mestre
em Desenvolvimento Humano: Psicologia do Esporte. UFSM.
**Doutora em Psicologia Social (UAM-Espanha).
Pesquisadora do CNPq.
(Brasil)
 
 
Maria Cristina Chimelo Paim*  
Marlene Neves Strey**
crischimelo@bol.com.br
 

 

 

 

 
Resumo
     O presente artigo apresenta uma revisão crítica de literatura sobre a violência no contexto esportivo. As violências no contexto esportivo se apresentam hoje, como um grave problema social. Enfocamos a violência como algo que não faz parte da natureza humana do ser humano, e sim ela é produzida e reproduzida através das ações de homens e mulheres, portanto um fenômeno gerado nos processos sociais, históricos e culturais. Muitos são os episódios de violência física que mancham os esportes, em especial no futebol, agressões entre os jogadores, a violência nas torcidas organizadas, o fanatismo esportivo, entre outros. Mas o foco principal deste artigo é abordar um tipo de violência, que ainda hoje passa muitas vezes desapercebido pela maioria das pessoas, é a violência de gênero contra mulher no contexto esportivo. Este é um tipo de violência, silenciosa, que discrimina, excluí e estigmatiza as mulheres atletas. Essa violência, em alguns casos pode se transformar em obstáculos e impedimentos para a participação e progressão da atleta em qualquer terreno esportivo. Deste modo a violência de gênero contra a mulher no esporte, pode ser considerada como um instrumento de poder criado e ratificado pelo sistema patriarcal, uma vez que as assimetrias sociais refletem as relações de dominação e opressão que transformam as desigualdades sociais, econômicas, políticas, em exclusão. Sendo assim essa violência compromete o desenvolvimento saudável da sociedade como um todo e se transforma em um problema também de saúde pública. Esta revisão analisa o assunto procurando despertar à curiosidade e o interesse dos leitores para a produção científica de novos trabalhos relacionados ao tema, visto a insipiência de publicações na área.
    Unitermos: Violência. Esporte. Gênero.
 
Abstract
     This article presents a critical review of the literature about violence in the sporting context. This kind of violence is nowadays a serious social problem. We consider that the violence is not something that constitutes the human beings, but it is produced and reproduced through actions of men and women, so, it is a phenomenon originated on social, historical and cultural processes. There are many events of physical violence that smear sports, especially in soccer games, where we see aggressions among players and supporters and the sporting fanaticism. However, this article is focused in a kind of violence that usually is not noticed by people, the gender violence against women in the sporting context. This one is a silent kind of violence that discriminates, excludes and brands women athletes. In some cases, this violence can become and obstacle and an impediment for the participation and progress of the athlete in any sporting field. So, the gender violence against women in sports can be considered a way of domination created and ratified by the patriarchal system, reflecting the relationships of domination and oppression of our society. These relationships are the ones that transform the social, economical and political inequalities in exclusion. Finally, this violence implicates in an unhealthy development of the whole society and also becomes a problem of public health. This review analyses the topic aiming to rouse the curiosity and interest of readers to the new scientific production related to this topic, taking in consideration the lack of sapience of the productions about this subject.
    Keywords: Violence. Sport. Gender.

Este artigo integra a tese de doutorado: Violência contra a mulher no esporte sob a perspectiva de gênero.
Apoio da agência financiadora CAPES.

 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 12 - N° 108 - Mayo de 2007

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Introdução

    Este artigo tem como objetivo escrever, pensar e refletir sobre um fenômeno, que, infelizmente, encontra se em crescente evidência na atualidade; referimo-nos à violência no contexto esportivo. O esporte, em especial o futebol, tem sido palco de constantes episódios de violência. Essa violência, muito comum entre os jogadores, juízes, comissão técnica, dentro de campo, muitas vezes extrapola o recinto da competição, influencia negativamente os espectadores, estimula a formação de torcidas organizadas, aumenta o preconceito e os estereótipos de gênero, entre outros. Esses são apenas alguns exemplos que envolvem a violência no contexto esportivo. Mas perguntas se fazem pertinentes para tentarmos entendermos a relação entre esporte, violência e gênero: quais fatores sociais impulsionam essa aproximação? O que motiva as pessoas ao comportamento violento no contexto esportivo? A violência no esporte é uma questão de gênero? Que gênero tem a violência no esporte?

    Este texto não tem a pretensão de esgotar tais questionamentos, mas será um espaço de reflexão sobre tais inquietações, onde tentaremos discutir as aproximações entre violência e gênero no contexto esportivo.


Violência, esporte e relações de gênero

    A origem etimológica da palavra violência vem do latim, vis, que significa força, vigor, potência, violência, emprego de força física, mas também quantidade, abundância, essência ou caráter essencial de uma coisa1,2. De acordo com Chauí3, violência significa todo ato de força contra a natureza de algum ser; de força contra a espontaneidade, à vontade e a liberdade de alguém; de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade; de transgressão contra aquelas coisas e ações que determinada sociedade define como justas e como um direito. É, portanto, um ato de brutalidade, abuso físico e ou psíquico contra alguém e caracteriza relações sociais calcadas pela opressão, intimidação, pelo medo, pelo terror.

    No presente artigo, assume-se a violência como algo que não faz parte da natureza do ser humano, mas como resultado das relações sociais, nem sempre justas e igualitárias.

    A violência, de acordo com a Asociación pro Derechos Humanos4, é uma forma de exercício de poder mediante o empenho da força física ou psicológica e implica altos e baixos, fatos e símbolos que adotam, habitualmente, a forma de papéis que se complementam: pai-filho, homem-mulher, professor-aluno, patrão-empregado, jovem-velho, etc.

    Para ilustrarmos os tipos de violência presentes nas relações sociais recorremos a Werba5, quando diz que, os atropelamentos, agressões físicas, assaltos, seqüestros, assassinatos, torturas, estrupos, guerras, etc., são os exemplos mais comuns de violência, e configuram a violência física. Também podemos citar a violência em âmbito econômico, quando há a privação do dinheiro, há o trabalho escravo. A violência sexual ocorre quando a pessoa é obrigada a realizar qualquer ato sexual contra a sua vontade6. A violência simbólica, de acordo com Bourdieu7 tem o poder de construção da realidade, através de símbolos, que tendem a estabelecer o sentido imediato do mundo, em particular do mundo social. A violência simbólica pode ser exercida por diferentes instituições da sociedade, como o Estado, a mídia, a escola. A violência psicológica, que conforme a Rede Saúde8, é toda a ação ou omissão que causa ou visa dano à identidade ou ao desenvolvimento da pessoa.

    Para Pereira9, Pimenta10 e Waiselfisz11, a violência é um fenômeno que se encontra disseminado em diversas instituições da sociedade, tais como a família, a escola e o esporte. Esta se faz, cada vez mais presente em nossa sociedade, afetando a população de um modo geral, perpassando a todas as pessoas, independente de sua classe social, raça, gênero. Desta forma, pensar, discutir e refletir sobre a violência torna-se um elemento fundamental para compreendermos a dinâmica cultural contemporânea.

    O tema violência vem ganhando parte significativa na agenda social, em especial nos veículos de comunicação de massa. Também nos meios acadêmicos muitos estudiosos têm se dedicado ao tema. Em muitas emissoras de televisão o tema violência é garantia de altos índices de audiência, fazendo com que a população vivencie diariamente cenas de assaltos, tiroteios, chacinas, seqüestros, ataques terroristas, e, mais recentemente, ter o (des) privilégio de presenciar uma guerra ao vivo.

    Na mídia esportiva, o tema violência vem ganhando constantes destaques, com episódios lamentáveis de agressões entre torcedores, com jogadores se agredindo fisicamente dentro de campo, com a presença de preconceitos raciais e de gênero, entre outros.

    Betti12, em seu livro a "Violência em Campo: dinheiro, mídia e transgressão às regras no futebol espetáculo", coloca que o incremento e a comercialização do futebol profissional nas últimas décadas provocou uma profunda alteração neste esporte, no que diz respeito às pressões que os atletas sofrem, como por exemplo: de terem que ganhar a qualquer preço, pressões dos patrocinadores, da mídia, etc. Essas pressões fazem em muitos casos, que os jogadores transgridam as regras que regem os esportes, ocasionando um aumento de comportamentos violentos, sejam eles físicos ou verbais.

    No dia 13 de abril de 2005, o jornal "Zero Hora", de Porto Alegre/RS13, publicou em seu caderno Esportes, uma matéria sob o título: "torcida de várzea em Milão", onde relatava um dos tantos episódios de violência que vêm ocorrendo no mundo esportivo, quando o goleiro Dida foi atingido por um sinalizador, ou seja, um rojão que foi jogado pela torcida, logo após o árbitro ter anulado o gol de empate da Inter.

    Outro caso bastante divulgado na mídia é o grande aumento de preconceitos racistas, como, por exemplo, chamarem determinado jogador de macaco, ou às vezes a torcida imitar um macaco, toda vez que determinado jogador toque na bola, nos estádios de futebol. Na revista veja de 30 de março de 2005, a reportagem: "os craques chutam o racismo", fala do preconceito nos estádios de futebol e da revolta dos jogadores contra essas manifestações de violência, o que está motivando a Europa a lançar campanha anti-racismo nos estádios de futebol14.

    Aqui no Brasil, no dia 14 de abril de 2005, durante o jogo entre São Paulo e o Quilmes, time argentino, tivemos um episódio de racismo envolvendo o jogador brasileiro, Grafite e o jogador argentino Desábato. Durante a partida Grafite foi vítima de violência, ou seja, palavras de cunho racista, as quais partiram do jogador Desábato, após uma entrada violenta de Grafite. O caso ganhou proporções extra estádio, que resultaram na prisão do jogador argentino15.

    Pinsky e Col16, em seu livro "Faces do fanatismo", no último bloco, analisam o fanatismo esportivo. O fanatismo é uma manifestação de grupos que se consideram detentores de uma verdade e que ela, "a sua verdade", deve prevalecer, nem que seja às custas da vida do outro. No caso do esporte, o torcedor fanático é um indivíduo, por exemplo, que é torcedor do Corinthians, e tem absoluta convicção de que aquele que não é suficientemente corintiano, não serve para nada. O outro não é adversário, mas sim, um inimigo. Mas o perigo do fanático ou do fanatismo consiste exatamente na certeza absoluta e incontestável que ele tem a respeito de suas verdades. Ele tem uma verdade, que significa, não qualquer verdade, mas a Verdade. O fanático não aceita discussões ou questionamentos racionais com relação àquilo que apresenta como sendo seu conhecimento.

    Percebe-se que há um deslocamento dos motivos que presidiram a formação das torcidas organizadas, que era de incentivar o clube do coração, e se cria um grupo de solidariedade, que se auto protege, e luta contra um inimigo imaginário, que em muitos casos, parece ser toda a sociedade. Uma revolta gratuita. As torcidas organizadas formam grupos, cobram mensalidade, vendem camisetas, etc. Em muitos casos já virou um negócio. Os chefes das torcidas não podem ver seu time perder, pois as vendas caem. Assim o interesse deles não é mais torcer pelo clube do coração, e sim vender produtos. Em algumas cidades eles saem às ruas após os jogos quebrando tudo, automóveis, lâmpadas dos postes, vidraças de vitrines, destroem placas de trânsito, sem falar no que já destruíram dentro do estádio, principalmente se for do time adversário.

    A prática esportiva e/ou a participação em uma torcida, constituí momento de expansão das emoções reprimida pelo meio social cotidiano. Assim, é no coletivo da torcida que o indivíduo encontra identidade e afinidade para manifestar suas repulsas e fazer coisas que não faria isoladamente. É a manifestação do sentimento de impotência e da frustração pessoal, diluídas no coletivo das arquibancadas.

    O torcedor, no nicho das torcidas organizadas, não é mais um mero espectador do jogo. Em muitos casos, de acordo com Pimenta17, ele dita as regras, ele é parte do espetáculo. No grupo, ele expressa sua masculinidade, sua solidariedade, seu companheirismo, sua pertença a um grupo. Os torcedores representados nessas torcidas são pessoas de todas as classes sociais, que vão aos estádios pela diversão, pela viagem, pela bebida, pelo sentimento de excitação do jogo, e, até pelo prazer de atos de violência. São na maioria homens jovens, sendo que atualmente, encontramos a presença feminina, que, em episódios violentos, é protegida por seus pares, permanecendo fora dos conflitos. Vale ressaltar, segundo Da Silva18, que em muitos casos, a disputa por uma mulher do grupo, pode ser o estopim de um acontecimento violento.

    Outro tipo comum de violência, no contexto esportivo, é o que discrimina a mulher esportiva, com preconceitos e estereótipos. Esses preconceitos, estigmas, quando afetam direta e individualmente as atletas, oprimindo-as psicologicamente, ou transformando-se em obstáculos e impedimentos para a participação e progressão da atleta em qualquer terreno esportivo, ou seja, afetando ou violando os seus direitos, refletem um tipo especial de violência, ou seja, a violência de gênero, neste caso a mulher esportista.

    A prática de esportes ainda é considerada uma atividade de domínio masculino pela sociedade, principalmente, em se tratando de esportes como o futebol, o handebol, as lutas. Às mulheres é permitida à participação nas ginásticas, balés e atividades físicas ditas femininas, que, por sua vez, são modalidades "proibidas" para os homens. Alguns autores como, Saffioti19; Strey20, referem-se a um conceito chamado de violência de gênero, para definir essa situação, na qual, aparecem às relações entre a violência e as relações de gênero.

    Mesmo com muitas polêmicas à volta do conceito de gênero, achamos que é indispensável definir qual o entendimento que temos sobre o mesmo. É bastante comum a questão do gênero aparecer em estudos e pesquisas e nos discursos de profissionais de diversas áreas, assim como nos meios de comunicação. Mas afinal, o que é gênero?

    Para falarmos em gênero, é necessário antes esclarecermos algumas questões iniciais, como as diferenças entre sexo e gênero, embora ambos sejam conceito construído social, cultural e historicamente. Segundo Strey21 sexo diz respeito aos aspectos biológicos dos seres humanos, sendo um sistema multivariado e seqüêncial, incluindo o lado cromossômico, o hormonal, o fetal, o gonodal e o morfológico. Assim, sexo é o que caracteriza física e biologicamente a mulher e o homem. Já o gênero, é normatizado, a partir dos órgãos externos dos bebês. Emerge aparentemente como fruto do consenso e não do conflito, influência comportamentos, interesses, estilos de vida, tendências, responsabilidades, papéis sociais, auto-imagem, auto-estima e personalidade.

    De acordo com Oliveira22, o sexo identifica as diferenças biológicas e seu papel termina na reprodução. O gênero é o conjunto de características e comportamentos que cada sociedade atribuí a cada um dos sexos. Sua influência ou seu papel estende-se ao longo da vida, nutrindo-se pelas idéias políticas, religiosas, científicas, etc. É também, uma construção social e histórica, onde está inserido o conceito de pluralidade, pois nas diversas sociedades, encontramos diferentes concepções de homem e mulher, sendo essas concepções também diversificadas, conforme a religião, classe, raça, idade, etc. No entanto são reconhecidos os sexos biológicos: macho e fêmea, e os gêneros sociais: feminino e masculino23.

    O termo gênero apareceu primeiramente entre as feministas americanas, para salientar a construção social e normativa das diferenças entre homens e mulheres. Segundo Soihert24, a palavra indicava uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como sexo ou diferença sexual. Assim, gênero sublinha o aspecto relacional entre as mulheres e os homens, ou seja, nenhuma compreensão de qualquer um dos dois pode existir através de um estudo que os considere em separado. Tratando de relações, diferenças, normas, denotam que tanto as mulheres como os homens, só podem se entender e serem entendidos, em função uns dos outros. O caráter relacional diz respeito às relações de dominação e opressão que transformam as diferenças biológicas entre os sexos em desigualdades, escolhas, trajetórias, vivências, lugares, interesses25.

    Definir gênero não é tarefa fácil, pois além de apresentar vários significados, agrupa no seu bojo os sentidos mais amplos ligados a caracteres convencionalmente estabelecidos. No presente artigo, nos baseamos prioritariamente no conceito de Scott26. A autora divide o conceito de gênero em duas proposições. Na primeira, considera gênero como um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos; na segunda, gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder. Assim para a autora, os gêneros são produzidos nas e pelas relações de poder. Nesta perspectiva pode-se dizer que é a sociedade quem define, ou dita as características que devem fazem parte do universo masculino e feminino.

    Com a incorporação das questões de gênero na sociedade, surgiram os estereótipos, que tendem a classificar essas categorias como representativas destes grupos. Como característica feminina geralmente aparece a submissão, a fragilidade, a fraqueza física. A mulher é percebida, nas concepções estereotipadas tradicionais, como: "incapaz" de produzir, física e intelectualmente, tanto quanto o homem, sendo inferiorizada na sociedade. Como característica masculina geralmente aparece à força física e intelectual, o poder, a superioridade, o guerreiro27.

    A violência de gênero é o reflexo das relações desiguais entre os sexos, na medida em que nos identifica quem são as pessoas que violentam e quem são as pessoas que sofrem violência. Para Strey & Werba28 a violência de gênero é praticada pela pessoa ou instituição que detém o poder para punir física e ou emocionalmente, mandar e controlar visível ou invisivelmente a conduta das diferentes categorias sociais.

    Nesse sentido, violência de gênero, ou violência contra a mulher, segundo Aznar29 (p. 428):

"É todo ato de força física ou verbal, coersão ou privação ameaçadora para a vida, dirigida às mulheres, que cause danos físicos ou psicológicos, humilhação ou privação arbitrária da liberdade e que perpetue a subordinação feminina, a qual tem por objetivo estabelecer os limites de controle que se exerce contra a mulher".

    Para o entendimento da violência de gênero, é fundamental entendermos que sua gênese e manutenção na sociedade estão relacionadas ao conceito de patriarcado. As relações assimétricas entre os gêneros vêm mostrando que as sociedades patriarcais engendram e sustentam relações e modos de produção nos quais os homens como categoria social levam vantagens sobre as mulheres, nas mesmas condições.

    O sistema patriarcal corresponde a uma organização social que se rege por dois princípios básicos: as mulheres estão hierarquicamente subordinadas aos homens, assim como os mais jovens estão hierarquicamente subordinados aos homens mais velhos30. No exercício da função patriarcal, cabe aos homens o controle da conduta das categorias sociais, mulheres, crianças, adolescentes, os mais jovens, etc., recebendo autorização ou tolerância da sociedade para punir o comportamento tido como desviante31.

    O controle da conduta das categorias sociais, não é exercido apenas por indivíduos do sexo masculino, pois a ordem patriarcal de gênero é tão difundida que é exercida por outros agentes sociais, como uma mulher, por exemplo - podendo também afetar a outro homem, ou contra outra mulher ou criança. Portanto, a violência contra mulheres, crianças, adolescentes e idosos, é uma conseqüência da cultura patriarcal que valoriza a agressividade masculina. Dessa forma, pode-se dizer que, quando uma pessoa tem seus direitos, sejam eles direitos mais elementares ou os mais complexos, violados, estamos diante de uma violência. Se a violência ocorre pelo fato da vítima pertencer a um determinado gênero, no caso, pelo fato de ser mulher, trata-se de uma violência de gênero ou violência contra a mulher32.

    A violência de gênero constitui elemento fundamental, das relações desiguais, existentes entre homens, mulheres, crianças, adultos e idosos, inseridos nas sociedades patriarcais. Essas desigualdades refletem as relações de dominação e de opressão que transformam as desigualdades sociais, econômicas, políticas, em exclusão. Fazendo-se presente, a violência de gênero, na política, nas leis, no mercado de trabalho, nas idéias veiculadas na mídia, na família, na escola, na economia, no esporte, etc.,

    Apesar da evolução e atuação feminina em todos os setores da sociedade, inclusive no esporte, não significa que, a participação ativa da mulher no esporte, não continue sendo motivo de questionamentos. O ambiente esportivo é envolto por sentimentos tais como: vontade de vencer, agressividade esportiva, destruição simbólica do adversário, combate físico, etc, características atribuídas ao ideal masculino33. Desta forma, uma ação mais ríspida, executada por uma mulher, oriunda de uma determinada jogada, pode ser mal interpretada, dando origem a preconceitos, discriminações, estereótipos, oriundos muitas vezes da família das atletas, da mídia, e da sociedade em geral. Nesse sentido, podemos citar alguns exemplos como: piadas estigmatizantes, insinuações quanto à sexualidade da atleta, a falta de apoio social para as mulheres que desejam ingressar no esporte, os comentários e fotos machistas utilizadas pelas mídias, a exaltação da beleza física da atleta em detrimento do talento esportivo, etc.

    A reportagem do Caderno de Esportes da Folha de São Paulo de 16 de setembro de 2001, com o título "FPF institui jogadora-objeto no Paulista", ilustram bem essas discriminações. A reportagem relatava que a Federação Paulista de Futebol, na organização da modalidade na versão feminina, tinha como objetivo principal o embelezamento das atletas, unindo a imagem do futebol à feminilidade. Era exigência da Federação as atletas não terem mais de 23 anos e possuírem cabelos compridos34.

    O contexto esportivo, em seus vários níveis, seja amador ou profissional, ainda é bem machista. Embora haja um grande aumento de mulheres envolvidas com a prática do esporte, o mercado de trabalho para a mulher é mais restrito do que para o homem. Os cargos administrativos são, na sua grande maioria, ocupados por homens. Há mais equipes masculinas inscritas nas competições, há mais técnicos, mais comentaristas, mais repórteres especializados. Os salários da equipes femininas são bem inferiores, quando comparados aos salários das equipes masculinas, entre outros.

    Um exemplo que vale a penas ser lembrado, e que ilustra bem a atual situação da mulher no contexto esportivo, é a exclusão da mulher no Comitê Olímpico Internacional (COI). Até agora, todos os brasileiros que fizeram parte do comitê são homens, e também a insignificância dos salários e a falta de patrocínio, das jogadoras de futebol feminino da Seleção brasileira.

    Para o entendimento da violência contra a mulher no esporte, em especial da violência psicológica e simbólica, é imprescindível que não se dissocie a questão de gênero, pois estas mantêm uma relação bastante estreita. Historicamente, as mulheres têm vivido numa cultura masculina, que coloca inúmeros obstáculos, quando querem ultrapassar os tradicionais papéis que a sociedade tenta impor a ambos os sexos.

    Vivemos, portanto, numa sociedade desigual quanto ao gênero, sendo o homem o possuidor do papel de dominador. Esta constatação, aliada às reflexões do movimento feminista a respeito da impossibilidade do entendimento das mulheres a partir de pressupostos universais genéricos, leva-nos a refletir sobre a impossibilidade de se analisar criticamente a categoria "esporte" sem um recorte de gênero, pois seria também ocultador do real entender que as relações entre os esportistas não são atravessadas por relações de gênero.

    Estas relações sociais são assimétricas e hierarquizadas. A desigualdade é mantida e legitimada pelo sistema simbólico e representacional35. Sendo assim, a violência de gênero se faz presente na desigualdade, no desprestígio social, na falta de oportunidades, no baixo status enfim, na inferioridade conferida às atividades socialmente atribuídas às condutas e possibilidades reservadas para o gênero feminino. Estas considerações apresentam-se bastante visíveis no contexto esportivo.

    Uma tentativa de entendermos e explicarmos esses preconceitos e discriminações sofridas pela mulher no esporte está no entendimento da cultura da masculinidade. De acordo com Saraiva36 e Strey37 para o entendimento dessa cultura, devemos nos reportar à maneira como meninos, adolescentes e homens constroem a sua masculinidade, ou seja, que modelos de comportamentos são seguidos, como vêm e interagem com as meninas, com as adolescentes e com as mulheres. Esses modelos, infelizmente estão permeados de uma grande dose de violência, pois se espera do comportamento masculino um mínimo de agressividade ou violência, para expressão de sua condição masculina. E, como o esporte ainda é um mundo masculino, não é de se estranhar que seja muito violento dentro e fora do campo.

    A inserção social das mulheres no contexto esportivo é um processo lento que começou há pouco tempo, face ao longo período em que lhes eram impostas condições de submissão, reclusão e impotência. Hoje, ainda que continuem existindo barreiras como os preconceitos, os estereótipos, a falta de incentivo e patrocínio para as mulheres se desenvolverem e crescerem no esporte, encontramos um número expressivo de mulheres envolvidas com a prática esportiva.

    Desta forma, percebe-se que a mulher vem buscando seu espaço e sua identidade no contexto esportivo, assim como na sociedade. Desde a participação solitária de Maria Lenk, primeira brasileira a participar dos Jogos Olímpicos, em Los Angeles, no ano de 1932, até a grande delegação feminina enviada pelo Brasil nos jogos de Atenas em 2004, muitas foram as conquistas alcançadas pelas mulheres no esporte. Porém, ainda estão muito longe de conseguir plena igualdade e eqüidade quando comparadas aos atletas homens.


Considerações finais

    Tendo como base às reflexões levantadas no presente artigo, identificamos que as relações entre esporte, violência e gênero, apresentam uma estreita conexão, formando um fenômeno extremamente complexo. Os sentimentos desencadeados nos esportes se expressam através de um conjunto de práticas sociais, as quais mantêm estreitas ligações com a construção de gênero dos participantes. O esporte, ainda é atualmente, um mundo masculino. Estudiosos como Shinabargar38 e Cecchetto39 (2004), dizem que, talvez o esporte seja o mais importante rito social para a identidade masculina, pois ele incorpora os traços idealizados como masculinos: a agressividade, a lealdade, a competitividade, o combate, a rivalidade, o prazer da vitória, etc.

    Homens e mulheres são produtos dos diferentes tipos de sociedade que, via de regra, reforçam as diferenças pessoais e sociais na manutenção do "status quo". Devido à relação íntima entre esporte e masculinidade, os preconceitos e estereótipos face às mulheres atletas cruzam os limites das mais variadas formas de discriminação. As relações sociais desenvolveram e legitimaram, através dos tempos, inúmeros preconceitos e falsas consciências, que limitam a participação feminina em modalidades esportivas competitivas ou não, as quais dizem respeito aos homens. Por essa razão o estereótipo de ideal feminino se dissocia da mulher atleta, representando um produto de papéis conflitantes com os próprios valores de desigualdade social entre aquele que supostamente domina, ou seja, o homem, e o que é supostamente dominado, ou seja, a mulher. Aos poucos, as mulheres vêm estabelecendo critérios e estratégias para seu envolvimento cada vez mais acentuado no esporte, em um contexto que atravessa os valores fundamentados pelo domínio masculino. Pensamos que as mulheres não devem buscar a igualdade entre os gêneros no esporte, mas sim, a equivalência de direitos e, por conseguinte, de deveres. Somente através desta busca construiremos relações sociais baseadas em valores de eqüidade e justiça para todos (as).


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revista digital · Año 12 · N° 108 | Buenos Aires, Mayo 2007  
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