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Esporte contemporâneo e olimpismo
na cobertura dos Jogos Olímpicos
Contemporaneous sport and olympism in the Olympic Games

   
Doutorando em Ciências da Comunicação, UNISINOS.
Professor do Curso de Educação
Física do Centro Universitário Feevale.

 
 
Gustavo Roese Sanfelice
sanfeliceg@bol.com.br
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
     Este trabalho teve como objetivo identificar os valores e as características do esporte contemporâneo na cobertura dos Jogos Olímpicos de Sydney/2000, na mídia impressa, relacionando-os com os princípios do Olimpismo Moderno. A análise de conteúdo foi aplicada na cobertura realizada pelos jornais esportivos O Lance (SP) e Gazeta Esportiva (SP), entre os dias 15 setembro a 02 de outubro de 2000. A partir de critérios de seleção, classificou-se a principal matéria de cada página dos suplementos em subcategorias e categorias. Os valores e as características encontrados foram: Registros relativos a individualidades; Registros relativos a equipes; Registros negativos nos Jogos Olímpicos; Registros inerentes ao esporte; Exaltação do espírito olímpico e Traços Étnicos. As duas categorias encontradas e que se relacionam com os princípios do olimpismo são Registros negativos nos Jogos Olímpicos e Exaltação do espírito olímpico. A primeira vai de encontro com os ideais do Olimpismo, ao veicular aspectos como doping, quebra de regras, violência entre atletas e preconceito no esporte. A segunda destaca princípios do Olimpismo, como celebração no esporte, patriotismo, participação nos Jogos, história/cultura. A categoria Registros inerentes ao esporte tem subcategorias que direcionam o esporte contemporâneo para o profissionalismo, como negócios, espetáculo, obrigação com a vitória e comparação. A partir da análise dos dados, concluiu-se que: a) os princípios do Olimpismo estão distantes das disputas Olímpicas; b) é necessário repensar e reestruturar a Carta Olímpica, bem como os princípios do Olimpismo se o evento continuar a ostentar as atuais características e valores; c) é necessário separar os caminhos da Educação Olímpica e dos Jogos Olímpicos por terem objetivos diferentes; e d) o esporte contemporâneo tem inúmeras facetas e não limita suas causas e seus efeitos apenas ao campo esportivo.
    Unitermos: Esporte contemporâneo. Jogos Olímpicos. Olimpismo. Meios de comunicação.
 
Abstract
     The aim of the present work was to identify the values and the characteristics of contemporaneous sport in the sporting cover of Olympic Games in Sydney/2000, that were shown in the printing press, and to make a relationship with The Modern Olympism principles. The analysis of the content was applied to the covering of the sporting newspapers "O Lance" (SP) e "Gazeta Esportiva" (SP), from September, 15 to October, 02, 2000. From the criteria of selection, it was classified the main subject-matter of each page of the supplements in categories and subcategories. The values and the characteristics shown were: Records related to individualities; Records related to teams; Negative records on Olympic Games; exaltation of Olympic Spirit and Ethnic features. Two categories depicted and related to the principles of Olympism are Negative Records in Olympic Games and Exaltation of Olympic Spirit. The first goes straight to the ideals of Olympism, when writing about aspects like doping, rupture of roles, violence among athletes and prejudice in sports. The second accentuates the principles of Olympism, as celebration in sports, patriotism, participation on games, history/culture. The category "Records intrinsic to sports" has subcategories that give the direction to contemporaneous sport straight to professionalism, like business, shows, to be under obligation to victory and comparison. From the analysis of data it was concluded that: a) the principles of Olympism are far from that of Olympic disputes; b) it is necessary to rethink and remake the structure of the Olympic Chart, as well as the principles of Olympism if the event continues to show the current characteristics and values; c) it is also necessary to separate the ways of Olympic Education from that of the Olympic Games because they have different purposes; d) the contemporaneous sport has several features and does not limit their causes and effects to sporting field only.
    Keywords: Contemporaneous sport. Olympic Games. Olympism. Mass media.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 12 - N° 108 - Mayo de 2007

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Introdução

    O esporte é integrante do processo social de formação do indivíduo, tendo participação tanto no meio escolar, como nas demais possibilidades de vivência social. A ligação estreita desse ponto de vista e de contato com este trabalho, nos leva para além das práticas desportivas, como práticas desportivas, ou seja, ela é prática para um sujeito ativo (atleta), já o espectador é consumidor de entretenimento e de sentidos que aquela prática (a dos atletas), o proporciona. Saímos do campo da prática do esporte e passamos a pesquisadores de seus efeitos e relações com os diversos campos sociais.

    Como fonte dessa oferta de sentidos, buscamos os Jogos Olímpicos, que se tratando de espetáculo esportivo são inalcançáveis dentro das suas proposições e seu percurso histórico, que invariavelmente acompanhou as transformações do mundo no decorrer do século passado.

    Assim, falar dos Jogos Olímpicos da Era Moderna é falar do esporte moderno, que no século XX cresceu, principalmente enquanto rendimento. Junto às transformações sociais e econômicas vividas pela sociedade, reflexos de duas grandes Guerras, aparecem os Jogos da Era Moderna e junto a filosofia que os conduz: o Olimpismo. O Olimpismo é a filosofia que rege os Jogos Olímpicos da Era Moderna. A base do ideal Olímpico perpassa culturas, etnias e raças, tornando-se uma proposta audaz do Barão Pierre de Coubertin, que em 1894, se sentiu provocado a retomar os Jogos Olímpicos.

    Com o desenvolvimento mundial, as sociedades se transformaram e um dos fenômenos que surgiu e/ou se fortaleceu no contexto é a chamada "Globalização Esportiva". O percussor da globalização, que não se restringe apenas a um termo e nem uma instância econômica, mas também cultural, foram os Jogos Olímpicos, que institucionalizaram posturas esportivas, padronizando-as em nível mundial.

    Os Jogos Olímpicos são guiados pelo Olimpismo e pela Carta Olímpica, fios condutores da ideologia dos Jogos da Era Moderna, idealizados pelo Barão Pierre de Coubertin. Segundo consta na Carta Olímpica, os princípios fundamentais que regem o olimpismo são: contribuir com uma atividade permanente e universal para a construção de um mundo melhor e mais pacífico, educando a juventude por meio do esporte praticado sem qualquer tipo de discriminação e dentro do espírito olímpico, o que exige a compreensão mútua, a amizade, a solidariedade e o jogo limpo.

    Entendendo que o "ideal olímpico" foi elaborado no final do século XIX e perdura até hoje, embora o mundo moderno sofreu transformações das mais diversas ordens, e os seus princípios fundamentais continuam vigentes, procurar-se-á identificar e comprar as características e valores do esporte contemporâneo na mídia impressa brasileira, com os princípios fundamentais do Movimento Olímpico.

    Entende-se que a mídia impressa é a mais adequada para se buscar respostas ao presente estudo, pela profundidade na informação que a caracteriza em relação a outros veículos e também pela facilidade de manuseio. Entendo que o fenômeno em questão - os "Jogos Olímpicos" - suscitam várias possibilidades de interpretação e compreensão frente a inúmeras relações que este tem com diversos "campos sociais1", sendo que cada campo procura sua autonomia frente aos demais. O campo dos media exerce importante mediação entre os demais campos sociais. Na visão de Esteves (1998) a generalidade das instituições e das organizações sociais, confronta-se com a necessidade de recorrer ao campo dos media para poderem prosseguir os seus próprios objetivos e afirmarem os seus interesses.

    Diante dos argumentos, entendemos que o campo esportivo faz parte deste processo discursivo e de significações entre os campos. Seguindo esse pensamento, vemos uma forte participação dos esportes nas transformações sociais e culturais da vida moderna, principalmente quando está em discussão um evento esportivo, como os Jogos Olímpicos, que reúnem grande quantidade de modalidades esportivas. Nesse particular, a área da Educação Física, constituinte do contexto social, e inserida direta e indiretamente nos Jogos Olímpicos, tanto na sua construção como no seu andamento, é exposta a influências dos Jogos. A partir desses fatores, Fausto Neto (1999) enfatiza que já não satisfaz mais constatar o que as mídias dizem todos os dias. A problemática que desafia o campo da pesquisa estaria na compreensão dos modos através dos quais os processos midiáticos nos dizem ou nos mandam "ler" alguma coisa no nosso cotidiano.

    Considerando o exposto e tendo em vista que os Jogos Olímpicos de Sydney foram os últimos do século, é fundamental analisar os princípios fundamentais do olimpismo a partir da construção de mundo e sociedade que temos hoje, e principalmente compará-los com os valores2 e características3 do esporte contemporâneo, veiculados nos meios de comunicação de forma a pautar nossa conduta esportiva.

    Dentro dessa perspectiva, a questão norteadora do problema deste estudo é: As características e os valores do esporte contemporâneo se relacionam, e de que forma, com os princípios do Olimpismo Moderno na cobertura esportiva dos Jogos Olímpicos de Sydney 2000?

    Os objetivos do estudo foram: Identificar e definir valores e características do esporte contemporâneo; e Relacionar as características e os valores do esporte contemporâneo com os Princípios do Olimpismo Moderno.


Metodologia

    A pesquisa é caracterizada como analítica-descritiva, utilizando à análise de conteúdo que é um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por processos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens. A análise de conteúdo visa desvelar o não-aparente, o latente, o escondido, o potencial de inédito (do não-dito) retido por qualquer mensagem - comunicação (Bardin, 1977).

    A partir da definição desses aspectos e da proposta deste estudo, o preponderante foi à análise qualitativa, que na visão de Richardson (1999), difere do quantitativo à medida que não emprega um instrumental estatístico como base do processo de análise. Além disso, destacamos a ressalva de Bardin (1977) que o que caracteriza a análise qualitativa é o fato de a inferência ser fundada na presença do índice (tema, palavra, personagem, etc.), e não sobre a freqüência de sua aparição, em cada comunicação individual. Ainda, corresponde a um procedimento mais intuitivo, mas também mais maleável e mais adaptável, a índices não previstos.

    A fonte é composta pelos jornais "A Gazeta Esportiva" de São Paulo e o jornal "Lance" de São Paulo, com dezoito (18) edições do jornal Gazeta Esportiva e quinze (15) edições do jornal O Lance4, compreendendo o período de 15 de setembro a 02 de outubro de 2000, durante os Jogos Olímpicos de Sydney. A opção pelos veículos foi intencional por serem especializados em esporte.

    A unidade de contexto5 do estudo é o suplemento sobre a cobertura dos Jogos Olímpicos de Sydney/2000 de ambos os jornais durante o período dos Jogos, tendo como unidade de registro6, a matéria principal de cada página interna dos suplementos.

    Os jornais foram analisados quanto à produção da informação, sendo o conteúdo das mensagens o preponderante. Como base metodológica e teórica foi utilizado Hatje (2000), As categorias estabelecidas para a análise foram obtidas e elaboradas através das matérias dos jornais.

    Foram analisadas as principais matérias de todas as páginas que continham informações relacionadas aos Jogos Olímpicos nos jornais selecionados. Para a classificação das matérias em subcategorias, seguimos os seguintes critérios:

  • A matéria que abre a página;

  • Matérias mais longas de cada página;

  • Foram desconsideradas capa e contracapa do jornal e do suplemento;

  • Todas as matérias principais foram classificadas em subcategorias, sendo considerado para efeito de classificação o destaque maior da matéria;

  • Foram desconsideradas matérias que não se relacionassem com os Jogos Olímpicos.

    Na análise qualitativa, além de exemplos que elucidam os resultados analisou-se as relações das subcategorias (valores e características do esporte contemporâneo) com os princípios do Olimpismo Moderno.

    Para melhor entender a análise realizada, cabe destacar que as subcategorias definidas pelo pesquisador, a partir de análise das matérias veiculadas não relacionadas com os Princípios do Olimpismo, não mereceram maior discussão. Em vários momentos foram apenas mencionadas no sentido de contextualizar o significado atribuído.


Apresentação dos dados e análise qualitativa

    No gráfico acima temos as categorias encontradas no estudo, sendo que duas se relacionam com os objetivos do trabalho e são discutidas abaixo. As categorias neste estudo são importantes como forma de agrupamento dos dados para melhor compreender seu significado dentro do contexto desejado. Logo, as subcategorias compõem os valores e características do esporte contemporâneo e são descritas abaixo.


Análise qualitativa dos dados

    A categoria Registros negativos nos Jogos Olímpicos aglutina dez subcategorias, destacando aspectos negativos nas disputas olímpicas em Sydney/2000. Das 10 subcategorias, seis foram consideradas características do esporte contemporâneo, Aspectos políticos, Comentário negativo dos Jogos, Desprezo ao adversário, Doping, Violência entre atletas e Violência entre comissão técnica e atletas e quatro são valores do esporte contemporâneo, Fuga do espetáculo, Injustiça no esporte, Preconceito no esporte e Quebra de regras.

    Aspectos políticos enfatiza questões políticas nas disputas olímpicas, como protestos e reivindicações, como na conquista da medalha de prata no revezamento 4 X 100 metros rasos pelo quarteto brasileiro, quando foi lembrado pelos atletas a falta de um local apropriado para treinos e de incentivos do governo, sendo a conquista classificada pelos atletas como um milagre (01/10/2000, pg. 08-Gazeta Esportiva). Comentário negativo dos Jogos destaca reclamações dos Jogos quanto à organização, por parte de atletas e dirigentes. A Gazeta Esportiva do dia 22/09/2000, página 07, destaca o erro da organização na altura do aparelho (cavalo), prejudicando a atleta brasileira Daniele Hypólito.

    A subcategoria Desprezo ao adversário tem como exemplo matérias publicadas dia 16/09/2000 (pg. 12 Gazeta Esportiva e pg. 26 O Lance), onde o tenista brasileiro Gustavo Kuerten despreza o seu adversário, o tenista de Benin, Christoph Pognon, desconhecendo o adversário de estréia no torneio. A subcategoria Doping, que destaca casos de doping nos Jogos Olímpicos (Gazeta Esportiva - 27/09/2000, pg. 11).

    Tratando-se de violência, O Lance veiculou a Violência entre atletas devido à disputa de duas atletas brasileiras da seleção feminina de futebol pelo uso da Internet na vila olímpica, partindo para a violência corporal (16/09/2000, pg. 28). A Violência entre comissão técnica e atletas veiculada na Gazeta Esportiva, destacou as queixas das jogadoras da seleção brasileira de futebol feminino com o autoritarismo do assistente de técnico Wilsinho (30/09/2000, pg. 05). Fuga do espetáculo é um valor do esporte contemporâneo que destaca a fuga do povo australiano dos Jogos Olímpicos (O Lance-20/09/2000, pg 23).

    Injustiça no esporte, que realça polêmicas nas disputas, com decisões questionáveis dos árbitros (Gazeta Esportiva-01/10/2000, pg. 05). Preconceito no esporte, subcategoria que destaca preconceitos relacionados à raça e classe social, figura matéria na Gazeta Esportiva (19/09/2000, pg. 06).

    Quebra de regras, valor que evidencia a quebra de regras da conduta esportiva (fair play) como forma de chegar a vitória (O Lance-30/09/2000, pg. 18).

    A partir da categoria Registros negativos nos Jogos Olímpicos, identificamos pontos negativos observados nas disputas olímpicas, todos eles indo de encontro ao Olimpismo. Relacionados as disputas Olímpicas, os Jogos Olímpicos de Sydney/2000 foram os Jogos do doping, do jogo sujo, da desorganização, da injustiça, do preconceito, da violência. As disputas são realizadas sob o paradoxo da sobreposição do eu (hedonismo) sobre os ideais olímpicos. A divergência de objetivos, os particulares e o dos Jogos, torna os ideais olímpicos secundários, devido à profissionalização do esporte contemporâneo.

    No que diz respeito ao entendimento internacional, paz e respeito mútuo, Tavares (1999) destaca que:

...nenhum elemento do olimpismo é tão contraditoriamente interpretado, quanto à melhoria das relações internacionais nos Jogos. Os Jogos eram para Coubertin primordialmente, "apenas" um fórum onde as diferenças culturais poderiam ser celebradas em um ambiente de respeito mútuo, onde os indivíduos poderiam aprender a reconhecer e a respeitar a diversidade cultural. (pg. 56)

    Há que se destacar que não deixaram de haver guerras no mundo em função das olimpíadas como acontecia na Grécia antiga. Pelo contrário, os Jogos Olímpicos deixaram de acontecer em 1916, devido a Primeira Guerra Mundial, e em 1940 e 1944, pela Segunda.

    O uso dos Jogos Olímpicos, para fins políticos acontece há muito tempo. Em 1936, nos Jogos Olímpicos de Berlim, Adolf Hitler utilizou o marketing dos Jogos para promover os ideais nazistas e a suposta "supremacia" da raça ariana. Os Jogos de Berlim (1936), foi a primeira grande manifestação da história a merecer cobertura televisiva.

    O jogo limpo (fair play) defendido no olimpismo como um ideal não é totalmente respeitado nos Jogos de Sydney. Para Portela (1999), devido às manifestações sociais do esporte deste final de século seria imprudência não considerá-lo como um dos agentes de formação de códigos éticos e condutas morais. Porém, há desvirtuamento de princípios éticos na disputa esportiva. Quando quebramos as regras, quando usamos doping, deslocamos o fair play, que para Grupe apud Tavares (1999) é a "...adesão voluntária a regras esportivas, princípios e códigos de conduta, zelando regras, observando os princípios da justiça, renunciando a vantagens injustificadas, declinando ganhos materiais, enfim, todos os meios de elevar o esporte a um nível cultural realmente mais alto", para um outro lugar que não o campo esportivo, que não os Jogos Olímpicos, que não o Olimpismo.

    Valente (1999) enfatiza que desde a sua implantação, baseado em fundamentos éticos e morais, o Movimento Olímpico já sofria com as controvérsias sociais, demonstrando estar defasado num mundo cuja lógica girava rapidamente em torno dos modos de produção, do capital, do consumo e da mercadoria. Dessa forma, os Jogos Olímpicos institucionalizam e sistematizam as disputas dentro de uma lógica voltada para o consumo. Assim, a identificação e sua exacerbação uma vez regulamentadas dão margem à violência no campo esportivo.

    A violência no esporte, como tal à agressividade e o impulso de posse (a competição) estão regulamentados. O público, ao qual se destinam noticiários e reportagens esportivas, sofre o processo de disfunção narcotizante, isto é, dispensa-se de interpretar cada lance à espera da palavra do narrador ou comentarista. E, ao mesmo tempo, assume atitude ativa, isto é, projeta-se no atleta ou na equipe e se identifica com seus favoritos como se estivesse diretamente envolvido na disputa (Lage, 1999).

    Para Lage (1999), o mundo do esporte presta-se a sociabilização porque nele, ao contrário do que ocorre na sociedade, as oportunidades são efetivamente iguais; as leis, de aplicação automática, não se modificam quaisquer que sejam as condições de poder, fortuna ou prestígio dos adversários. A discussão sobre a justiça é sempre factual, objetiva.

    A partir dos dados e das inferências cabe um questionamento: por que o Olimpismo prega uma irrealidade, em relação aos seus princípios, se o que temos nos Jogos Olímpicos Modernos, a partir da cobertura da imprensa, é a profissionalização do esporte com vitória a qualquer preço? Nesse sentido, Bento (1998) destaca: "quanto mais o esporte for bem estimado e respeitado, tanto maior será a sua cotação no plano comercial. A diminuição da substancia cívica, moral, ética e estética do esporte traduz-se inexoravelmente num abaixamento da sua valia comercial e da sua importância econômica".

    Exaltação do espírito olímpico é a categoria que converge para o ideal olímpico, sendo representada por sete subcategorias, considerados valores e características do esporte contemporâneo identificando aspectos positivos no esporte e nas disputas olímpicas. Seis são valores, Celebração no esporte, Patriotismo, Descontração / confraternização, História / cultura, Participação nos Jogos, União/família e uma é uma característica, Surpresa no esporte.

    Celebração no esporte destaca as festas de abertura e encerramento dos Jogos Olímpicos de Sydney /2000, é identificado no O Lance na Gazeta Esportiva. Patriotismo, destacado através de símbolos pátrios, como a bandeira. Descontração / confraternização destacou a descontração de atletas na vila olímpica e a confraternização na vila e nos jogos.(A Gazeta-17/09/2000, pg. 05).

    A subcategoria História / cultura no esporte enfatiza a história dos Jogos Olímpicos, bem como aspectos culturais do povo australiano (O Lance-16/09/2000, pg. 18).

    Participação nos jogos é a subcategoria que destaca a importância que atletas dão a participação nos Jogos. Mesmo sem chances de vitórias, estar nos Jogos Olímpicos, participar e conviver é uma vitória (O Lance-23/09/2000, pg. 16).

    União / família que destaca as relações de parentesco e amizade entre atletas e comissão técnica de equipes, enfatizando boas relações, é encontrada apenas no jornal O Lance. A matéria do dia 22/09/2000, traz exemplos de atletas brasileiros que são atletas olímpicos, como o jogador de vôlei Tande e a sua irmã Adriana do vôlei de praia.

    Já a subcategoria Surpresa no esporte, que destaca atletas ou equipes que não eram favoritos e conquistaram vitórias ou medalhas nos Jogos (Gazeta Esportiva-29/09/200, pg 12).

    A partir das sete subcategorias da categoria Exaltação do espírito olímpico, identificamos conformidades com os princípios do olimpismo estabelecidos na Carta Olímpica que regem o olimpismo. Todas as subcategorias mencionadas acima sintetizam de uma forma ou de outra o Olimpismo. Mas de que forma efetivamente as características e os valores, identificados nos jornais, são um reflexo dos Princípios do Olimpismo? As classificações são fruto do ideal olímpico ou de outra ordem que não o Olimpismo? Suas contribuições se dão muito mais para fora do campo esportivo do que propriamente nele.

    A luta pela medalha e pela vitória vai perdurar cada vez mais, pela natureza do esporte rendimento e pela sua profissionalização e mercantilização. Os benefícios pregados pelo Olimpismo se dão também fora campo esportivo. O campo político se beneficia com os Jogos Olímpicos, diante da disputa para ser país sede dos Jogos. A vitória dá visibilidade internacional ao país ganhador; o campo econômico tem maximizado os valores comerciais dos Jogos pelo seu interesse mundial e pela espetacularização. O país sede ganha, com promotores e patrocinadores; o campo sócio-cultural ganha pela pluralidade e diversidade de culturas convergentes aos Jogos e pela infra-estrutura deixada no país sede; o campo científico ganha com a diversidade de implicações e imbricações que os Jogos Olímpicos possibilita.

    Diversos campos sociais se beneficiam das disputas olímpicas. Com isso, quando as palavras "Olimpíadas" e "Movimento Olímpico" são mencionadas, nos campos esportivos ou até mesmo nos meios de comunicação, surgem logo as imagens vinculadas pela televisão da quebra de recordes, dos heróis Olímpicos, das medalhas.

    É no entendimento de Moro & Carvalho (2000) que justificamos e sustentamos, em parte, a definição e o aparecimento das características e dos valores para este estudo. "O esporte contemporâneo tem acompanhado as formas de desenvolvimento da sociedade, conforme seu momento histórico. Nesse sentido, esporte e sociedade tem-se produzido a partir de um conjunto de virtudes e mazelas contidas no modelo de sociedade instituído na maior ou menor socialização dos seus bens culturais". O Olimpismo Moderno não media essas relações na sociedade, mascarando o real e ofertando utopias descontextualizadas com a relação sociedade/bens culturais e princípios do Olimpismo.

    O que fica dos Jogos Olímpicos é o citado acima, mas os ideais Olímpicos pertencem a outro campo que não o esportivo, um campo paralelo de construção de ideais e filosofia, para aqueles que acreditam que há algo além da mercantilização do esporte contemporâneo. O Olimpismo é muito mais como uma fonte de pesquisa e referência histórica, do que um buscar e uma aplicação prática de seus princípios nos Jogos Olímpicos.

    Para Parry (2001) o Olimpismo é tido como a filosofia social que enfatiza a função social do esporte no desenvolvimento mundial, entendimento internacional, coexistência pacífica, e educação social e moral. A tarefa contemporânea para o Movimento Olímpico é promover este projeto: tentar ver mais claramente o que significam estes Jogos e o esporte numa visão ampliada da sociedade. Gomes (2001) destaca que ao embarcarmos nos estudos referentes ao Olimpismo consideramos que uma análise crítica sobre seus pressupostos deveria ser o primeiro passo para que pudéssemos avançar nas pesquisas vinculadas ao tema e fundamentalmente na esfera operacional, e aqui particularmente, na Educação Olímpica.

    O Movimento Olímpico prega os efeitos e as aplicações do Olimpismo para fora das disputas Olímpicas, através da educação olímpica. Isso nada mais é do que manter e reforçar a cultura dominante. Como forma de justificar a manutenção desses princípios do Olimpismo, frente à dicotomia do doping e do negócio que se transformou os Jogos Olímpicos, o Movimento Olímpico cria a "Educação Olímpica". Para alguns educadores o Olimpismo poderia constituir um elemento de referência cultural e uma forma ética de estar no desporto, põem em dúvida os valores dos princípios que, cada vez mais, consideram ultrapassados e caducos. Para eles o cinismo dos discursos proferidos pelas próprias instituições do Movimento Olímpico, liquida qualquer valor de referência aos ideais de Coubertin.

    A verdade é que se verifica uma contradição, cada vez mais acentuada, entre este discurso e a prática de instituições, em especial do Comitê Olímpico Internacional. Verifica-se que a estrutura do Movimento Olímpico é cada vez mais poderosa e o Ideal Olímpico se encontra progressivamente mais frágil. Poder-se-á mesmo afirmar que nestes Jogos Olímpicos não lhe foi feita qualquer referência visível, em qualquer notícia, sobre todas as competições. Só o resultado conta, só o espetáculo interessa.

    Ao final da análise, destacamos que o amadorismo pregado e defendido por Coubertin desprende-se do esporte contemporâneo, que a cada Olimpíada Moderna passa a ser mais profissional e comercial (Rubio, 2002).


Conclusão

    A partir da análise dos resultados, este trabalho permite considerações em relação aos objetivos propostos:

    Respeitando as particularidades de cada veículo quanto à forma de redação, estrutura gráfica e linguagem utilizada, concluímos que os veículos estudados tiveram semelhanças quantitativas e qualitativas em relação às categorias e subcategorias (valores e características) consideradas à pesquisa.

    Outra conclusão do estudo é que a imprensa ao realizar uma cobertura como esta, reforça que os Jogos Olímpicos estão imbuídos de características que direcionam o esporte para o profissionalismo e para o negócio.

    Sobre os Princípios do Olimpismo podemos dizer que eles, hoje, são uma abstração da realidade social vigente, desconsideradas as circunstâncias sociais correntes. O Olimpismo não contempla o verdadeiro passo social da sociedade.

    Ainda:

  • Os princípios do Olimpismo estão distantes das disputas Olímpicas; são um esboço de sociedade ideal, doutrinado por um humanismo jurássico, que não reflete o mundo contemporâneo;

  • É preciso repensar e reestruturar a Carta Olímpica, bem como os princípios do Olimpismo se o evento continuar a ostentar as atuais características e valores;

  • É necessário separar os caminhos da Educação Olímpica e dos Jogos Olímpicos por terem objetivos diferentes;

  • O esporte contemporâneo tem inúmeras facetas e não limita suas causas e seus efeitos apenas ao campo esportivo; perpassa campos sociais, assim como os outros o perpassam. É assim que se configuram os Jogos Olímpicos Modernos;

  • Os resultados deste estudo refletem a realidade das fontes, sendo que estas direcionam a sua cobertura conforme especificações e limitações das mesmas.

    Adaptações e reformas na carta Olímpica são indispensáveis, na medida que o Olimpismo constitui, ainda hoje, o único corpo doutrinário historicamente determinado capaz de constituir uma referência permanente para todo o Movimento Esportivo.


Notas

  1. Os diversos campos sociais sofrem ações de mediação para garantir a sua abertura aos outros campos (Esteves, 1998).

  2. VALORES: relativo ao apreço e estima aos hábitos, atitudes, posturas e símbolos sociais universais.

  3. CARACTERÍSTICAS: compõem aspectos distintos, típicos, particularidades que venham a compor o esporte contemporâneo dentro das suas especificidades.

  4. O jornal O Lance não circula aos domingos.

  5. Unidade de contexto serve de compreensão para codificar a unidade de registro e corresponde ao segmento da mensagem cujas dimensões são superiores as da unidade de registro (Bardin, 1977).

  6. É a unidade de significação a codificar e corresponde ao segmento de conteúdo a considerar como unidade base, visando a categorização, podendo ser uma palavra, uma frase, etc. (Bardin, 1977).


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Jornais

  • Gazeta esportiva.

  • O Lance.

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