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Teias de interdependência entre a vida em sociedade, a rotina e o prazer: o estudo do lazer sob a perspectiva da teoria elisiana

   
*Mestrando em Ciências Sociais Aplicadas - UEPG; Integrante
do Centro de Pesquisa em Esporte, Lazer e Sociedade, UFPR,
Grupo de Pesquisa Esporte, Lazer e Sociedade - UEPG e
Ciências Sociais e Interdisciplinaridade - UEPG.
**Doutor em Educação Física - UNICAMP; Professor do Centro Federal
de Educação Tecnológica do Paraná Cefet-PR - Unidade de Ponta Grossa;
Professor do Programa de Mestrado em Engenharia de Produção do Cefet- PR
 
 
José Roberto Herrera Cantorani*
cantorani@cev.org.br  
Luiz Alberto Pilatti**
luiz.pilatti@terra.com.br
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
     O presente artigo discute conceitualmente o lazer nas sociedades contemporâneas tendo como inspiração os dois primeiros capítulos do livro A busca da excitação de Norbert Elias e Eric Dunning. A construção do quadro teórico, desenvolvido as margens do Processo civilizador, trabalho maior de Norbert Elias, considera a diferenciação entre o tempo de trabalho, tempo livre e tempo de lazer. Nesta perspectiva, cria-se a diferenciação entre tempo de lazer e tempo de não-lazer, sendo que este último é maior do que o primeiro. Foi verificado que as atividades contidas na esfera do não-lazer são altamente normatizadas, padronizadas e rotineiras, e as atividades contidas na esfera do lazer, uma vez que provocam a quebra da rotina e a renovação das emoções, caracterizam-se como ponto de equilíbrio para a saúde mental. Os conceitos de catarse e de mimese, quando aplicados ao lazer, revelam um ângulo novo em relação às investigações pautadas em modelos em impera a dicotomia trabalho/lazer.
    
Unitermos: Lazer. Rotina. Emoções.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 102 - Noviembre de 2006

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Introdução

    Norbert Elias e Eric Dunning postulam entre os primeiros cientistas sociais a dar especial atenção ao estudo do esporte e do lazer. Suas obras, que fecundam o surgimento de muitas pesquisas na atualidade, vão também colaborar no desenvolvimento deste estudo. Nele, serão exploradas as análises construídas pelos autores nos dois primeiros capítulos de The Quest for Excitement1. O norte no desenvolvimento destes dois capítulos são as formas miméticas de excitação que as pessoas encontram/buscam nas mais variadas formas de lazer.

    Nesta perspectiva, busca-se compreender o desenvolvimento do esporte e do lazer dentro da perspectiva de excitação e de emoção compensadora ou, melhor dizendo, de equilíbrio, reclamadas por grande parte das atividades de lazer, entre elas o esporte. Há de se salientar que nesta perspectiva o esporte é um componente do lazer.

    Para compreendermos melhor a construção teórica apresentada pelos autores precisamos ter conhecimento de seus posicionamentos quanto ao estudo do lazer e quanto a sua relevância social. A este respeito, uma leitura prévia de outras obras de Elias se mostra conveniente. Em O Processo civilizador, por exemplo, já se pode enxergar alguns contornos sobre o modo de vida altamente civilizado, e Elias aponta: "[...] Tudo o que se pode dizer hoje é que, com a civilização gradual, surge certo número de dificuldades específicas civilizacionais".2 Como se pode conferir, é sobre tais dificuldades que os capítulos aqui mencionados se referem.

    Em Introdução à sociologia, Elias relata o seguinte:

Torna-se necessário não só explorar uma unidade compósita em termos das suas partes componentes, como também explorar o modo como esses componentes individuais se ligam uns aos outros, de modo a formarem uma unidade. O estudo da configuração das partes unitárias ou, por outras palavras, a estrutura da unidade compósita, torna-se um estudo de direito próprio. Esta é a razão pela qual a sociologia não se pode reduzir à psicologia, à biologia ou à física: o seu campo de estudo - as configurações de seres humanos interdependentes - não se pode explicar se estudarmos os seres humanos isolados.3

    É em meio a esse contexto teórico-existencial que Elias e Dunning contestam a sociologia de seu tempo, ou seja, por enxergarem no lazer uma peça secundária no conjunto de engrenagens sociais, uma atividade do tipo não séria e sem grande relevância e, assim sendo, não merecedora de estudos mais aprofundados. Com um ângulo de visão diferenciado em relação aos estudos das formas de lazer, Elias e Dunning apontam para a complexidade existencial que envolve e está envolvida no contexto dessas formas. Os autores concluem que o estudo do lazer não se restringe a um único campo da ciência, o seu desenvolvimento dentro da sociedade é estabelecido por meio de necessidades sociais e individuais, sendo que estas últimas ainda se dividem em psicológicas e biológicas.

    A literatura sociológica, segundo os escritos dos autores, apresenta forte tendência a considerar o lazer como um mero acessório do trabalho4. Neste sentido, o que aí impera é uma tradição de pensamento estabelecida pela dicotomia trabalho/lazer, na qual se deleita o entendimento de que a satisfação agradável proporcionada pelas atividades de lazer se apresenta apenas como um meio para aliviar a tensão do dia-a-dia e melhorar a capacidade das pessoas para o próprio trabalho. A solidez dessa corrente de pensamento, justificada pelo predomínio desse tipo de abordagem, reflete-se, em larga medida, em função de um sistema de valores e de crenças pré-estabelecidas que se submetem à idéia de que as pessoas procuram no lazer o alívio para a fadiga dos esforços do trabalho.

    Contrariando e superando essa forma tradicional de entendimento do lazer, Elias e Dunning desenvolveram um estudo no qual buscaram desvendar o verdadeiro sentido desse acontecimento social. Entre muitos aspectos, verifica-se que o seu papel estende-se para além dos limites galgados até aquele momento. Numa visão mais ampliada, não em termos de causas e efeitos que envolvem e estão envolvidos no contexto do lazer, mas sim no contexto de uma teoria das configurações e do desenvolvimento, os autores conceituaram que o lazer corresponde a uma necessidade existencial para as sociedades do momento em que vivemos.

    A concretização de tais conceitos, resumidamente, quebra com o já relatado paradigma da dicotomia trabalho/lazer. Não obstante, os autores sugerem que a emergência daquilo que se tornou o foco básico das preocupações da sociologia moderna foi um processo que não se encontrava isento de influências, ou, em outras palavras, seria como se os sociólogos atuais revelassem os seus valores de compromisso em virtude da limitação de seu campo de visão provocada pela aderência aos paradigmas dominantes. Nesse sentido, o seu campo de visão se restringe a um conjunto comparativamente estreito de atividades sociais, apesar do empenho da maioria quanto ao ideal de neutralidade ética e da idéia de sociologia enquanto ciência que trata das sociedades em todas as suas dimensões.

    Assim, apesar de reconhecer o envolvimento do cientista social, os autores condenam o não afastamento dos paradigmas atuais e da não isenção em relação a tais influências. Esses seriam os motivos pelos quais os sociólogos teriam ignorado o esporte e consequentemente o lazer enquanto objeto de reflexão sociológica.

    Para os autores, o esporte, e o lazer uma vez que o primeiro está contido na esfera do segundo, parece ter sido ignorado como objeto de reflexão sociológica e de investigação porque é considerado como algo que se encontra situado no lado que se avalia de modo negativo no "complexo dicotômico de sobreposição convencionalmente aceite como, por exemplo, entre os fenômenos de 'trabalho' e 'lazer', 'espírito' e 'corpo', 'seriedade' e 'prazer', 'econômico' e 'não econômico'"5. Isto é, no quadro de tendência que orienta o pensamento reducionista e dualista ocidental contemporâneo,

[...] o desporto é entendido como uma coisa vulgar, uma atividade de lazer orientada para o prazer, que envolve o corpo mais do que a mente, e sem valor econômico. Em conseqüência disso, o desporto não é considerado como um fenômeno que levante problemas sociológicos de significado equivalente aos que habitualmente está associado com os negócios 'sérios' da vida econômica e política.6

    No entanto, para os autores,

O desporto pode ser utilizado como uma espécie de "laboratório natural" para a exploração de propriedades das relações sociais, como, por exemplo, a competição e a cooperação, e conflito e harmonia, que parecem ser, segundo a lógica e os valores correntes, alternativas que se excluem mutuamente mas que, neste contexto, no que se refere à estrutura intrínseca do desporto, possuem uma interdependência evidente e muito complexa.7

    Esta é uma teoria que permite avaliar o significado social do esporte, e consequentemente do lazer, e que, nessa linha, se esforça, entre outras coisas, por estabelecer os fundamentos da teoria sociológica das emoções. Esta teoria procura também sublinhar o controle individual e social da violência e os processos de longa duração que podem ser observados a este respeito. Em síntese, é uma teoria do desenvolvimento.

    Em virtude da importância dada pelos autores ao esporte e consequentemente ao lazer estes desenvolveram dois trabalhos voltados ao estudo do lazer: "A busca da excitação no Lazer" e "O Lazer no Espectro do Tempo Livre". Nestes trabalhos, que se constituem em capítulos do livro "A busca da excitação", mais precisamente nos dois primeiros capítulos, é construído um arquétipo do tempo livre em busca da superação conceitual do termo lazer.


Tempo livre e lazer

    Para os autores, as deficiências nas pesquisas sociológicas que se destinam a encontrar respostas para as abordagens sobre o lazer, tendem a serem elucidadas pela considerável confusão que existe na utilização de certos termos. Não há, por exemplo, "uma clara distinção entre lazer e tempo livre como conceitos sociológicos".8

    A abordagem de Elias e Dunning, no entanto, abandonando as limitações impostas à teorização e investigação do lazer, rompem, nos dois primeiros capítulos da obra aqui citada, com a herança da tradicional dicotomia trabalho-lazer. A relação de antítese entre trabalho e lazer já não é capaz de dar suporte às investigações devido à sua limitação teórica.

    Diante desse tipo de problema e procurando formular respostas para as questões que permeiam os conceitos de lazer criaram os autores um quadro teórico, uma tipologia que servisse como um ponto de partida para elucidações teóricas. O primeiro quadro, de caráter provisório, foi denominado Atividades de tempo livre: classificação preliminar9. Neste quadro inicial, as atividades de tempo livre10 foram classificadas da seguinte forma:

  1. Trabalho privado e administração familiar: enquadram-se aqui as atividades voltadas para a administração familiar, incluindo as provisões da casa.

  2. Repouso: estar sentado sem fazer nada, ou estar a fumar ou a tricotar e, acima de tudo, dormir.

  3. Provimento das necessidades biológicas: comer, beber, defecar, fazer amor, assim como dormir.

  4. Sociabilidade: relacionadas ou não com o trabalho, enquadram-se aqui as atividades como uma excursão, a ida a um bar, um clube, restaurante ou festa, estar com outras pessoas.

  5. A categoria das atividades miméticas ou jogo: as discussões, a cerca das atividades de lazer, têm grande incidência em atividades desse tipo, atividades que produzem nas pessoas uma agradável excitação-prazer e, que representam assim, ao mesmo tempo, o complemento e a antítese da tendência habitual diante da banalidade emocional verificada nas rotinas racionais da vida.

    A investigação realizada pelos autores, como se pode verificar por meio dos estudos, não apenas do primeiro, mas dos dois primeiros capítulos de A busca da excitação, preocupa-se em particular com esta última categoria. Neste sentido, o quadro acima, mesmo que provisório, de forma esclarecedora, realça alguns pontos em relação ao tempo livre e ao trabalho e em relação ao tempo de lazer e o de não lazer. Esta tipologia mostra de forma ímpar, que parte considerável de nosso tempo livre não é destinada a atividades de lazer, colocação que contraria a polarização entre lazer e trabalho em sua forma tradicional, a qual sugere que todo o tempo que não é despendido a uma forma remunerada de trabalho, ou seja, todo o tempo livre, pode ser dedicado ou ainda compreendido como tempo de lazer.

    Esta tipologia também elucida que o trabalho não é a única esfera social a subordinar de forma regular e equilibrada os sentimentos pessoais. E, expandindo os horizontes, esclarece que em sociedades como as nossas, o manto das restrições é estendido até mesmo ao campo das atividades de tempo livre, pois, ainda que com diferenças relativas de grau, estende-se a todas as relações humanas, até mesmo as familiares.

    É possível justificar, com esse modelo, que nas sociedades industriais avançadas, as atividades de lazer, sobretudo as do tipo miméticas, constituem um dos poucos, se não o único, meio, aprovado no quadro social, desencadeadores de um comportamento, moderadamente, excitado em público. A esfera mimética é parte integrante da realidade da sociedade moderna.

    A conformação dessa polarização é tida pelos autores como ponto de partida e, segundo eles, possibilita enxergar, com maior clareza, o problema básico com que se deparam aqueles que se dedicam a estudar o lazer. Duas questões interdependentes são colocadas pelos autores de forma a traçar o caminho em direção à resolução do problema: Quais as características das necessidades individuais de lazer desenvolvidas em nossa sociedade? E quais as características das atividades específicas de lazer desenvolvidas na sociedade para a satisfação das referidas necessidades?


Controle e autocontrole: rotinas da vida cotidiana

    Nas sociedades contemporâneas, inclinações para expor em público excitações do tipo sérias, que ameacem a ordem estabelecida, estão cada vez mais reduzidas. Para serem considerados normais, os adultos dessas sociedades devem controlar a tempo a sua excitação. Espera-se desses, um comportamento adequado e igualmente condizente com o nível organizacional atingido pela atual sociedade. O efeito disto é um comportamento padronizado e um estilo de vida rotineiro, sem riscos para si e para os outros.

    O quadro teórico, denominado espectro do tempo livre, revela com maior clareza algumas características estruturais que permitem distinguir atividades de tempo livre, atividades de tempo não livre e trabalho profissional. O segundo capítulo, por intermédio de uma classificação mais compreensiva do lazer e de outras atividades, permite um maior entendimento de como se dá a conformação atual do estilo de vida das sociedades.

    Os principais tipos de atividades de tempo livre das sociedades contemporâneas estão indicados no quadro de classificação que compõe o espectro do tempo livre. O quadro de classificação, de forma sucinta, segue abaixo11:

  1. Rotinas do tempo livre: provisões rotineiras como necessidades biológicas e cuidados com o próprio corpo, as rotinas familiares e o governo da casa.

  2. Atividades intermediárias de tempo que servem, principalmente, para as necessidades de formação e, ou também, auto-satisfação e auto-desenvolvimento: trabalho não profissional como, por exemplo, participação em questões locais, atividades de caridade, estudo privado com vista a progressos profissionais, passatempos do tipo hobby, atividades religiosas, leituras de jornais, visão de programas de jornais informativos.

  3. Atividades de lazer: atividades pura ou simplesmente sociáveis, que podem ser mais formais ou menos formais, atividades de jogo ou miméticas, com participação em nível de membro da organização, como espectador ou como ator e uma miscelânea de atividades de lazer menos especializadas, do tipo viajar nos finais de semana, banho de sol e outras.

    Com o auxílio deste espectro é possível verificar alguns fatos que, muitas vezes, em detrimento de uma corrente "sócio-industrial", pré-existente, e que tende a equacionar o tempo livre como atividades de lazer, passam de forma desapercebida. Fatos como, por exemplo, algumas atividades de tempo livre têm o caráter de trabalho, mesmo que sejam, facilmente, distinguidas do trabalho profissional; algumas atividades de tempo livre são voluntárias, contudo, muitas não o são e, em grande parte delas, não se observa uma conotação de agradáveis, em contra partida, observa-se que são relativamente rotineiras.

    É possível observar, com o modelo elisiano, que, além do trabalho profissional, há ainda, dentro do chamado "tempo livre", atividades de não lazer que são altamente rotineiras. É neste aspecto que o espectro do tempo livre contribui para uma melhor compreensão dos problemas do lazer. Numa sociedade em que a maior parte das atividades estão submetidas à rotina, quais são as oportunidades para experiências emocionais que estão excluídas dos setores altamente rotineiros da vida cotidiana das pessoas?

    O controle social em exercício, como se pôde observar, reduz ao máximo as oportunidades de excitações agradáveis. Assim sendo, as características das necessidades individuais de lazer são socialmente desenvolvidas com base nessa falta de oportunidade de se expressar de forma prazerosa. Não obstante, as características das atividades específicas de lazer, ainda que mais complexas, desenvolvem-se no sentido de suprir tais necessidades. Dessa forma, os conceitos de catarse e mimese apresentados por Elias e Dunning elucidam como se conformam, socialmente, as atividades de lazer.


Catarse em atividades do tipo miméticas

    Durante todo o desenvolvimento dos dois primeiros capítulos de A busca da excitação, aqui explorados de forma breve, foi verificado um cerco para não deixar escapar uma formulação mais adequada da resposta para as questões por eles levantadas.

    Para uma formulação conceitual mais apropriada sobre o lazer, os autores vêem a necessidade de transcender os limites das especialidades acadêmicas previstos na atualidade. Seguindo essa linha de pensamento, procuraram abordar o problema à luz da disciplina que antecede ao fracionamento das diferentes especialidades, ou seja, na matriz global da filosofia.

    Os autores encontraram em Aristóteles um conceito bastante sugestivo, o conceito de catarse. Aristóteles, por sua vez, formulou a sua interpretação a partir de fatos estudados na fisiologia. A palavra catarse vem do conceito médico ligado ao expulsar de substâncias nocivas do corpo, uma limpeza do corpo por meio de uma purga. Aristóteles propunha em sua tese, num sentido figurado, que a música e a tragédia provocavam algo similar nas pessoas.

    O termo mimético, no seu sentido literal é imitativo. Conquanto, é, pelos autores, utilizado num sentido mais alargado e figurado. Nesse aspecto, constitui-se em uma característica comum em todas as atividades de lazer classificadas com essa denominação. A excitação mimética, na perspectiva individual e social, é desprovida de perigo e pode ter um efeito catártico, contudo, a última forma pode vir a se transformar na primeira12.

    Observações sobre o efeito catártico que formas miméticas de lazer proporcionam nas pessoas, e a busca cada vez maior por essas formas de lazer, acentuam a concepção que as pessoas procuram nas atividades de lazer não o atenuar das tensões, mas sim, uma tensão específica, uma forma de excitação, normalmente, evitada na vida cotidiana.

    Em sociedades mais complexas, que exigem uma disciplina emocional bastante atuante, e que manifestações de uma série de sentimentos agradáveis é severamente vetada, verifica-se no conceito de catarse, evidenciado e vivenciado por meio de atividades do tipo miméticas, um fenômeno muito mais complexo, um fenômeno que não é puramente biológico, nem tampouco se restringe à esfera da psicologia ou da sociologia.

    Os autores assim se manifestam em relação a esse contexto:

O estudo do lazer, como dissemos, é um dos numerosos casos em que não é possível descurar o problema da relação entre os fenômenos do nível social e os que se encontram nos níveis psicológico e fisiológico. A este respeito, não se pode evitar o trabalho de uma análise múltipla dos níveis, isto é, o de considerar, pelo menos em traços gerais, como é que no estudo do lazer os três níveis - sociológico, psicológico e biológico - se relacionam.13

    A conformação dessa estrutura complexa é bem exemplificada pelos autores14: na atual sociedade, de uma maneira geral, os adultos não revelam suas emoções. As crianças o fazem. Para elas é natural expressar os seus sentimentos, a sua emoção, através de todo o corpo. Sentir e agir, através de toda a musculatura, de todo o corpo, em razão de uma situação estimulante, ainda não estão divorciados. Gradualmente, no decurso do processo de crescimento, e submetidos ao Processo de civilização15, as pessoas vão deixando de agir de acordo com os impulsos emocionais, vão sendo ensinadas a controlar com bastante severidade, e em parte automaticamente, a necessidade de resposta aos estímulos. Elas vão aprendendo a fazer aquilo que as crianças não são capazes de fazer, ou seja, controlarem, não apenas os sentimentos, mas a parte atuante de um estado de agitação de todo o organismo.

    Na sociedade hodierna, "os adultos tornaram-se, em regra, tão habituados a não agirem de acordo com os seus sentimentos que esta restrição, com freqüência, lhes parece ser o normal, o estado natural dos seres humanos, em especial se, em larga medida, a auto-restrição se torna automática." 16

    Para os adultos das sociedades modernas, as atividades miméticas, assim como os outros tipos de lazer, caracterizam-se como antídotos para as rotinas de suas vidas. Contudo, as da classe mimética se caracterizam por despertar excitações de tipo específico. Os sentimentos advindos, por exemplo, do fato de derrotar um adversário, e o desenrolar das manifestações por meio de expressões corporais e também verbais, transbordando o triunfo da vitória, estão no contexto de todas as atividades miméticas de lazer.

    Experimentar a ansiedade causada pelo suspense de estar frente à ameaçadora derrota e/ou triunfo da vitória, opõem-se à vida de rotinas, relativamente, harmoniosa e sem emoção das pessoas, quebrando, assim, a grande regularidade de controle emocional exigido, em nível elevado, em todas as relações humanas. No contexto mimético, excitações agradáveis são permitidas não apenas pela sociedade, mas, acima de tudo, pela própria consciência.

    A destruição da rotina pode ser compreendida como uma função do lazer. O fazer algo que não se tem completo domínio e/ou conhecimento, proporciona um grau de insegurança, cria a expectativa do inesperado e do arriscado, produzindo tensão e excitação em virtude da ansiedade que as acompanha. Estes altos e baixos de breves e alternados sentimentos antagonistas, tais como esperança e medo, exaltação e abatimento, são uma das fontes de renovação emocional de que se vem tratando até aqui.

Existe aí certa evidência sugerindo que a ausência de equilíbrio entre atividades de lazer e atividades de não lazer implica um determinado empobrecimento humano, uma secura de emoções que afeta toda a personalidade. Talvez aqui se possa ver com maior nitidez os perigos inerentes a qualquer classificação das atividades de lazer como irreais. 17

    Esta colocação parece bastante profícua no que diz respeito à compreensão do significado do lazer para a sociedade contemporânea. Interpretações viciadas e superficiais a respeito do lazer já não dizem muita coisa na atualidade. As várias formas de atividades de lazer são absolutamente reais e significativas para todas as sociedades da contemporaneidade.


Considerações finais

    Neste trabalho, ao abordar o conceito de lazer desenvolvido pelos cientistas sociais Norbert Elias e Eric Dunning, foram verificados alguns aspectos da relação entre o modo de vida da atual sociedade e a necessidade de certo tipo de lazer. Estes aspectos revelam ainda que as características das necessidades individuais de lazer, desenvolvidas na sociedade, refletem-se, diretamente, no desenvolvimento das características das atividades específicas de lazer, uma vez que estas últimas são desenvolvidas para a satisfação das primeiras.

    A esse respeito, parece factível o entendimento de que o conceito de catarse, desvendado e apontado como característica das atividades que provocam excitação e tensão do tipo não-sérias, ou seja, miméticas, esteja no centro da formulação das respostas para estas questões interdependentes, pois, num sentido aristotélico, é exatamente um efeito catártico que as atividades de lazer desempenham em uma sociedade condicionante como a que vivemos.

    Os quadros desenvolvidos pelos autores representam um mapeamento da ocupação do tempo dos seres humanos. Este mapeamento, ao ser analisado, revela a amplitude e a força desse efeito condicionante. A grande parte do tempo dos adultos da atual sociedade é ocupada por atividades que impõem restrições comportamentais e emocionais. A submissão gradativa à rotina produz ainda uma espécie de autocontrole. O conjunto de agentes de controle e de autocontrole levam o adulto a uma internalização e conscientização de que tal tipo de comportamento é absolutamente correto e normal.

    A necessidade que as pessoas têm de renovação emocional e quebra da rotina em uma vida altamente padronizada, é amplamente ressaltada nos dois capítulos estudados. Há, nesse sentido, uma interdependência funcional do lazer e do não-lazer, que é verificada mediante o fato desta última ser altamente condicionante e de incrustar todo impulso emocional, transformando o restante em rotina.

    As características individuais das necessidades de lazer, assim como as características das atividades desenvolvidas para a satisfação destas necessidades, que estão inseridas no contexto mimético das atividades deste tipo, expressam ainda um outro significado, ou seja, um ponto de equilíbrio para a saúde mental das pessoas. O contexto teórico apresentado sugere o entendimento que o lazer - e o esporte está contido nessa esfera - se conformou socialmente como uma espécie de cura, o ponto de equilíbrio para a sanidade mental de uma população altamente cerceada de atitudes espontâneas e amplamente envolvida por agentes controladores.

    Levar em conta as necessidades inerentes aos seres humanos das sociedades contemporâneas ao estudar o significado do lazer para essas mesmas sociedades denota o diferencial do conceito de Elias e Dunning no que diz respeito ao assunto, e ilustra, ainda, a contribuição desta abordagem para qualquer trabalho do gênero que se pretenda desenvolver.

    Os estudos sociológicos mais tradicionais definem o lazer como uma forma de relaxar mediante a fadiga e o stress do trabalho. Embora não possam ser totalmente desconsiderados, estão longe de dar conta de todos os aspectos envolvidos no contexto do lazer. Como foi verificado por intermédio da construção teórica dos autores, que rompe com esse pensamento marxista tradicional, além de não se poder pensar no lazer apenas como uma peça secundária na manutenção do processo da sociedade industrial, é registrada a necessidade de um estudo mais elaborado, visto que o assunto é muito mais complexo e variado do que se pretendia.

    A esse respeito, os autores ressaltam ainda que o lazer é um dos fatos que não se resolvem por meio de um estudo unilateral, ou seja, para os estudos direcionados aos problemas do lazer, deve-se ter em mente que este é irredutível a uma única esfera do conhecimento ou, em outras palavras, devem ser vislumbrados, levando-se em conta a relação entre os três níveis científicos: o sociológico, o psicológico e o biológico.


Notas

  1. Embora tenha sido citado o título original de publicação, faz-se oportuno esclarecer que o fato ocorreu em função de ilustrar a data da primeira publicação, assim sendo, é também oportuno esclarecer que a obra utilizada para consulta se trata da versão portuguesa, acarretando que todas as citações são referentes a esta última. The Quest for Excitement foi publicado em 1985, contudo, encontra-se em "A busca da excitação", tradução portuguesa de 1992, referências de que o primeiro capítulo do livro foi publicado originalmente em 1967, e o segundo em 1972. A evidência ao pioneirismo dos autores é também verificada nas críticas que proferem ao modo com que o esporte e o lazer eram tratados pela sociologia, ou seja, atividades sem a devida seriedade para que fossem tratadas com alguma relevância. ELIAS, N., DUNNING, E. A busca da excitação. Lisboa: DIFEL, 1992. p 12, 39.

  2. ELIAS, N. O Processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. 1 v.

  3. ______. Introdução à sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 1980. p. 78-79.

  4. ELIAS, N., DUNNING, E. A busca da excitação. Lisboa: DIFEL, 1992. p 140.

  5. Op. cit. p. 17.

  6. Op. cit. p. 17

  7. Op. cit. p. 18.

  8. Op. cit. p. 143

  9. Esse quadro foi o esboço para o que mais tarde, no segundo capítulo do mesmo volume, seria denominado "espectro do tempo livre", uma tipologia mais precisa e compreensiva da conceitualização do termo tempo livre e lazer. É preciso esclarecer ainda que, a forma como foi colocado acima, é uma forma resumida de seus detalhes. Para uma visão mais detalhada de sua configuração é sugerido verificar a fonte. Op. cit. p. 108-110, 144-149.

  10. A leitura conceitual do tempo tem sido alvo de estudo de alguns estudiosos. Gebara, em Tempo Livre e Meio Ambiente, desenvolveu um estudo que se aproxima do conceito formulado em Elias. Neste trabalho, o autor distingue tempo livre de tempo disponível, considerando o primeiro como um tempo individual e o segundo como tempo social. GEBARA, A. Tempo Livre e Meio Ambiente: uma perspectiva histórica. In: Coletânea do I Encontro Nacional de História da Educação Física e do Esporte. Campinas: FEF/UNICAMP, 1994. p. 54-59.

  11. Esta tipologia, desenvolvida no segundo capítulo da edição aqui referenciada, revela-se mais precisa que a anterior, uma vez que emergiu do esboço preliminar criado no primeiro capítulo. Para uma visão mais detalhada desse espectro seria mais oportuno visitar a fonte aqui referenciada, uma vez que não justifica desenvolvê-la em todos os seus detalhes em um artigo de tão poucas laudas. Op. cit. p. 144-149.

  12. Exemplos disso podem ser visualizados nas torcidas de futebol, que em certo momento saem da esfera do descontrole controlado para o descontrole realmente descontrolado.

  13. Op. cit. p. 164.

  14. Op. cit. p. 165.

  15. Essa é, sem dúvida, uma das dificuldades específicas civilizacionais citadas por Elias em O Processo civilizador. Como vemos, a gradual civilização das sociedades realmente provoca algumas dificuldades, a opressão comportamental é uma delas e, é, como se constata, bastante efetiva nos dias atuais. ELIAS, N. O processo civilizador...

  16. Op. cit. p. 166.

  17. Op. cit. p. 161.


Referências bibliográficas

  • ELIAS, N., DUNNING, E. A busca da excitação. Lisboa: DIFEL, 1992.

  • ELIAS, N. O Processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. 1 v.

  • ______. Introdução à sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 1980.

  • GEBARA, Ademir. Tempo Livre e Meio Ambiente: uma perspectiva histórica. In: Coletânea do I Encontro Nacional de História da Educação Física e do Esporte. Campinas: FEF/UNICAMP, 1994.

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