efdeportes.com
O Manchester United morreu! Viva o Fc United de Manchester! Depois da nova economia política do futebol. Entrevista a Adam Brown

   
*Historiador, ISCTE-Lisboa.
**Sociólogo, School of Oriental and African
Studies - University of London.
***Sociólogo, Universidade Nova de Lisboa.
(Portugal)
 
 
José Neves*  
Nuno Domingos**  
Rahul Kumar***
nevesze@hotmail.com
 

 

 

http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 101 - Octubre de 2006

1 / 1

Introdução

    Adam Brown tem 39 anos, é professor no Instituto de Cultura Popular de Manchester (Manchester Metropolitan University) e é especialista no estudo de temas da cultura popular, nomeadamente o fenómeno desportivo. Publicou vários trabalhos sobre futebol e coordenou o livro Fanatics! Power, identity and fandom in football, London: Routledge, 1998. Prepara-se para publicar, com Tim Crabbe e Gavin Mellor, Football and its Communities, London: Routledge. Actualmente, em simultâneo com a sua actividade académica, é um dos principais dinamizadores do FC United de Manchester, clube formado por adeptos do Manchester United depois deste ter passado para as mãos do investidor Malcom Glazzer. O FC United de Manchester foi criado em oposição aos modelos de gestão que vão imperando no contexto do futebol inglês. Apresentando-se como uma alternativa, o clube pretende impor formas democráticas na relação entre o clube, os seus adeptos e associados e a comunidade local (www.fc-utd.co.uk). Na entrevista que se segue, Adam Brown fala-nos sobre as transformações que afectaram o futebol inglês nas últimas décadas, referindo-se em especial ao caso do Manchester United, relatando o processo que esteve na base da criação do FC United de Manchester, descrevendo o seu modelo e apresentando as razões por que considera este projecto um exemplo a seguir no mundo do futebol.


A economia política do futebol em Inglaterra nas últimas décadas

    Aconteceram várias manifestações contra a aquisição do Manchester United pela família Glazzer que de alguma forma nos surpreenderam, já que normalmente o futebol surge como um universo despolitizado e os protestos dos apoiantes - de pequenos grupos de apoiantes - limita-se a questões relacionadas com o preço dos bilhetes, não costumando incidir sobre mudanças estruturais. No caso do Manchester United parece haver uma consciência de que o que agora sucedeu com a chegada dos Glazzer é o resultado de um conjunto de transformações maiores que se deram desde os anos de 1990. Como foi vivido o processo de transformação do futebol na última década?

Adam Brown - Existem diversos tipos de organizações de adeptos em Inglaterra desde meados dos anos de 1990. Algumas foram formadas antes ainda, no final dos anos de 1980. Diria mesmo que 1985 marcou uma mudança, já que foi o momento mais baixo do futebol inglês. Houve o fogo de Bradford que matou muita gente [53 mortos], houve o desastre do estádio Heysel, enfim, havia hooliganismo por todo o lado. O governo de Tatcher, à época, dizia que o país devia ver-se livre do futebol. Disse mesmo que talvez se devesse banir o jogo, o que se sabia não vir a acontecer, mas a hipótese diz-nos algo sobre o modo como o futebol foi inteiramente equacionado como um problema social. Futebol, nesses tempos, significava violência. Não havia celebridades a anunciar que eram adeptos de futebol e a reacção dos adeptos que não estavam envolvidos nos actos de violência foi dizer "desculpem, mas nós somos diferentes, estamos preocupados com a segurança e também estamos preocupados com o modo como o jogo é gerido". Em 1985 surgiu a primeira organização de adeptos, a Football Supporters Association. Esta associação fez uma verdadeira política de lobby e cedo conseguiu uma grande publicidade. Na época, o governo tentou introduzir um sistema de bilhetes de identidade para todos os adeptos de futebol. Cada indivíduo tinha que ser identificado pelo clube e não podia entrar no estádio sem o cartão. Se esta tentativa tivesse resultado, teria sido um desastre, um desastre absoluto, para além dos problemas que se colocavam em termos de liberdades civis. A acção da Football Supporters Association foi importante para impedir que essa legislação avançasse. Ao mesmo tempo houve um aumento de edição de revistas de adeptos que, apesar de terem uma componente de entretenimento, também criticavam as direcções dos clubes e a gestão do jogo. Este movimento desenvolveu-se muito no final dos anos de 1980 e princípios de 1990, quando cresceram as organizações de adeptos ligadas a cada clube, as Independent Supporters Associations. As causas por que lutavam estas organizações eram diversas. No Arsenal, combateram e venceram um plano que obrigava os adeptos da bancada norte a sentarem-se e a pagarem, pelo direito a um lugar de época nessa bancada, 500£ por época.

    Todo este contexto é essencial para perceber o que se passou mais tarde no caso do Manchester United. Entretanto ocorreram ainda outros acontecimentos essenciais: a tragédia de Hillsborough; o relatório Taylor obrigando todos os estádios em Inglaterra a possuir lugares sentados e apenas lugares sentados; a criação da Premier League com o patrocínio da BSkyB, o que implicou uma alteração dos horários dos jogos no sentido de satisfazer os interesses televisivos; a subida dos preços dos bilhetes, de uma forma que não se viu em mais nenhum lugar na Europa, com um aumento de 350% em cinco anos. Tudo isto colocou problemas a muita gente. Tratava-se de obrigar alguém a sentar-se quando não queria estar sentado e de obrigar a pagar o dobro do preço pelo "privilégio" de estar sentado. Para muitos adeptos era demais. O clube em que tudo isto aconteceu de uma forma mais extrema foi o Manchester United. Quando o Manchester, mais tarde, passou a ser cotado na bolsa de valores de Londres, então passou a ter que maximizar os seus lucros para valorizar as suas acções e assim servir os accionistas (o Manchester United foi o segundo clube a ser cotado em bolsa; o Tottenham foi cotado em 1983 mas o caso foi como que uma anomalia). Automaticamente houve um aumento no preço dos bilhetes. O meu bilhete de época em 1989 custava 75£, em meados dos anos de 1990 já estava quase nas 300£. Todas estas modificações são importantes para percebermos os protestos actuais. Uma das questões que mais afectou os adeptos do Manchester foi precisamente a obrigação de verem o jogo sentados. Largas secções do estádio adoram ver o jogo de pé. Antes desta mudança, o próprio programa do jogo pedia aos adeptos que fossem apaixonados, que se levantassem e cantassem a apoiar a equipa. Isso acontecia sempre. Mais tarde, colocaram anúncios à volta do estádio a ameaçar com expulsão e cancelamento do bilhete de época os adeptos que não se sentassem. Num jogo com o Arsenal, os stewards começaram a expulsar pessoas. Depois desse jogo, a Independent Supporters Association foi chamada. Lembro-me bem da primeira reunião, uma grande reunião pública na qual que se perguntou aos adeptos quais os principais problemas que tinham com o clube. Falaram então de várias questões, da propriedade do clube, da questão dos lugares sentados, do preço dos bilhetes, dos adeptos que vinham de fora e que estavam a ganhar preferência em relação às pessoas que viviam mais próximo, etc.. O livro de Anthony King, The End of Terraces: The Tansformation of English Football in the 1990s (Leicester University Press, Londres, 1998) fala sobre isso, sobre os adeptos que vinham da Irlanda ou da Escandinávia, gastavam muito dinheiro nas lojas do clubes e eram como tal preferidos aos adeptos locais. Mas a questão fundamental era a da propriedade do clube. Tornando-se um Plc, o Manchester passava a ser gerido em proveito dos grandes bancos da City de Londres, porque eram eles que tinham a maioria das acções. Foi nesse momento que tudo realmente começou.

    Em certo sentido, o movimento foi iniciado em 1995, mas teve o ponto culminante em 1998 quando a BSkyB tentou comprar o clube. Nessa altura o movimento cresceu imenso. A irregularidade é um factor que caracteriza estes movimentos, as pessoas não vão ao futebol para tomar posições políticas, vão para se divertirem. Durante um período estão com a causa, depois largam-na, mais tarde voltam. Percebemos que era assim que funcionava: inicialmente o movimento era muito pequeno, tinha mais ou menos mil membros, cresceu quando a BSkyB tentou comprar o clube e depois disso tornou-se outra vez mais pequeno.


    Houve algum apoiou vindo do interior dos clube? Dos jogadores, por exemplo?

AB - Os jogadores foram sempre muito importantes. Quando começámos a fazer reuniões, costumávamos convidar os jogadores. O Roy Keane apareceu sempre que foi convidado, o Gary Neville também apareceu. O David Beckham era para vir mas nunca apareceu e o Alex Ferguson apareceu em três reuniões


    Nunca pensaram em boicotar os bancos que estavam por detrás das operações financeiras? Em Portugal, os três maiores clubes têm grandes dívidas para com os bancos e há sempre uma sensação de dependência.

AB - No caso do Manchester não havia dívidas aos bancos. Foram fundos privados de pensões que investiram. O Manchester foi sempre lucrativo e a lógica de mercado prosseguida pelos fundos de pensão correspondeu a um clássico esquema de acumulação capitalista. Como o Manchester era uma Plc, legalmente a administração do clube tem que procurar satisfazer, antes de mais, o interesse dos accionistas. O resto pouco interessa. Neste contexto, eles procuraram ao máximo evitar as críticas, acumulando gradualmente, aumentando progressivamente o preço dos bilhetes. O que se passou com a BskyB foi interessante porque acabou por ser uma campanha dirigida contra o governo inglês mais do que contra o clube. Ao princípio todos os jornalistas diziam "vocês não vão conseguir travar o processo, é a lógica do mercado, o futebol é um negócio, já tudo está resolvido". Nós dissemos: "tudo bem, mas o mínimo que esperávamos era o vosso apoiou para tentar evitar que tudo acontecesse". No fim foi inacreditável que tenhamos vencido Rupert Murdoch, uma das pessoas mais poderosas do mundo. Ele quase nunca tinha sido parado em qualquer tentativa de aquisição comercial mas no Manchester foi parado.


    Há algum tipo de ligação entre o movimento de adeptos do Manchester e outros movimentos sociais?

AB - Nem por isso e isso diz alguma coisa acerca da esquerda em Manchester e até mesmo em toda a Inglaterra. Em algumas ocasiões, por exemplo quando o Eric Cantona foi banido depois de reagir a um ataque racista, o Socialist Workers Party, a Anti-Nazi League e outras organizações anti-racistas apareceram de súbito em Old Trafford. O facto de Cantona ter sido insultado por ser francês nem era bem racismo mas xenofobia. Os adeptos do Manchester não reagiram muito bem ao aparecimento repentino destas organizações políticas atrás de uma história mediática. Eles nunca tinham ido ao estádio antes e os adeptos perguntaram "onde é que estavam na semana passada e nas semanas anteriores?"


    Não há nenhuma tradição da esquerda inglesa em associar ao futebol uma dimensão de protesto?

AB - Absolutamente nenhuma. Passa-se o mesmo em relação a toda a cultura popular. Houve uma atitude negativa em relação à cultura popular, certamente iniciada nas décadas de 1950 e 1960. Algumas das pessoas das associações de adeptos têm estado envolvidas em movimentos de esquerda. É o caso de Andy Walsh, que eu conheci no Manchester United e que era o líder do movimento que parou a BSkyB e agora é o director-geral do novo FC United de Manchester. Nessa altura decorreram alguns motins e ele esteve preso duas semanas. Andy Walsh sempre esteve envolvido em movimentos de esquerda e eu próprio já estive envolvido. Estou menos envolvido nos dias de hoje, mas estive bastante comprometido nos anos de 1980 e princípios de 1990, embora em nada muito organizado. Existem também pessoas que são membros de sindicatos nos grupos de adeptos. Existe esta espécie de ligações mas nada de formal e certamente que não há nenhum interesse real por das organizações políticas. Alguns deputados trabalhistas eleitos por Manchester têm dado sempre o seu apoio, mas isso acontece porque são adeptos do Manchester.


    A tradição inglesa dos Cultural Studies nunca teve uma tradução política…

AB - Exacto. Aqui em Inglaterra tivemos o Stuart Hall a manifestar-se em favor de causas singulares mas nunca aconteceu nada de fundo. Se houve algum interesse político em criar relações com a cultura popular, ele não veio da esquerda mas até do outro lado do espectro político. Excepção é alguns pequenos protestos contra o encerramento dos clubes de Acid House nos anos de 1990.


Reinventando o Manchester United, construindo o FC United

    A decisão de alguns adeptos do Manchester United em formar um novo clube em protesto contra a chegada dos Glazzer é apenas um protesto simbólico ou pretende ser o início de um novo projecto?

AB - É um projecto que foi levado muito a sério. Quando se forma um novo clube é preciso fazer um inscrição na Football Association e outra na Liga, é necessário arranjar um campo, um treinador, uma equipa. Criámos um website, juntámos apoios e soubemos que era possível. Na segunda reunião que fizemos já estiveram presentes cerca de 2000 pessoas. Houve 3000 pessoas que doaram dinheiro ao clube. Pedimos dinheiro a pessoas sem fazemos a mínima ideia do que poderia vir a acontecer. Conseguimos juntar mais de 15000£ e isso foi essencial para a Liga perceber que era possível sobrevivermos, mesmo se ninguém aparecesse no estádio para assistir aos jogos.


    Como encontraram treinador e onde arranjaram jogadores?

AB - O treinador foi a primeira questão a resolver. Tínhamos alguns contactos com pessoas ligadas ao futebol. Acabaram por se perfilar dois candidatos. Um era de Liverpool. Um homem muito experiente e um treinador muito bem sucedido em ligas não profissionais mas vinha acompanhado pela sua equipa e pelo seu staff. Sabiam que nós tínhamos dinheiro e que eles iriam ter bastante publicidade. Em certa medida, ele era a solução mais segura. O outro candidato tinha 34 anos, era muito novo, sem credenciais de treinador. Aliás, ainda não as tem e isso é algo que temos que resolver neste Verão. Falaram-nos muito bem dele e era um grande adepto do Manchester United. Também não gostava do que se estava a passar com a chegada ao poder dos Glazzer. Escolhemo-lo e foi a melhor decisão que podíamos ter tomado porque ele acredita no projecto. Quando dá entrevistas sabe o que dizer, sabe defender o projecto, não precisa de nós para dizer as coisas certas. Houve um jogo fora de casa que foi cancelado devido ao mau tempo. Só se soube uma hora antes e os adeptos já tinham saído. Não era muito longe de Manchester mas o treinador pegou na equipa e levou-a a vários Pubs para que os jogadores estivessem próximos dos adeptos. Porque é importante que os jogadores estejam próximo dos adeptos e que bebam juntos uns copos depois dos jogos.


    E os jogadores, como foram seleccionados?

AB - A maior parte vem dos campeonatos da Non League. A liga é organizada assim, há a Conference, Conference North, Unibank Premier, Unibank First e mais abaixo encontra-se a divisão para onde agora fomos promovidos. Um dos jogadores que faz parte do clube e que estava quase a jogar no nível da liga resolveu vir jogar para nós porque é um adepto do Manchester United e acredita totalmente na nossa causa. Também organizámos treinos de captação abertos ao público. Pusemos um anúncio na nossa página de Internet e tivemos 950 pessoas a participarem no processo de selecção da equipa. O treinador, como primeira tarefa, teve que lidar com 950 inscrições para treinos de captação. Depois reduziu a lista para cerca de 200 mas foi uma ideia óptima pois o processo de selecção abriu o clube ao exterior. Foram dias muito bons. Tudo foi realmente sobre futebol, sobre como construir um clube, sobre como construir uma equipa.


    Como surgiu o modelo que o FC United deveria seguir, as regras de funcionamento do clube?

AB - Tudo vem na linhagem de acontecimentos de que falei há pouco. A tentativa de compra da BSkyB foi muito importante, fez as pessoas pensarem: "porque é que o nosso clube é gerido desta forma e tem esta forma de propriedade". Para além disto, nós tínhamos bons contactos à época com o Joan Laporta, que é hoje o presidente do Barcelona. Conhecemo-lo na mesma altura que conhecemos o indivíduo que contratou o Cruyff. Houve logo uma simpatia mútua. Quando conhecemos o Laporta, ele estava a tentar proteger o Barcelona da acção de Nuñez que procurava comercializar o clube. Ele estava a tentar recuperar os princípios do Barcelona que é um clube dos sócios, democrático, que representa a Catalunha e tudo isso. Na mesma altura, houve duas ou três conferências académicas em Londres sobre a propriedade dos clubes. Isso também foi importante para alguns de nós. Eu estava envolvido na Government's Football Taskforce, criada após os trabalhistas chegarem ao governo. Neste novo organismo estavam representados a PremierLeague e as associações de adeptos. Eu acabei por ser convidado como membro independente. Uma das questões que eles nos pediram para trabalhar foi a propriedade dos clubes. De facto, uma coisa boa que o governo trabalhista fez pelo futebol foi criar uma organização chamada Supporters Direct que pretendia ajudar grupos de adeptos a juntarem-se e a comprarem acções dos seus clubes, tornando-se accionistas colectivos. Agora há vários destes esquemas. Chamam-se Supporters Trusts e correspondem a um modelo mútuo de propriedade.

    O Barcelona foi o exemplo no qual se inspirou o FC United. Desde o princípio que pensamos que o FC United devia ser dos sócios, dirigido democraticamente, um membro, um voto, enfim, tudo o que não tínhamos no Manchester United. Criámos o FC United à imagem do que gostaríamos que fosse o Manchester United. O símbolo do FC United faz referência a Manchester, tem o símbolo da cidade e quer dizer que pertencemos a Manchester. O Manchester United já teve este símbolo. Acabou por substitui-lo.


    Nos outros grandes clubes ingleses houve algum movimento similar ao de Manchester?

AB - O único clube que fez algo de similar foi o Wimbledon. Se o Barcelona foi uma das nossas inspirações, o Wimbledon foi a outra. Eles chegaram a vir a Manchester contar-nos a sua experiência. Sempre nos apoiaram.


    No caso do Chelsea, com Abramovich...

AB - Aí não há qualquer oposição por parte dos adeptos. Ele entrou com 900 milhões de libras e não com 550 milhões de libras de dívidas, como foi o caso dos Glazzer. Além disso eles têm vindo a ganhar desportivamente. No Manchester, estávamos habituados a ganhar e o facto do protesto aparecer ao mesmo tempo que o insucesso foi muito importante, porque criou um espaço político para se desenvolver uma oposição. Na imprensa ainda houve algumas questões sobre a origem do dinheiro de Abramovich, mas a imprensa, em geral, adorou a sua chegada. Especialmente porque agora já há dois clubes londrinos que podem ganhar o título. Ninguém levantou grandes questões quanto à propriedade do clube no caso de Abramovich. Procuraram testar a sua personalidade, mas a propriedade não era a questão.


    Acha que a questão do Manchester ajudou a mudar o discurso acerca da economia política do futebol?

AB - Sinceramente, acho que sim. A questão da BSkyB, todo o processo à volta dos Glazzer, ajudou a isso. Mas por outro lado, acho que na maior parte dos clubes não há a consciência que existiu no Manchester United. Parte das pessoas não percebem, acham que Glazzer é um homem de negócios e que não vai deixar cair o clube.


    Qual foi a reacção do Manchester United à criação do FC United?

AB - Não houve reacção. Eles sabiam que se reagissem iam apenas empolar a situação. Os protestos mostraram a força do movimento. Os membros da direcção do Manchester pensaram que se aquilo se passasse assim durante toda a próxima época era muito mau para o clube. Por outro lado, com a formação do FC United eram menos 2000 pessoas zangadas a incomodar. Se protestássemos muito no campo podíamos realmente ser proibidos de assistir a jogos de futebol. É muito simples em Inglaterra a polícia afastar pessoas do futebol. O que foi bom com a formação do FC United é que se criou algo novo em vez de estarmos sempre e só a protestar, que é aquilo que no fundo todos fizemos durante os últimos 15 anos.


    Como é que os sócios participam financeiramente?

AB - Nesta primeira época cada sócio doou o que foi possível. Bastava isso para ser sócio. A partir do próximo ano temos que introduzir uma anuidade, mas são apenas 10£. É preciso pagar newsletters e outras coisas. Os sócios que pagarem um bilhete de época têm um desconto. Os mais novos também têm um desconto. Podem adquirir um bilhete de época por 20£.


    Anthony King falou bastante da relação dos adeptos do Manchester com a sua cidade. Esta ligação seria até mais forte do que aquela que teriam com o país. Chamou-lhe um "new localism" em que o enfoque local era simultâneo ao intensificar de laços com a Europa.

AB - Ele tem razão em relação à dimensão local, mas no que respeita à ligação com a Europa tenho algumas dúvidas. Para alguns adeptos talvez. No que respeita à selecção nunca houve grandes grupos de adeptos do Manchester United ou do Liverpool a acompanharem a equipa. Isso tem a ver com o facto de serem clubes do Norte, de serem ao mesmo tempo de grandes centros industriais, terem uma identidade própria. Eu estive no estádio nos quartos de final do Europeu em 2004, quando a Inglaterra jogou com Portugal e havia centenas e centenas de bandeiras inglesas e só duas bandeiras eram de clubes que competiram nas competições europeias nos últimos 15 anos. A maior parte era de clubes muito pequenos. Se alguém tem a experiência de seguir um grande clube pela Europa não tem tanta necessidade de apoiar a selecção nacional. O Anthony King fala disso mas apresenta-o como algo completamente novo e eu não estou convencido que o seja. Talvez se pudesse dizer o mesmo em relação aos adeptos ingleses no princípio dos anos de 1980, quando estiveram na Europa por muito tempo. Então os adeptos voltavam com roupas que não existiam em Inglaterra. Foi aliás aí que uma cultura mais informal começou realmente a aparecer em Inglaterra. Antes parecia tudo muito exótico.


    Até onde vai o FC United? E as expectativas em relação ao FC United?

AB - No princípio começámos a pensar que tínhamos que juntar dinheiro. Quando juntámos 1500£ foi óptimo. O primeiro jogo foi um amigável contra um clube local. Depois entrámos na Liga, no Northwest County Division Two. Foi esta divisão que ganhámos. Passámos para a primeira divisão. Se ganharmos para o ano mudamos para uma Liga que corresponde a uma área regional maior. Mais oito promoções e chegamos à primeira liga nacional…


    Há alguma possibilidade de jogarem com o Manchester United para a Taça?

AB - Há uma possibilidade remota. A FA é uma organização ainda muito victoriana. É preciso fazer uma inscrição para poder jogar na Taça de Inglaterra e para isso temos que esperar dois anos. Este ano vamos para uma Taça de Inglaterra de clubes que não pertencem à liga. No ano poderemos tentar, mas temos que passar duas rondas de qualificação, três rondas preliminares e depois, se tivermos sorte no sorteio, poderemos então calhar com o Manchester United. Seria extraordinário.


    O facto dos Glazzers serem americanos teve alguma influência nos protestos?

AB - Nunca houve nada de nacionalista nos protestos. O protesto era dirigido contra alguém que não tinha nada a ver com o clube. Podiam ser ingleses, gregos ou russos... bem, se fossem russos talvez fosse mais difícil que existissem protestos porque eles poriam um bilião de libras no clube e seria muito mais difícil convencer as pessoas a lutarem pela causa. Outra questão acerca da tomada do poder por parte dos Glazzer é que o Manchester United passou de clube mais lucrativo do mundo para aquele que mais dívidas tem na Europa e talvez no mundo. Os Glazzer tiveram que pedir emprestados 800 milhões de libras para comprar o clube. 550 milhões foram pedidos a um empresa americana de fundos, a Hedge Funds. No fim do próximo ano será o grande teste para os Glazzer. Será o momento em que os investidores vêm pedir o pagamento e, nessa altura, para pagar, ele terá que ter duplicado o rendimento do Manchester. Dá para perguntar como é que o Manchester, o mais bem sucedido clube do mundo em termos financeiros, vai conseguir fazer ainda mais dinheiro? Tudo isto faz pensar na possibilidade de uma grande ruptura. Não se consegue perceber como os Glazzer vão pagar. Quebrando o acordo com as televisões? Aliando-se a outros clubes do G14? A maior parte da receita do clube continua a resultar das entradas no estádio, uma vez que o estádio é muito grande e eles cobram muito por cada ingresso. No caso do Manchester United, o estádio faz mais dinheiro do que os acordos com a televisão.


    E qual é a política de preços do FC United?

AB - No FC United os preços são muito mais baixos, 7£. As grandes equipas chegam a cobrar 100£. O estádio que arrendámos tem os lugares todos sentados porque foi assim que o fizeram. Além disso é todo azul. E isso não ajuda. Se as autoridades alguma vez obrigarem as pessoas a sentarem-se, nós não acataremos as ordens. Mas por ora ninguém nos incomodou. Tentámos falar com os stewards para não expulsarem ninguém, que falem primeiro connosco que nós procuraremos resolver os problemas. Tivemos alguns problemas com uns 14 ou 15 miúdos, embora fossem muito bons no apoio ao clube. Falámos com os stewards e dissemos que não queríamos ver-nos livres dos miúdos, queríamos mantê-los. Depois tivemos uma conversa com os próprios miúdos, explicámos que gostávamos de os ter no campo mas que não podiam continuar a comportar-se daquela forma. Depois levámo-los às cabines para falar com o treinador e com os jogadores, o que correu muito bem. Tornaram-se óptimos rapazes. Há porém limites no comportamento. Se houver manifestações racistas têm que sair. Tivemos alguns problemas com três membros do British National Party. Alguém os reconheceu por umas fotografias na Internet. Falámos com eles e dissemos que não podíamos impedi-los de virem ao estádio mas que não podiam estar presentes com símbolos do partido. O primeiro jogo que realizámos foi como uma festa. Nunca se sabe quantas pessoas vão aparecer, mas apareceram duas mil pessoas. A primeira canção que cantaram foi "sack the board, sack the board" - demitam a administração. Entretanto, nós tivemos que cumprir as regras, nomeadamente ter um número adequado de polícia dentro do estádio. É uma loucura o número de polícias necessário para guardar um estádio, mas nós tínhamos de provar que cada jogo não se iria tornar num motim.


    Não têm nenhum patrocínio?

AB - Não. Tomámos essa decisão quando estávamos a organizar o clube mas mais tarde abrimos a questão aos sócios. Eles decidiram que não devíamos ter publicidade. Só 20 pessoas votaram contra. Temos todavia publicidade nos programas do jogo. O que pretendemos é desenvolver parcerias, mais do que conseguir patrocínios comerciais. Se eu por exemplo quiser organizar um curso de treino para miúdos talvez queira ter um apoio de um patrocinador para esse programa em particular. Preferimos assim, financia-se uma actividade em particular para que toda a gente possa ver para onde é que o dinheiro vai. Nós fizemos um manifesto que está no nosso website. Aí dizemos que queremos estar abertos a todas as comunidades em Manchester, independentemente da etnia, da idade, do rendimento... especialmente do rendimento, porque queremos estar perto de todos os que foram afastados do futebol mainstream. Mas o clube foi criado para beneficiar as comunidades de Manchester, desenvolver o futebol, desenvolver programas relacionados com a educação e a saúde. Neste contexto, o nome do clube pode ser utilizado. Queremos que saibam que estamos a trabalhar para as pessoas.

Lisboa, Maio de 2006.

Outro artigos em Portugués

  www.efdeportes.com/
http://www.efdeportes.com/ · FreeFind
   

revista digital · Año 11 · N° 101 | Buenos Aires, Octubre 2006  
© 1997-2006 Derechos reservados