FUTEBOL E MODERNIDADE NO BRASIL: A GEOGRAFIA HISTÓRICA DE UMA INOVAÇÃO. Gilmar Mascarenhas de Jesus     
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Introdução e a Difusão do Futebol no Brasil
No final do século XIX, quando são criados os primeiros clubes de futebol no Brasil, nosso sistema de cidades é ainda bastante reduzido e desintegrado no plano interno. A incipiente industrialização não tivera ainda tempo e forças para formatar uma densa base territorial urbana. O modelo agro-exportador comandava a economia nacional, resultando numa formação espacial estruturada em ilhas produtivas, voltadas para o exterior (SINGER, 1974; GEIGER, 1963). Nossas principais cidades não possuíam articulações entre si. Antes, eram o elo mercantil entre uma hinterlândia agro-pastorial-mínero-monocultora e o mercado internacional.

É neste arranjo espacial em arquipélago que o Brasil vai vivenciar a introdução do futebol, que nasce entre nós completamente regionalizado (AUDINHO & KLEIN, 1996: 25). A inexistência de uma efetiva metrópole nacional, a comandar as ações sobre o vasto (e pouco povoado) território, permitirá uma experiência peculiar quanto ao advento do futebol. Este não se fará a partir de um principal pólo difusor, mas sim através de diversas incursões independentes e territorialmente desconectadas entre si. A hierarquia urbana, por conseguinte, não ditará a onda de inovações, que poderá atingir cidades menos importantes antes mesmo de ser conhecida na capital federal.

Entretanto, se examinarmos a introdução do futebol como um processo e não como um conjunto de fatos isolados, poderemos notar a supremacia das cidades maiores ou mais modernas. Nestas, a consolidação desta inovação far-se-á de forma mais efetiva e antecipada, por conter tais cidades os ingredientes necessários para a incorporação plena da modernidade.

Face à incerteza absoluta quanto a eventos do tipo primeira bola, primeiro jogo, primeiro time, e sobretudo considerando que fatos efêmeros e isolados não constroem processos sociais de maior relevância, restringimos nossa pesquisa a clubes e ligas de caráter duradouro. Procuramos assim identificar em cada cidade o que chamamos de fase gestacional do futebol: período que decorre entre a fundação (considerada apenas quando por elementos nacionais) da primeira agremiação permanente e a posterior constituição de uma liga local de caráter perene, capaz de organizar e manter regularmente os campeonatos anuais, congregando clubes de uma mesma cidade ou região.

A opção por delimitar esta fase gestacional se explica: a simples existência de uma associação esportiva, mesmo que dotada de atas, diretoria, sede própria, e com o expresso objetivo de praticar o football, nem sempre garante o sucesso ou mesmo a continuidade local desta associação. Muitas iniciativas isoladas não repercutiram por falta de um ambiente local propício, perecendo às vezes, sem deixar registros. Vide o caso do futebol em Rondônia (outrora Guaporé): o Ypiranga E.C. foi criado em 1919, mas somente a partir de 1944 o então recém-criado território terá uma federação com campeonatos anuais (PINHEIRO, 1982:15). Evidentemente, o mero ato jurídico de criação de uma agremiação não significa a imediata constituição de uma vida social urbana na qual o futebol exista como fato cotidiano.

O resultado de nossa investigação foi o seguinte quadro, que demarca no período de 1898 a 1915, a fase gestacional de cada uma das cidades estudadas:

Observa-se que cada cidade apresenta um ritmo e um momento particular de incorporação do futebol em seu cotidiano. No afã de contextualizar cada um destes processos gestacionais, procuramos traçar um breve quadro comparativo geral das cidades estudadas. Os principais elementos tomados em conta foram: efetivo populacional, velocidade de crecimento (demográfico e econômico), patamar de industrialização, grau de conexão com o exterior, presença de capitais ingleses, disponibilidade de meios de transporte intra-urbano e de áreas livres para recreação, além de elementos menos palpáveis como o potencial de consumo de serviços da nescente industria do entretenimento e receptividade às inovações.

Algumas cidades perfazem em poucos anos o período gestacional, como Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. As duas primeiras apresentam condições muito vantajosas às inovações civilizadoras. A capital federal (Rio de Janeiro) se impõe na rede urbana nacional pelo seu porte demográfico-industrial, contando com setecentos mil habitantes em 1900, e o maior parque fabril do País. Dispunha ainda de uma vasta classe abastada e inúmeros estabelecimentos de ensino onde a prática do futebol entre adolescentes desta mesma classe gerava clubes como o Botafogo F.C. (1904), mesmo ano em que o já extenso mundo fabril carioca criava o Bangu A.C. Há mercado consumidor suficiente para bancar vários esportes como espetáculo: os esportes náuticos, o turfe, e outras modalidades então bastante desenvolvidas na cidade (MELO, 1997; NEEDELL, 1993) não precisaram ser preteridas para que o futebol conquistasse rapidamente um público razoável, ou grande número de praticantes (ARAÚJO, 1995).

O Fluminense Football Club é fundado em 1902, sendo o primeiro clube carioca especificamente criado para a prática do futebol. Trata-se de uma associação esportiva altamente elitista, composta e financiada por membros de poderosas famílias, dentre as quais merece destaque especial a família Guinle, não apenas pelas fundamentais realizações materiais no clube, mas sobretudo pela fortuna que lhe valia a condição de um dos sobrenomes mais ilustres da belle époque carioca (MATTOS, 1997: 47).

Já em 1904 o Fluminense F.C. começa, e com grande sucesso, a cobrar ingressos para animados duelos com o Paulistano (COELHO NETO, 1952: 41). Tal êxito, como vimos, certamente animou a iniciativa de criação de outros clubes a partir desse ano, até que em 1906 é realizado o primeiro campeonato carioca de futebol, desde então jamais interrompido em sua realização anual, superando crises profundas como a que ocorreu em 1907, quando Botafogo e Fluminense terminaram empatados e não houve consenso quanto ao vencedor do certame.

São Paulo, com sua pujança e velocidade modernizadora, fervia ao sabor da fricção alucinante das diferentes etnias. Um crescimento urbano espantososo quase quadruplicara a população paulistana na última década do século XIX. O futebol germina num ambiente de vazio emocional e instabilidade psicológica (SEVCENKO, 1992 e 1994), e adquire surpreendente precocidade: os ingleses ali praticam o futebol desde 1894, o C.A. Paulistano é de 19002, e em 1910 o popular futebol de várzea já era um grande fenômeno na cidade (MAZZONI, 1950). Aliás, ao que tudo indica, a cidade de São Paulo propicia a popularização da prática futebolística antes e em grau mais acentuado que qualquer outra cidade brasileira. Já nas últimas décadas do século XIX era muito intensa a vida esportiva paulistana, com destaque para o ciclismo (REIS FILHO, 1994). Aliás a cidade é também a pioneira nesta modalidade esportiva, contando com um velódromo desde 1875, local que será apropriado também pelo futebol, 25 anos mais tarde (MAXIMO, 1968: 53). A cidade devora inovações com voracidade única, sedenta que está de novos formatos identitários. Vale lembrar SANTOS (1994: 71):

"A história de uma dada cidade se produz através de um urbano que ela incorpora ou deixa de incorporar; esse urbano que em outros lugares pode tardar a chegar, e que em São Paulo sempre chegou quase imediatamente".

Com todas estas prerrogativas, a cidade de São Paulo vai abrigar o primeiro campeonato de futebol no Brasil, no ano de 1902, reunindo cinco clubes, onde a presença da colônia inglesa é marcante (FONTENELLE & STORTI, 1997, e ROSSI, 1989). Tal característica decorre da intensa atuação de capitais britânicos nas diversas frentes de instalação e expansão de obras de infra-estrututra em uma cidade que cresce rapidamente e dispõe de fartos recursos materiais. Não podemos deixar de mencionar a presença maciça de imigantes europeus na cidade, um fluxo intenso que, na última década do século XIX, poderia estar trazendo vivências ou pelo menos informações favoráveis à adesão ao esporte bretão.

Quanto ao caso de Salvador, este merece uma incursão mais cuidadosa, para desvelar as razões da excelente performance futebolística em uma cidade grande sim (200 mil habitantes) mas inserida em pleno contexto de prolongada estagnação da sociedade e economia locais. O E.C. Vitória (originalmente dedicado ao crícket) adere ao futebol em 1901, e em 1903 é fundado o primeiro clube destinado especificamente ao futebol (MAIA, 1944). Em 1904 consegue-se reunir quatro clubes para fundar uma liga e realizar um torneio no ano seguinte que consiste em nada menos que o segundo campeonato local de futebol em todo o Brasil. Com certeza, a condição portuária e a presença maciça de empreendimentos ingleses atuaram neste sentido (não por acaso, o primeiro clube campeão baiano, o Internacional, é formado inteiramente por ingleses, e o primeiro presidente da Liga Bahiana de Sports Terrestres chama-se Frank Gordon May). Vale registrar um ligeiro surto de industrialização e modernização que viveu a cidade exatamente no início deste século, quando se torna residência de ricos fazendeiros (SINGER, 1974; FERNANDES & GOMES,1990), como um possível contexto propício ao advento do futebol pela elite local.

Porto Alegre se mostra relativamente bem-sucedida no ramo, o que se pode vincular ao seu dinamismo industrial e portuário, bem como com a presença significativa de imigrantes alemães (SINGER,1974), indutores de novos hábitos culturais, dentre os quais os esportes. O ciclismo, o remo, a corrida de cavalos, e várias outras modalidades esportivas eram praticadas intensamente, sobretudo pela colônia alemã. Digno de registro é o fato de a cidade já dispor de quatro hipódromos no final do século XIX (MONTEIRO, 1995: 32). O Gremio F.B.P.A. e o totalmente germânico Fussball (ambos de 1903), monopolizarão o futebol porto-alegrense por seis anos, enfrentando-se regularmente a cada seis meses (DIENSTMANN, 1987; PIRES, 1967:134). Porto Alegre era então a cabeça de rede da próspera zona colonial gaúcha, e em rápido crescimento, já atingindo a marca de cem mil habitantes. Neste contexto de crescimento urbano novos clubes são criados e em 1910 se disputa o primeiro torneio metropoltano contando com sete agremiações.

Belo Horizonte é aqui a cidade que mais tardiamente acolheu a prática sistemática do futebol, fato que certamente está associado ao porte incipiente de uma cidade ainda em plena construção, com apenas 13 mil moradores em 1900, mas alcançando velozmente a marca dos 40 mil em 1912 (SINGER, 1974). Alguns clubes tiveram existência efêmera antes de 1908 (fundação do C.Atlético Mineiro), e há referências de densa vida esportiva pelas vastas áreas livres da cidade de então (ZILLER, 1974). Considerando seu ínfimo porte demográfico, não podemos acusar o futebol local de mal-sucedido.

Belém apresenta por sua vez a fase gestacional mais lenta, dentre as cidades aqui examinadas. Vários clubes foram criados após o Pará F.C. (1898), porém nenhum perdurou. Há inclusive referências na imprensa local quanto à prática de matchs (partidas de futebol) desde 1896 (LUZ, 1970:19). Uma liga foi criada em 1906, chegando a organizar e iniciar um campeonato com sete clubes participantes, que também não vingou (MÁXIMO, 1968).Uma avaliação inicial sugere que sua condição privilegiada de porta de entrada da Amazônia em pleno ciclo da borracha permitiu-lhe o acesso precoce às novidades européias. Por outro lado, o caráter reduzido ou absenteísta de suas elites urbanas não evitou que clubes e ligas fundados no período perecessem, sem encontrar forças para sobreviver.

A cidade do Recife não apresenta surpresas: sua forte conexão com o exterior suscita a introdução rápida do futebol, porém sua consolidação é relativamente lenta, por apresentar um panorama urbano mais próximo ao de Belém que ao de cidades dinâmicas e mais modernas como Rio de Janeiro, São Paulo ou mesmo Porto Alegre. A decadência da exportação do açúcar e a pobreza de sua vasta hinterlândia, formataram um cenário urbano inchado (SINGER, 1974). Neste quadro, o Sport Club do Recife (de 1905) terá de esperar dez anos até que as condições locais amadureçam a ponto da cidade sustentar uma liga e seu campeonato (ALVES, 1978; FERREIRA, 1995).

Breve Conclusão
Face o atual estágio da pesquisa, e seu caráter pioneiro na geografia brasileira, não pretendemos no momento ir além de breves reflexões sobre a difusão do futebol no Brasil e sua relação com a estrutura territorial. Primeiramente, percebe-se que o futebol enquanto informação atinge o território brasileiro quase simultaneamente em pontos diversos e desconectados entre si, o que resgata o velho debate acerca da estrutura territorial em arquipélago e salienta a presença profusa dos capitais ingleses, pois estes são os principais agentes de introdução desta e de tantas outras modalidades esportivas no Brasil. As metrópoles nacionais, neste sentido, somente passam a exercer seu domínio e influência no processo de difusão espacial do futebol num segundo momento, que por enquanto preferimos, por prudência, não precisar. Contestamos parcialmente a tese de T. Mazzoni (1968), que sugere o paulistano como agente privilegiado de difusão do futebol pelo território nacional, já na primeira década de nosso século.

Outro aspecto a se ressaltar é a velocidade diferenciada com a qual diversos lugares recebem e assimilam uma determinada inovação, ainda que se trate de cidades com semelhantes inserções na hierarquia e rede urbanas de então. As cidades maiores e/ou mais modernas, demonstraram maior capacidade em absorver uma nova informação e transformá-la em sistema de ações que incorporasse à vida local novos objetos geográficos articulados e novas práticas sócio-culturais. Existe portanto uma expansão espacialmente diferenciada do futebol no Brasil, mesmo comparando-se apenas cidades de semelhante posição na hierarquia urbana nacional e semelhante papel na estrutura agro-exportadora (Belo Horizonte seria a exceção).

Quando foi fundado em 1872 na cidade portuária de Le Havre, o primeiro clube de futebol da França, seus praticantes eram chamados pela comunidade local de palhaços de circo. O uso de trajes estranhos ao cotidiano de então, e o ato de saltar, correr atrás de uma bola, tropeçar e cair, como crianças, causava reações de espanto e gozação (MERCIER, 1966: 10). A assimilação e aceitação deste novo esporte, como tantos outros naquele momento, requer adaptações no plano da rígida moral provinciana. Nas cidades onde a modernidade urbana já estava instalada tal aceitação foi muito mais rápida. Como também era mais rápida a assimilação de um amplo leque de novas técnicas e práticas sócio-culturais.

A conexão com o mundo exterior, sobretudo através da vida portuária, demonstrou-se fundamental. O caso gaúcho é exemplar: a cidade de Rio Grande era dotada do mais importante porto meridional de então, chegando a ter um movimento comercial quatro vezes maior que o de Porto Alegre em 1861, no auge do Ciclo do Charque (SINGER, 1974). Em 1900, quando surge o Sport Club Rio Grande (o mais antigo clube de futebol brasileiro ainda em funcionamento), o porto local ainda movimenta o dobro de seu congênere porto-alegrense. A capital gaúcha somente ultrapassará seu rival no comércio exterior em 1908, aproximadamente na mesma época em que desponta como pólo maior do futebol gaúcho. Existem portanto várias correlações entre a evolução do futebol e as transformações territoriais.

Certamente, há outros indicadores a considerar, como a evolução dos equipamentos territoriais (estádios) e do público espectador, para melhor dimensionar o ritmo de consolidação do futebol em cada cidade. Considerando os limites da já comentada literatura existente, este trabalho tem o mérito de reunir e confrontar elementos oriundos de realidades diferentes, dentro de um arquipélago Brasil na virada do século.

Pretendemos ainda avançar em muitos outros aspectos, e restam muito mais dúvidas que certezas neste campo. O que não duvidamos é da viabilidade e necessidade dos geógrafos brasileiros darem finalmente sua contribuição essencial e peculiar ao entendimento de uma realidade rutilante.



Notas
1 . Pesquisa sendo desenvolvida no âmbito do doutoramento em Geografia Humana na Universidade de São Paulo, sob orientação da Prof. Dra. Odette Carvalho de Lima Seabra.
2 . Consta porém que em 1898, o Mackenzie College era formado majoritariamente por brasileiros, quebrando a tradição de exclusividade de praticantes de origem britânica em São Paulo (ALLISON, 1978: 219)


Bibliografia



Lecturas: Educación Física y Deportes.
Año 3, Nº 10. Buenos Aires. Mayo 1998
http://www.efdeportes.com