O ESTADIO DO PACAEMBU. Plínio José Labriola de C. Negreiros.     
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Parte da delegação argentina a caminho da inauguracção do Pacaembu
Fonte: Revista 'El Grafico', 3 de maio de 1940

Sos, Crotto, Becerra y Duraρona
Sos, Crotto, Becerra y Durañona
Margarita Tisserandet y Susana Mitchell
Margarita Tisserandet y Susana Mitchell

Após o longo desfile, quando todos os esportistas estavam dentro do campo, simetricamente acomodados, de frente para a tribuna de honra, lotada de autoridades, o prefeito de São Paulo, Prestes Maia, pronunciou o seu discurso:

"(...) — Fundador e executor do Estado Novo no Brasil, definiu-o, certa vez, em presença da nossa gloriosa Marinha de Guerra, como o instrumento das verdadeiras aspirações e necessidades nacionais.
Ora, é sob a inspiração desse conceito que trabalhamos em São Paulo. E foi, precisamente, para que vossa excelência pudesse testemunhar, com os próprios olhos, esse esforço que São Paulo, pela voz do seu Interventor, pediu a vossa excelência se dignasse paraninfar esta festa inaugural.
A nossa praça de esportes é, senhor Presidente, a afirmação de um programa construtivo. Tendo-o recebido em início, pusemos na sua ampliação e na sua conclusão o nosso melhor empenho. E, assim, como restituímos as administrações passadas a honra de sua iniciativa, reivindicamos, para a presente, a gloria de sua execução, na grandiosa escala e moldura, que hoje se descortina.
O exemplo de vossa excelência, aliás, nos ensinou a não reivindicar para nós senão a satisfação do dever cumprido. Este Estádio, que se impõe pela grandeza e pela sobriedade, é um monumento oferecido à administração de vossa excelência, que erigiu a educação moral e física da sociedade em princípio constitucional.
Nesta praça a juventude se adestrará na prática de todos os esportes necessários e úteis. Não lhe demos majestade para que ela venha a servir somente de palco a exibições profissionais, pessoais ou decorativas. Mas demos-lhe majestade, para que aí se valorize o elemento humano, de maneira a que todo o cidadão, imitando o Hércules da lenda, se faça capaz de carregar o Brasil nos ombros. Demos-lhe majestade, sim, para que se torne centro de reunião de todos os brasileiros e cenário das mais grandiosas manifestações coletivas.
Aproveitando a oportunidade para agradecer ao exmo. Sr. Interventor o imenso apoio e estímulo que permitiu realizar essa obra, peço a vossa excelência, senhor Presidente, que declare inaugurado o Estádio Municipal de S. Paulo, que, justamente por ser de São Paulo, é de todo o Brasil."
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Dessa fala de Prestes Maia, uma série de questões emergem; ainda, assim, só duas serão destacadas: o problema quanto ao uso do Estádio Municipal e as intrincadas relações entre o estado de São Paulo e o governo federal. No primeiro ponto, o prefeito de São Paulo, "construtor do Pacaembu", não gostaria de ver a sua obra, de forma prioritária, sendo utilizada apenas para as grandes disputas do esporte mais popular da cidade: o futebol. Aliás, a questão apresentava-se de maneira mais específica: a restrição era contra o futebol profissional, muito mal visto pela maior parte dos teóricos da Educação Física. Mesmo passados sete anos da oficialização do futebol profissional no Brasil, este esporte continuava a ser visto como um instrumento de deseducação moral e física. Ou seja, num momento em que era discurso corrente associar as atividades físicas e esportivas com o "melhoramento da raça", o futebol era colocado à parte. As razões eram inúmeras, mas vale ressaltar uma: não havia qualquer possibilidade em conciliar a educação moral, cívica e física com praticar esporte visando ganhos materiais. O esporte saudável deveria ser, necessariamente, amador.

O estádio deveria, ainda segundo Prestes Maia, servir para que uma ampla parcela da população de São Paulo pudesse servir-se dele no seu aprimoramento físico, sempre relacionado aos outros aspectos enfatizados. E mais: o estádio deveria ser o espaço das grandes manifestações de massa, como se fosse um templo preparado para esse fim.

Por outro lado, o prefeito enfatiza como São Paulo é uma referência para o Brasil. Desde 1930, com a ruptura político-institucional que retira parcelas de poder das elites paulistas, principalmente as agrárias, São Paulo buscou uma reacomodação junto ao poder federal. Se essa busca das classes dominantes paulistas gerou a guerra civil de 1932, no ano seguinte, as divergências pareciam ter encontrado o caminho da conciliação. Esta, teve como ponto alto a escolha de Armando de Sales Oliveira para a interventoria em São Paulo. Porém, essa questão é muito mais complexa, conforme demostra a pesquisa de Mônica Pimenta Velloso acerca das relações entre o regionalismo e o avanços nas concepções que apontavam a necessidade de construção da nação no Brasil.18 Nesse trabalho é discutido como a tradição regionalista no pensamento brasileiro vai se deparar, nos anos 20, com um debate no meio intelectual, que apontava o necessidade de construção nacional a partir dessa mesma tradicão regionalista. A análise de Mônica P. Velloso vai além nessa pesquisa: como surgirá em São Paulo um grupo de pensadores, muito ligados à arte — o vertente do modernismo chamada verde-amarela —, preocupados em mostrar que o caminho da construção da nação no Brasil, passava por São Paulo. Ou seja, se a direção política do país não passava mais apenas por São Paulo, em termos de construção da nacionalidade São Paulo seria o ponto de referência, já que o verdadeiro espírito nacional, segundo esses pensadores, estava estritamente ligado aos bandeirantes, capazes de desbravar.

Enfim, não cabia a Prestes Maia, qualquer confronto com Getúlio Vargas, ainda mais num naquele momento em que o regime parecia estar vivendo o seu momento de maior estabilidade e aceitação. Cabia, sim, mostrar com São Paulo, mais do que qualquer outra região do país, contribuía de maneira decisiva para colocar o Brasil nos rumos do progresso acelerado. Depois do discurso do prefeito paulistano, enquanto continuação festa do Pacaembu, viria o discurso — de improviso, segundo a reportagem do Estado — do presidente Vargas:

"Ao declarar inaugurado este Estádio, sob impressão das entusiásticas e vibrantes aclamações com que fui recebido, não posso deixar de dirigir-vos algumas palavras de vivo e sincero louvor.
Este monumento consagrado à cultura física da mocidade, em pleno coração da capital paulista, é motivo de justo orgulho para todos os brasileiros e autoriza aplaudir merecidamente a administração que o construiu.
As linha sóbrias e belas da sua imponente massa de cimento e ferro, não valem, apenas, como expressão arquitetônica, valem como uma afirmação da nossa capacidade e do esforço criador do novo regime na execução do seu programa de realizações.
É ainda, e sobretudo, este monumental campo de jogos desportivos uma obra de sadio patriotismo, pela sua finalidade de cultura física e educação cívica.
Agora mesmo assistimos ao desfile de dez mil atletas, em cujas evoluções, havia a precisão e a disciplina, conjugadas no simbolismo das cores nacionais. Diante dessa demonstração da mocidade forte e vibrante, índice eugênico da raça, — mocidade em que confio e que me faz orgulhoso de ser brasileiro — quero dizer-vos:
Povo de S. Paulo!
Compreendestes perfeitamente que o Estádio do Pacaembu é obra vossa e para ela contribuístes com o vosso esforço e a vossa solidariedade. E compreendestes ainda que este monumento é como um marco da grandeza de São Paulo a serviço do Brasil.
Declaro, assim, inaugurado o Estádio do Pacaembu."
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Vargas apenas reafirmou, com seu discurso, uma concepção recorrente na época acerca do papel das atividades físicas e da necessidade de amplos espaços para manifestações de caráter cívico-político. Como, ao seu modo, apresentar o papel de São Paulo nesse novo momento da história do país. E as cerimônias chegavam ao seu final, ainda com a participação do presidente, em outros momentos muito simbólicos:

"Anoitecia quando deram entrada no Estádio os esportistas da Polícia Especial que trouxeram do Rio, numa corrida de revezamento, a Bandeira Brasileira oferecida pelo Fluminense F. C. — primeiro estádio construído no Brasil — para ser hasteada no maior e mais moderno Estádio da América do Sul.
(...) Finalizando esse cerimonial, os srs. Getulio Vargas, Presidente da República e Adhemar de Barros, Interventor Federal, desceram ao campo, fazendo a entrega dos distintivos da mocidade aos melhores atletas de cada classe.
Pouco antes tinham os atletas brasileiros prestado o juramento.
(...) Era, então, noite fechada."20

Terminava a cerimônia e começaria, no dia seguinte, as disputas esportivas, ainda como parte da longa programação dos festejos de inauguração do Estádio do Pacaembu. No campo de futebol do estádio, até a pouco utilizada para os atletas que haviam desfilado, foi palco de duas partidas de futebol: Palestra Itália — vice-campeão do campeonato de São Paulo de 1940 — contra o Coritiba F. C., este, campeão do Paraná; na partida seguinte, o Corinthians Paulista, campeão de 1940, jogaria contra o campeão mineiro, o Clube Atlético Mineiro. Essas partidas apenas tinham a função de complemento para a festa realizada. Porém, o Estádio do Pacaembu, efetivamente, vai ser referência por causa do futebol. Ao mesmo tempo, para esse esporte, o novo estádio representou um importante marco. O futebol, já um esporte muito popular, crescerá em prestígio e em atenção dos torcedores. O futebol em São Paulo passou a viver um momento muito especial da sua trajetória. E isso graças não apenas ao novo estádio, mas também pelos reflexos da Copa de 38 e, um pouco mais tarde, pela chegada a São Paulo do jogador carioca Leônidas da Silva, considerado o grande jogador do selecionado brasileiro de futebol na Copa disputada na França e o melhor atleta desse esporte naquele momento. Para o futebol, sem dúvida, o surgimento do Estádio do Pacaembu significou um importante divisor de águas. É possível falar do futebol em São Paulo antes do Pacaembu e com ele.

Porém, apesar do futebol ter encontrado no Estádio do Pacaembu um espaço para a sua expansão, ele foi, ao menos no período denominado Estado Novo, muito utilizado para as manifestações políticas organizadas pelo governo. Muito semelhante do que aconteceu no Estádio de São Januário do Vasco da Gama do Rio de Janeiro — maior estádio do país até o aparecimento do Pacaembu —, eram as comemorações de 1º de maio, transformado pelo governo em "Dia do Trabalho", substituindo o "Dia do Trabalhador". Assim, o Estádio do Pacaembu, construído também com essa finalidade tornava-se palco de festas cívicas. Sobre essa questão, Claudia Schemes, que em pesquisa recente, analisa essas manifestações, tanto no Brasil de Vargas, quanto na Argentina de Perón, afirma:

"Quando analisamos as festas cívicas no varguismo e peronismo, também percebemos a tentativa de se produzir, através delas, uma imagem de alegria, unidade e harmonia.
Nos festejos, a imagem da sociedade unida, fraterna, harmônica aparecia com muita ênfase."
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Ou seja, essas foram as caraterísticas marcantes da inauguração do Pacaembu, que passaria a ser palco de outras grandes festas cívicas, como a festa de 1º de maio. "No Brasil de Vargas (...) se enfatizava a originalidade do 1º de maio: as comemorações pacíficas e alegres desta data diferenciavam o Brasil do resto do mundo"22 , pois:

"O 1º de maio tem em todo o mundo um sentido de reivindicações conquistadas com luta e suor. No Brasil, entretanto, o 1º de maio é uma grande oportunidade, um grande dia de festa, de harmonia e de colaboração das classes trabalhadoras com o governo e com as outras classes (...)
(...) a sua festa de hoje tem outro sentido, um sentido de harmonia, de problemas resolvidos, de compreensão mútua (...)
(...) o 1º de maio no Brasil deixou, portanto, de ser uma data exclusivamente proletária, para ser uma comemoração de caráter nacional, onde o proletário, antes que o governo, se senti feliz em demonstrar que não há mais no Brasil nenhum clima para a luta de classes."
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Porém, durante o Estado Novo, o Estádio do Pacaembu não meramente palco das festas de 1º de maio, sem qualquer relação com o futebol. Ao contrário: nessas festas, uma importante partida entre os principais clubes da cidade era regra. E o público dessas comemorações era um misto de torcedores com trabalhadores ligados aos sindicatos controlado pelo Estado. Manifestações sindicais juntavam-se as dos torcedores:

"Pouco depois das 14 horas, a grande praça de esportes apresentava um aspecto impressionante, não apenas pela multidão que nela se comprimia, como pela movimentação da imensidade de bandeiras, bandeirolas e dísticos, agitados pela massa. As torcidas do 'Corinthians' e do 'São Paulo', no seu uniforme branco, destacavam-se sobre o fundo escuro da multidão. A feição eminentemente popular das festividades e das homenagens ao sr. Getulio Vargas era realçada pelo número, sem conta, de senhoras e crianças presentes, numa comunhão expressiva de sentimentos de apreço e simpatia pelo Chefe da Nação. A 'concha' do ginásio apresentava, também, um belo aspecto. Ornamentada em toda a sua extensão, abrigava, lateralmente, bandas de música do Exército, da Força Policial do Estado e de escoteiros.
De instante a instante, aviões civis faziam evoluções a baixa altitude, sobre o Estádio, atraindo a atenção popular.
Nos intervalos impostos pelo programa das festividades, os elementos do 'Corinthians' e do 'São Paulo' fizeram uma série de exibições de caráter patriótico, sendo esses belos números de movimentação coletiva longamente ovacionados pela multidão.
Nas arquibancadas reservadas aos sindicatos, os trabalhadores de S. Paulo, irmanados com os seus colegas do interior, entregavam-se a manifestações de regozijo pelas festividades do 'Dia do Trabalho'. Os operários e operárias de Volta Redonda, simbolizando um novo sentido da vida nacional, eram também alvo de reiteradas aclamações."
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E não pode restar dúvida que a união entre o estádio do Pacaembu e a vinda de Leônidas, trouxe uma nova era para o futebol em São Paulo. O estádio pensado pelo poder público e pelos teóricos da educação física como um espaço para a formação física, moral e cívica da juventude, tornava-se, com uma rapidez assustadora, palco de grandes partidas de futebol, com platéias a cada dia maiores e mais apaixonadas. O jogo de estréia de Leônidas demonstrava isso. Projetado e construído para ser um espaço dedicado ao "fortalecimento da raça" — como uma grande praça de esportes para que o gosto pelo futebol também fosse o gosto pelo atletismo, pela ginástica rítmica e por outros esportes —, o Pacaembu passou para o dia-a-dia dos apaixonados pelo futebol como o lugar onde verdadeiras multidões poderiam acompanhar uma emocionante partida de futebol.

Ao mesmo tempo, o uso político que o regime autoritário fez do estádio passou a ser deixado num segundo plano. Enquanto na memória dos torcedores as imagens da estréia de Leonidas continuam vivas, pouco se lembra das manifestações cívicas.

Assim, é possível considerar a idéia e posterior construção do estádio municipal do Pacaembu como síntese de uma época, que tinha muita preocupação com a questão do corpo do brasileiro. Mas, por outro lado, a construção estádio se deu no seio de um regime autoritário, que na busca incessante pela legitimação, buscou inúmeras formas. Entre essas formas, a construção de grandes obras arquitetônicas, com um forte sentido simbólico. O Estádio surgiu nesse contexto, mas terminou por ser mais um templo do futebol, alimentado-o ainda mais.



Notas
1 . Palestra X Paulistano — a assistência, O Estado de São Paulo, 17/11/1919, p. 4. APUD: Nicolau SEVCENKO, Orfeu Extático na Metrópole, São Paulo, Cia. das Letras, 1992, pp. 58-59.
2 . Nicolau SEVCENKO, op. cit., p. 59.
3 . Catálogo-Programa do festejos inaugurais do Estádio Municipal de São Paulo, São Paulo, 27/04/1940, s.p.
4 . Circe Maria F. BITTENCOURT, Pátria, civilização e trabalho, São Paulo, Loyola, 1990, p. 136.
5 . Noticiário - Estádio Municipal - Lançamento da pedra fundamental, Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, nº XXIX, novembro/1936, p. 207.
6 . idem, ibidem, p. 208.
7 . idem, ibidem, 208.
8 . Catálogo-Programa do festejos inaugurais do Estádio Municipal de São Paulo, São Paulo, 27/04/1940, s.p.
9 . Visita ao Estádio Municipal do Pacaembú, O Estado de S. Paulo, 24/03/1940, p. 13.
10 . Instruções da diretoria de esportes, O Estado de São Paulo, 09/04/1940, p. 6.
11 . As grandes festas inaugurais do Estádio Paulista, O Estado de São Paulo, 27/04/1940, 10.
12 . idem, ibidem, 10.
13 . idem, ibidem, 10.
14 . Inaugurado o Estádio Municipal do Pacaembu, O Estado de São Paulo, 28/04/1940, p.7.
15 . Idem, ibidem, p.7.
16 . Alcir LENHARO, Nazismo - "O triunfo da vontade". 2ª edição. São Paulo, Ática, 1990, pp. 39-41.
17 . Inaugurado o Estádio Municipal do Pacaembu, O Estado de São Paulo, 28/04/1940, p.8.
18 . Mônica Pimenta VELLOSO, A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e regionalismo paulista. 2ª edição. Rio de Janeiro, FGV/CPDOC, 1990.
19 . Inaugurado o Estádio Municipal do Pacaembu, O Estado de São Paulo, 28/04/1940, p.8.
20 . Idem, ibidem, p.8.
21 . Claudia SCHEMES, Festas cívicas e esportivas no populismo: Um estudo comparativo dos governos Vargas (1937-1945) e Perón (1946-1955). São Paulo, FFLCH - USP -Departamento de História, 1995. Dissertação de Mestrado, p. 33.
22 . Claudia SCHEMES, op. cit., p. 44.
23 . O Estado de São Paulo, 01/05/1940. APUD: Claudia SCHEMES, op. cit., p. 44.
24 . Concentração Trabalhista no Estádio Municipal do Pacaembu, O Estado de São Paulo, 03/05/1940, p.1.



Lecturas: Educación Física y Deportes.
Año 3, Nº 10. Buenos Aires. Mayo 1998
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