AS CONTRADIÇÕES DO FUTEBOL BRASILEIRO - Jocimar Daolio     
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A partir do referencial teórico que entende o futebol como expressão da sociedade brasileira, é possível compreender algumas contradições presentes nesse esporte. Copa do Mundo 1970Contradições essas que numa análise precipitada e descontextualizada refletiriam a pobreza ou a falência do futebol brasileiro, levando a propostas extremas de se acabar com o futebol ou substituí-lo por modalidades tidas como mais civilizadas. De fato, algumas pessoas referem-se ao futebol como um esporte arcaico, primitivo, opondo-o a modalidades mais modernas. Ora, o futebol brasileiro, como qualquer outro fenômeno nacional é e sempre será aquilo que a sociedade fizer dele, aquilo que os atores envolvidos - torcedores, dirigentes, imprensa etc. - forem constantemente atualizando nele e com ele. O futebol não está em oposição à sociedade brasileira, mas junto dela, expressando-a e renovando-a, talvez mostrando algumas facetas que nós temos dificuldade de enfrentar e gostaríamos de esconder.

O Brasil é o único país participante de todas as Copas do Mundo e o único tetra-campeão. Seu futebol é respeitado e temido por outras seleções. Somos o principal exportador de jogadores do mundo, jogadores que têm feito fama em vários países. Temos os maiores estádios de futebol do mundo. Entretanto, esses grandiosos números contrastam com campeonatos internos extremamente desorganizados, com equipes chegando a jogar até três vezes na mesma semana. O salário médio dos jogadores brasileiros é baixo, contrastando vultuosas somas de jogadores de grandes equipes com salários ridículos da grande maioria de profissionais espalhados pelo país. A grande maioria das equipes brasileiras está endividada, atrasando constantemente salários dos jogadores. Muitas equipes não conseguem manter o seu quadro de profissionais durante o ano, demitindo todos os jogadores e o técnico após o final de cada campeonato. Muitos políticos utilizam-se do futebol para amealhar votos, investindo em alguns times em períodos eleitorais e deixando-o à míngua após as eleições.

A evasão de rendas tornou-se prática comum em quase todos os estádios, provocando risos e deboches toda vez que é anunciado nos jogos o público pagante, sempre menor do que nossos olhos podem ver. Há os casos não raros de subornos de árbitros, bandeirinhas e até jogadores para "fabricarem" resultados.

A seleção brasileira é alvo de grandes investimentos, na tentativa de conquista do inédito título de pentacampeão do mundo de futebol. Os métodos científicos de treinamento físico, técnico e tático, de apoio psicológico aos atletas, de cuidados médicos e dentários, de acompanhamento nutricional aos atletas, são contraditórios com um técnico extremamente supersticioso, que se considera predestinado ao sucesso e ironiza às contribuições científicas ao esporte. O mais interessante é que o componente supersticioso no futebol é reforçado pela própria imprensa e praticado constantemente pelos jogadores e torcedores. Nesse sentido um técnico como Zagalo combina mais com a torcida brasileira do que Parreira, técnico campeão do mundo em 1994 e adepto de métodos científicos no treinamento. Aliás, é importante lembrar que Cláudio Coutinho, técnico da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1978, na Argentina, foi incompreendido por tentar dar cientificidade ao futebol brasileiro, aliando a técnica dos nossos atletas com contribuições da fisiologia e de pesquisas na área do esporte.

Talvez a principal característica do futebol brasileiro seja a rica mistura entre o jogo coletivo e o individualismo de nossos atletas. O futebol, como esporte coletivo, exige uma tática grupal para uma equipe obter vantagem sobre outra. Para isso é necessário que um time mantenha a posse da bola e a faça circular, procurando envolver o adversário, posicionando-se com vantagens para conseguir atingir o alvo. Mas isso não garante que a equipe marque gols e vença a partida. De fato, em muitos jogos ocorre um claro domínio por parte de uma das equipes sem que isso resulte em vantagem em termos de pontos. Pode mesmo ocorrer que uma equipe com menor tempo de posse de bola vença o jogo. Isso porque, além de uma dinâmica tática da equipe, é necessário o individualismo dos jogadores para vencer a defesa adversária. Ora, se as duas equipes jogarem rigidamente dentro de padrões táticos exaustivamente treinados, os jogos terminariam sempre empatados. Portanto é necessário que um ou mais jogadores, em algum momento do jogo, se liberem do esquema tático da equipe e ousem uma jogada individual. Essa ousadia pode resultar em fracasso e até na derrota, mas também pode dar certo e resultar num lance de grande beleza plástica e até em gol e vitória para a própria equipe.

Será que o destaque do futebol brasileiro não se deve à feliz combinação entre tática coletiva e tática individual? Ou, dito de outra forma, numa relação entre o eu e o grupo, numa coragem individual para se libertar das imposições do jogo coletivo? É óbvio que isso pode levar ao modelo do "jogador fominha", aquele que só pensa em si e não se preocupa com o sucesso da equipe. Seria uma distorção, ou exacerbação da necessidade de conciliação entre jogo individual e coletivo. Se isso for verdadeiro, poderíamos supor que essa característica do futebol brasileiro, contrastando virtuosismo técnico individual com anarquia tática coletiva, deve-se à própria forma do homem brasileiro se dispor no mundo, conciliando e tirando vantagem da expressão individual sobre um plano coletivo. Poderemos aqui lembrar do jeito malandro tipicamente brasileiro. Como uma finta no futebol, o malandro é aquele que tem que dar um jeito para conseguir dinheiro, para levar alguma vantagem, para sobreviver apesar das adversidades, para conseguir, enfim, marcar gols. É óbvio que ele necessita do grupo, mas ele não anula sua expressão individual perante a do coletivo. Se isso pode não ser sempre vantajoso, tanto no futebol como na vida em sociedade, acaba dando a característica do próprio estilo de jogo brasileiro: ousado, individualista, pouco afeto às táticas coletivas e, por vezes, fascinante, uma vez que gera jogadas e jogadores interessantes.

Já que estamos falando de aparentes contradições do futebol brasileiro, não podemos deixar de falar dos ídolos que o futebol gera. Um esporte com essa popularidade, ocupando um grande espaço na mídia, gera cotidianamente novos heróis, que serão endeusados pela população, invejados, imitados pelas crianças e servirão de modelo para comportamentos da população. Pelé foi e ainda é um ídolo gerado pelo futebol, como o foram também Zico, Roberto Dinamite, Rivelino, Sócrates, Toninho Cerezo...e, hoje, Ronaldinho. Mas também são ídolos gerados pelo futebol Edmundo e Romário, jogadores que, apesar de sua incontestável capacidade técnica, são personalidades polêmicas, envolvendo-se em brigas, dentro e fora do campo, discussões com jornalistas, acidentes e atitudes, no mínimo polêmicas. Edmundo é conhecido como "animal", apelido que se deve menos à sua categoria no futebol e mais por suas ações intempestivas. É interessante lembrar que a carreira de Edmundo, sempre marcada por comportamentos polêmicos, nunca impediu sua transferência para outras equipes de futebol. Pelo contrário, sempre foi aclamado e idolatrado pelos torcedores, fato que sugere uma identificação com o craque.

Há uma contradição apenas aparente no fato do futebol brasileiro atual gerar ídolos como Ronaldinho, por um lado, e Edmundo, por outro. Representam os dois lados da mesma moeda dos desejos humanos: ser ao mesmo tempo, calmo e rebelde, manso e feroz, bom e mau, humano e animal. Isso é possível no futebol, que, como fenômeno cultural brasileiro, é construído e atualizado justamente para dar vazão a essas demandas emocionais da população brasileira. É nesse sentido que falamos que o futebol é expressão da sociedade e que cada sociedade tem o futebol como um espelho.

Um outro tema do futebol digno de análise é sua dificuldade em aceitar mudanças de regras, gerando também o que estamos chamando de falsa contradição. Porque, ao mesmo tempo que algumas alterações mostram-se necessárias para o melhor desenvolvimento do jogo, elas não acontecem de fato, havendo resistências da torcida, de dirigentes, dos atletas, técnicos e jornalistas.

Alguém se lembra do basquetebol sem cesta de três pontos? Ou do voleibol e tênis sem "tie-braker"? Estas foram algumas regras novas que fizeram com que a dinâmica de jogo desses esportes fosse alterada para melhor. Enquanto isso, o velho esporte bretão continua basicamente com as mesmas regras de quando foi criado há mais de cem anos. Durante a realização do torneio Rio-São Paulo de 1997 houve uma experiência de se limitar o número de faltas de cada equipe, havendo, a partir daí, a cobrança de tiro livre sem barreira. Já houve propostas de aumentar o tamanho do gol, de utilizar dois árbitros, de modificar para mais ou para menos o tempo de jogo, além de outras soluções criativas.

Se aceitarmos, mais uma vez, que o futebol é depositário de características culturais da sociedade brasileira, ainda que de forma inconsciente, podemos sugerir que uma mudança de regras visando à modernidade no futebol, faria com que ele perdesse o caráter incerto, casual, irreverente, improvável. Será que não é justamente isso que a sociedade deseja e projeta no futebol?.

Um time tecnicamente inferior, com um pouco de sorte e se defendendo bem, pode ganhar de uma equipe superiora, fato que dificilmente acontece no voleibol, por exemplo, onde uma equipe melhor preparada impõe sua superioridade técnica. Um jogador sem virtuosismo consegue superar sua falta de técnica por meio de esforço físico e escolhendo uma posição correta para jogar. No futebol, as regras permitem aos jogadores a posse de bola por tempo indeterminado, favorecendo a habilidade do jogador e permitindo que ele seja irreverente com a equipe adversária, desmoralizando-a. A torcida sabe disso e começa a gritar "olé". Essa característica de posse de bola permite também, diferentemente de outros esportes, a "cera". Ou seja, o chamado anti-jogo de outras modalidades, no futebol é incorporado pelas regras, desde que ocorra com a bola em jogo.

O papel do árbitro no futebol também apresenta características interessantes. Diferentemente de outras modalidades, que incluem dois ou mais árbitros e mesa de anotação com responsabilidades de marcação do tempo de jogo e de faltas, no futebol o árbitro é o senhor do jogo, com plenos poderes para marcar faltas, impedimentos, dando ou não desconto no tempo de jogo, decidir rapidamente se houve vantagem no lance por parte do jogador que sofreu falta, podendo até desconsiderar as marcações dos seus auxiliares. Esse poder absoluto do árbitro no futebol contrasta com a dificuldade que ele tem para marcar tudo corretamente e, frequentemente, comete equívocos. Equívocos que revoltam os jogadores e a torcida, levam a brigas, expulsões e agressões, mas que, ao mesmo tempo, tornam o árbitro humano e falível. Afinal de contas, ele poderá também errar favorecendo a nossa equipe, e nesse momento será perdoado pelos erros anteriores.

A discussão que temos feito ao longo desse texto procura compreender o futebol como impregnado na sociedade e cultura brasileiras, expressando características e desejos do homem nacional, ainda que implicitamente. As tradicionais regras do futebol, que os brasileiros e a FIFA - aliás, dirigida há mais de vinte anos por um brasileiro - relutam em modificar parecem refletir o jeito brasileiro de jogar e viver, permitindo a ousadia, a irreverência, a malandragem, o caráter incerto das ações, a superstição, a imprevisibilidade, a voluntariedade e a ambigüidade.

É nesse sentido que falamos das contradições do futebol brasileiro, apenas aparentes se procurarmos compreender a lógica cultural desse importante fenômeno nacional. Não é o Brasil o país dos contrastes e das ambigüidades? Um país que, no dizer de Roberto DaMatta, mesclou todas as raças e erigiu a mulata à condição de padrão nacional de beleza. Um país cujo povo consegue conciliar criativamente a superstição com a religiosidade e a ciência. Um país que, entre o não e o sim, entre o pode e o não pode, descobriu o jeitinho brasileiro como forma de vida. Um país que encontrou no futebol sua melhor tradução, fazendo dele uma de suas maiores expressões.


Indicações de Leituras
  • DAMATTA, R. et al. (1982) Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke.
  • DAMATTA, R. (1997) O que faz o brasil, Brasil?. 8ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
  • DAOLIO, J. (1997) Cultura: educação física e futebol. Campinas: Editora da UNICAMP.
  • DOSSÊ FUTEBOL (col.). (1994) Revista USP. São Paulo: Coordenadoria de Comunicação Social, n.22, junho-agosto.
  • FILHO, M. (1964) O negro no futebol brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.



Lecturas: Educación Física y Deportes.
Año 3, Nº 10. Buenos Aires. Mayo 1998
http://www.efdeportes.com