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Imagens da educação no corpo. A ginástica e a estética da retidão
Carmen Lúcia Soares

http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 5 - N° 26 - Octubre de 2000

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    A Ginástica que afirma converte-se em um modelo de educação veiculado pelo poder, uma educação capaz de preservar as forças físicas e ensinar o indivíduo a adequação de seu uso. Esta compreensão da Ginástica permite inscrevê-la como constitutiva da mentalidade científica, pragmática e prática que se consolida ao longo do século XIX.

    Com Amoros cria-se uma paixão pela cultura do corpo, e seu método, embora possuindo fortes vínculos militares, transforma-se num verdadeiro modelo de aprendizagem coletiva do exercício.17 Com seus estudos fundamentados na mecânica, anatomia, fisiologia, e também na filosofia e no canto, surge um tipo de sistematização e aprofundamento que irá se generalizar na segunda metade do século XIX, sobretudo com os estudos de Marey e Demeny, e aquele que ensina Ginástica passa a ter uma competência afirmada.

    A segunda metade do século XIX é um período no qual a Ginástica, embora ainda pautada por questões militares, estará cada vez mais próxima de cientistas, médicos higienistas e laboratórios de pesquisa. Seu caráter higiênico alarga-se e imprime-se, então, uma outra estética, a estética da retidão. Multiplicam-se neste momento, pesquisas sobre o movimento, sobre sua utilização na vida cotidiana e, particularmente, no mundo do trabalho.

    A imagem, como resultado técnico da utilização de diferentes aparelhos, torna-se parte integrante das explicações e constitutiva dos discursos sobre o movimento humano, este novo objeto de estudo da ciência experimental que potencializa o rigoroso esquadrinhamento do corpo realizado no século XIX.

    Como um dos personagens centrais dos estudos que tematizam a imagem como forma de conhecimento, vamos encontrar E. J. Marey que, com seu auxiliar G. Demeny, realizou os estudos mais exatos e rigorosos sobre a locomoção humana, o vôo dos pássaros, o galope do cavalo, a água que corre. Marey e Demeny criaram os processos precisos do método gráfico, cronográfico e cinematográfico para a compreensão do movimento humano a partir de estudos do movimento de aves e animais.

    Apoiados em novas e importantes sínteses teóricas, como a descoberta das leis da termodinâmica, que permitiu a compreensão das relações entre calor e energia, consolidaram para o estudo dos gestos humanos uma racionalidade dada a partir da máquina, o que possibilitou um novo impulso às questões relativas à Educação Física.

    Demeny, como colaborador de Marey, vai ampliar as associações possíveis entre os estudos realizados por este pesquisador sobre os gestos humanos no mundo do trabalho e a Ginástica.

    Higienista convicto, Demeny acreditava que todos os problemas ligados aos altos índices de mortalidade, o avanço das doenças degenerativas, a diminuição da estatura, esterilidade, demência e loucura, eram problemas causados pela ausência de uma boa educação.18 Para ele, o indivíduo saudável e ajustado seria o resultado de uma boa educação, somada a uma educação física e a uma boa higiene. O papel social da Educação Física seria o de ensinar o indivíduo a evitar o desperdício de forças nas atividades e, assim, ela seria benéfica tanto para formar atletas como para melhorar a condição dos fracos.

    Talvez um olhar menos generalizante, como aquele indicado por Demeny, possa trazer uma compreensão menos técnica e pragmática sobre homens e mulheres e, assim, permitir um mergulho nos modos de aprender a partir da necessidade primeira da sobrevivência.

    O indivíduo aprende a utilizar suas forças no jogo cotidiano de manter-se vivo, independente das técnicas corporais, meticulosamente elaboradas nos laboratórios de pesquisa para “ensinar” a ele o uso correto das mesmas.

    Recorro aqui ao universo literário e suas emanações do vivido e permito-me ouvir outras vozes deste recorte de tempo. O romance oitocentista, sobretudo o romance realista, nos conduz a lugares e a sentimentos, a modos de viver, por vezes obscurecidos pela névoa opaca tecida nas teias do poder.

    Quando E. Zola19 elege como personagens centrais de seu romance Germinal os mineiros e, em sua narrativa, conduz o leitor ao universo escuro das entranhas da terra - a mina, permite um tipo de compreensão do aprendizado humano que vai abarcar o universo sensível, contrapondo projetos estéticos e políticos. Entrar na mina é, para Zola, mergulhar num universo de cegueira ardente, numa escura noite onde o corpo forja o espaço e dobra-se, contorce articulações e membros, fazendo-se alavanca para sustentar a terra.

    Os mineiros ensinavam uns aos outros o que aprendiam nesta escuridão. Indicavam o modo mais econômico de suportar o dia adequando suas forças. Passavam sua experiência corporal gestual, conforme pode-se constatar nesta passagem de Germinal, onde uma mulher mineira mais experiente ensina a um homem ali recém chegado o melhor modo de trabalhar:

O corpo devia estar inclinado, com os braços bem retesados, de modo que empurrasse com todas as forças, com membros e com os quadris. Ele acompanhou-a numa viagem vendo-a subir, com os quadris caídos e os punhos tão embaixo que parecia trotar a quatro pés... Ela suava, arquejava, estourava por todas as juntas; mas sem uma queixa, com a indiferença do hábito, como se a miséria comum consistisse, para todos, em viverem assim dobrados. 20

    A determinação do espaço e das ações ali exigidas pelo corpo e seus gestos era de tal dimensão que mesmo fora da mina os mineiros “acocoravam-se, com os cotovelos nos flancos e as nádegas apoiadas sobre os calcanhares [...] sem sentirem necessidade de um calhau ou de uma tábua para se sentarem”.21

    Havia ali, no movimento dos dias e das noites uma autoeducação corporal e a internalização de economia de forças do interior de seus próprios corpos. Gestos medidos, gestos pensados, gestos contidos. Não havia ali nenhuma explicação científica. O corpo aprendia, no silêncio, a gestualidade necessária e a adequada utilização das forças. Esta passagem de Germinal indica o aprendizado rápido de um homem recém chegado a mina que num tempo curto, “respirava sem lhe custar as poeiras do carvão, via claro às escuras, suava descansado, afeito à sensação de ter desde a manhã até a noite a roupa ensopada sobre o corpo. Aliás, não esbanjava desastradamente as forças; tinha-lhe vindo uma destreza de bom operário”.22

    O não esbanjamento das forças e sua distribuição adequada no tempo e no espaço são aprendizagens ditadas pelo lugar social ocupado. A destreza do bom operário de que nos fala Zola, fora conseguida pela necessidade de manter-se vivo. Uma gestualidade contida, medida, comedida vai constituindo os sujeitos que habitam os espaços escuros de construções, minas, fábricas. Seus corpos aprendem a gestualidade que lhes é permitido aprender. Assim, é possível afirmar que a arquitetura das habitações, dos locais de trabalho e de descanso exercem um controle na constituição do indivíduo e de sua gestualidade.

    Contudo, na segunda metade do século XIX, há ainda que se considerar o discurso sobre a saúde, sendo o estudo do movimento uma de suas formas discursivas. Os estudos sobre o movimento criaram um conjunto de regras e de explicações que permitiram diferentes formas de intervenção sobre o corpo e afirmaram uma estética da retidão.

    O movimento humano - e o modo correto de executá-lo no trabalho, na vida cotidiana ou em situações de exercitação dirigida, por exemplo nas ginásticas, jogos etc.- explicado pela ciência experimental, é um elemento que se agrega à constituição de formas de poder que incidem sobre o corpo e seus gestos, sendo estes plenamente compreendidos como um comportamento total do indivíduo. Estava dada, assim, a estética da retidão e todas as implicações políticas que sempre estão contidas em projetos estéticos.


Notas

  1. VOVELLE, M. Imagens e imaginário: fantasmas e certezas nas mentalidades desde a Idade Média até o século XX, p.22

  2. Ver a respeito ZUMTHOR, P. A letra e a voz: a literatura medieval; REVEL, J. Os usos da civilidade, texto no qual o autor oferece uma grande quantidade de referências sobre o processo de controle dos gestos.

  3. Todas as idéias aqui discutidas em torno da pintura, bem como a bibliografia sobre o tema foram objeto das aulas ministradas pelo prof. Dr. Milton José de ALMEIDA entre os anos de 1995 e 1997,junto ao Programa de Doutorado em Educação-UNICAMP.

  4. BAXANDALL,M. O olhar renascente: pintura e experiência social na Itália da Renascença, p.12.

  5. BAXANDALL, M. op. cit.,p. 48

  6. GÊNOVA, G. de. Apud BAXANDALL, M. op. cit. p.48

  7. CARCANO, Fra Michele de, apud BAXANDALL, M.op. cit. p.70.

  8. BAXANDALL, M. op. cit. p. 70. Consultar ainda o clássico Da pintura de ALBERTI, L. B.

  9. De cor puellarum, manual para moças, apud BAXANDALL, M. op. cit. p.70.

  10. Conforme LE GOFF, J. Pour un autre moyen âge, especialmente pp. 92-107.

  11. Desenvolvo mais amplamente esta questão no livro Imagens da educação no corpo: estudo a partir da ginástica francesa no século XIX, especialmente cap III e IV.

  12. ZUMTHOR, P. A letra e a voz: a literatura medieval, p. 243.

  13. REVEL, J. Os usos da civilidade. In ARIÉS, P. e DUBY, G. (org). História da vida privada. Da Renascença ao Século das Luzes.V. 3, p. 172.

  14. ERASMO DE ROTERDÃO. Civilidade pueril, p. 70.

  15. VIGARELLO, G. Le corps redressé, p. 9.

  16. Cf. AMOROS, F y O . Nouveau Manuel d’Éducation Physique, Gymnastique et Morale, 1838. Na p. 204 desta obra há a seguinte afirmação de Amoros: “Meu método e meus exercícios param onde a utilidade cessa e onde começa o funambulismo”.

  17. Até os quixotes do cientificismo do século XIX, Bouvard e Pécuchet, personagens de G. Flaubert, valem-se das prescrições amorosianas para efetuarem suas incursões no mundo do saber. Flaubert fez um estudo minucioso da obra amorosiana decrevendo-a em detalhes, com rigor e precisão, no cap. VIII de seu romance intitulado “Bouvard et Pécuchet”. Consultei a 2a. ed. da tradução brasileira editada pela Nova Fronteira e a edição francesa da Brodard et Taupin. Ver também I. CALVINO, Seis propostas para o próximo milênio, especialmente pp. 128-9.

  18. Ver especialmente DEMENY, G. Les bases scientifiques de l’éducation physique, p. 9.

  19. O romance Germinal foi concluído em fevereiro de 1885, cf. GUILLEMIN, H., Chronologie de Germinal.

  20. ZOLA, E. Germinal, pp. 33-35. Utilizo aqui a tradução brasileira da Ediouro [s. d.] e a edição francesa da Garnier-Flammarion,1968.

  21. ZOLA, E. op. cit. p. 38

  22. ZOLA, E. op. cit. p. 98.


Bibliografia

  • ALMEIDA, Milton José de. Cinema Arte da Memória. Campinas/SP: Autores Associados, 1999.150 p.

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  • AMOROS, Francisco y Odeaño. Nouveau Manuel d’Éducation Physique, Gymnastique et Morale. Paris: A la Librairie Encyclopédique de Roret, 1838. v. I.

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  • CALVINO, Ítalo. Seis Propostas para o Próximo Milênio. Lições Americanas. São Paulo:Companhia das Letras, 1990, 141 p.

  • DEMENY, Georges. Les bases scientifiques de l’Éducation Physique. 8a. edition. Paris: Librairie Félix Alcan, 1931. 335 p.

  • ___________. Mécanisme et éducation des mouvements. 5a. édition. Paris: Librairie Félix Alcan, 1924. 542 p.

  • FLAUBERT, Gustave. Bouvard e Pécuchet. 2a. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, 317 p.

  • ___________. Bouvard et Pécuchet. Paris: Brodard et Taupin, 1994, 285 p.

  • FRIZOT, Michel. (org.). Etiénne Jules Marey. Paris: Centre National de la Photographie, 1987. 60 p.

  • GUILLMIN, Henri. Chronologie In ZOLA, Émile. Germinal. Paris: Garnier-Flammarion, 1968.

  • LE GOFF, Jacques. Pour un autre Moyen Âge; temps, travail et culture en Occident: 18 essais. [s.l.]. Gallimard, 1994. 422 p.

  • MAREY, Étienne-Jules. Le mouvement. Marseille: Éditions Jacqueline Chambon, 1994. 339 p.

  • REVEL, Jacques. Os usos da civilidade. In ARIÉS, Philipe e DUBY, Georges (org). História da vida privada. Da Renascença ao século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. v. 3, pp.169-209.

  • SOARES, Carmen Lúcia. Imagens da educação no corpo; estudo a partir da Ginástica francesa no século XIX. Campinas: Autores Associados, 1998. 140 p.

  • VIGARELLO, Georges. Le corps redressé. Paris: Jean Pierre Delarge, 1978. 339 p.

  • VOVELLE, Michel. Imagens e imaginário: fantasmas e certezas nas mentalidades desde a Idade Média até o século XX. São Paulo: Ática, 1997. 407 p.

  • ZOLA, Émile. Germinal. [s.l.]: Ediouro, [s.d.]. 340 p.

  • _____. Émile. Germinal. Paris: Garnier-Flammarion, 1968, 502 p.

  • ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 324 p.


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