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Vivenciando e aprendendo uma cultura 

organizacional democrática com as histórias infantis

Vivenciando y aprendiendo una cultura organizacional democrática con las historias infantiles

 

*Pedagoga e Especialista em Gestão Educacional – UFSM

**Doutor em Educação e Professor

do Programa de Pós-Graduação – UFSM

***Doutoranda em Educação, UFSM

Prof. da Universidade de Cruz Alta – UNICRUZ

(Brasil)

Nilta de Fátima Hundertmarck Graciolli*

niltagr@yahoo.com.br

Celso Ilgo Henz*

cihenz@terra.com.br

Vaneza Cauduro Peranzoni*

vaneza.cauduro@terra.com.br

 

 

 

 

Resumo

          A presente pesquisa buscou investigar de que maneira as histórias infantis podem, ou não, contribuir na aprendizagem de uma cultura organizacional democrática e humanizadora no ambiente escolar. Construir um ambiente democrático e humanizador se constitui em um desafio para a educação, uma vez que as histórias infantis podem ser subsídios para a libertação, despertando nos educadores e educandos leitores a compreensão de que a sua participação é fundamental nas decisões e discussões, a fim de que contribuam para a construção de uma cultura organizacional democrática na escola. Assim, aponta-se as histórias infantis como recursos preciosos para proporcionar essas vivências democrático-humanizadoras. Observamos que os educandos que se consideravam "porcos espinhos", modificaram muitas atitudes, melhorando a (con)vivência e a participação. No decorrer do trabalho, as famílias, educadores, equipe diretiva começaram a participar, ajudando na confecção de recursos e na montagem de uma biblioteca. Isso sinaliza que as possibilidades para a construção de culturas democráticas e humanizadoras se ampliam quando a comunidade escolar se une.

          Unitermos: Histórias infantis. Cultura organizacional. Democracia.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Año 16 - Nº 157 - Junio de 2011. http://www.efdeportes.com/

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    O presente artigo é resultado de uma pesquisa que teve origem a partir das práticas pedagógicas vivenciadas ao longo da minha trajetória enquanto educadora nas séries iniciais. A opção pelas histórias infantis aconteceu porque acredito que a [re]significação do ato de ler, escrever, usar a palavra exige suporte, base teórica para fazer a relação texto-contexto e as histórias fazem parte do universo lúdico infantil, ajudam as crianças a resolver certos conflitos, elevando a auto-estima, envolvendo-as de maneira prazerosa e natural, suscitando a imaginação e a criatividade, aproximando educadores e educandos.

    Com o intuito de buscar maior fundamentação e aprofundamento teórico é que passei a investigar como e quando as histórias infantis podem contribuir, ou não, na construção de uma cultura organizacional democrática, por acreditar que as histórias infantis podem ser usadas como um recurso para, a partir delas, criar um ambiente sociocultural favorável à construção de novas relações: relações de escuta, de exercício do poder da palavra, da construção de dinâmicas que aproximem os alunos tanto dos educadores, como dos educandos entre si.

    Para isso, definimos1 a seguinte problematização para orientar a pesquisa: De que maneira as histórias infantis podem, ou não, contribuir na aprendizagem de uma cultura organizacional democrática no ambiente escolar? Apoiamos-nos ainda nas seguintes questões: Como as histórias infantis são trabalhadas com as crianças? Que histórias infantis podem contribuir para a construção de uma cultura democrática? Quais as contribuições que o trabalho com as histórias infantis democráticas e humanizadoras trazem para o ambiente escolar?

    Para contemplar a problemática da pesquisa proposta, bem como os objetivos dela decorrentes adotou-se uma abordagem qualitativa, constituindo-se em uma pesquisa com características de pesquisa-ação, onde duas questões ("Como?" e "Quais?") guiaram o processo de investigação.

    No decorrer da pesquisa houve interação entre pesquisadora, educadoras e educandos, onde foram trabalhadas histórias infantis que reforçam sobre a valorização de cada componente de um grupo, do trabalho coletivo, ouvindo os educandos, os educadores, funcionários da escola, a fim de planejar ações coletivas que contribuíssem para a modificação do contexto, podendo tanto os pesquisados e pesquisadora serem também modificados e se ajudarem mutuamente.

    As relações, gestos, ações, enfim todos os dados do contexto foram importantes para a melhor compreensão do problema que estava sendo estudado, pois a pesquisa se desenvolveu em interação dinâmica, reformulando-se constantemente. Nesse tipo de pesquisa, os dados não são apenas colhidos, mas vão sendo construídos a partir das observações participantes, entrevistas com a direção da escola, supervisora escolar, professora regente e educandos para conhecer a realidade, apresentar a problematização da pesquisa, ouvir sugestões.

    Para embasar a pesquisa, optamos pelos seguintes autores: Novaes Coelho (1997, 2000), Freire (1982, 1998, 2001), Maturana (2004), por acreditarem que a educação deve estar a serviço da vida, da autonomia, da democracia e que, diante de uma realidade tão desumanizadora, devemos construir uma nova cultura organizacional-democrática.

    Se analisarmos um pouco da trajetória humana, podemos perceber que a história que vem sendo construída pela humanidade, nos dias atuais passa por um período em que as mudanças são rápidas e drásticas, dentro de um macrossistema que supervaloriza o “ter”, o consumismo e deixa o “ser” esquecido: o ser gente, o ser humano, o ser recíproco, o ser compreensível, o ser participativo, o ser democrático, o ser responsável e co-responsável. Esta realidade em que a competitividade é uma prática constante traz reflexos aos seres humanos que mecanizam suas práticas, sem tempo para a reflexão sobre o que querem para suas vidas e a de seus semelhantes, não atuando para e na coletividade.

    Ao mesmo tempo em que a tecnologia pode encurtar distâncias entre os seres humanos, também ela pode “engaiolá-los” em frente às máquinas, distanciando as trocas de olhares, de carinhos, sem a oportunidade do toque, do olhar, da leitura do outro que acontece através das interações presenciais.

    Esse modo como as pessoas se relacionam, gera uma sociedade que se organiza preocupada em produzir para consumir, o que também se faz presente nas nossas escolas, com uma organização hierárquica e tecnicista, onde não somos aprendentes e nem proporcionamos aos educandos um ambiente favorável para a vivência do diálogo, da reflexão, da criação, da democracia. As mudanças chegam até nossas escolas impostas, elaboradas por alguns, para serem reproduzidas em série, sem haver questionamentos, reflexões e apresentação de novas propostas (muitas vezes em nome da gestão democrática, da autonomia, da descentralização e da participação).

    A cultura da obediência, do autoritarismo, das "gavetinhas", parece estar enraizada na sociedade, em cada pessoa e também na escola, sobretudo quando se transmitem os conteúdos fragmentados, histórias infantis vazias de culturas humanizadoras, sem significado para a vida, sem comprometimento com a transformação social. Segundo Sacristan (1998, p.16)

    [...] a escola transmite e consolida [...] de forma explícita e em outras implicitamente, uma ideologia cujos valores são o individualismo, a competitividade e a falta de solidariedade, a igualdade formal de oportunidades e a desigualdade "natural" de resultados em função de capacidades e esforços individuais. Assume-se a idéia de que a escola é igual para todos e de que, portanto, cada um chega onde suas capacidades e seu trabalho pessoal lhes permitem. Impõe-se a ideologia aparentemente do individualismo e do conformismo social.

    Nesse sentido, esta realidade nos desafia a resgatarmos o valor da coletividade, da cooperação, da participação como uma possibilidade de construirmos uma nova cultura organizacional, onde se estabeleçam relações democráticas num ambiente onde todos se sintam sujeitos (com voz e vez), em especial, na escola.

    A perpetuação de culturas alienadoras, antidemocráticas, onde as leituras e histórias infantis são transmitidas intencionalmente com o objetivo de impor regras, reforçar comportamentos exigidos pela sociedade burguesa, visando padronizar o comportamento humano sem levar em consideração a emoção, a intuição, o instinto, a fantasia, o sonho, a imaginação, a (re)criação, aparece em muitas práticas educativas como algo natural, gerando uma dificuldade de mudança.

    As histórias infantis democráticas e humanizadoras podem contribuir significativamente para que ocorram mudanças efetivas nessas práticas pouco democráticas, uma vez que os personagens passam a fazer parte do cotidiano das crianças, não para rotular, mas para salientar a bondade, a cooperação, a solidariedade, a participação. Muitas vezes, o desinteresse em participar da vida escolar acontece porque não são trazidos para dentro da escola recursos significativos que fazem parte do universo dos educandos e nem são exploradas as possibilidades da leitura, da interação, da participação a partir das histórias infantis, uma vez que estas resgatam o interesse, aproximam os personagens do leitor, possibilitam colocar-se no lugar do outro e a construção de um ambiente cooperativo.

    No entanto, é preciso nos exercitarmos para aprender a trabalhar cooperativamente no ambiente escolar, pois, segundo Maturana (2004), a educação para a competição não é um exercício de caráter natural/biológico, mas é construída culturalmente. Sendo assim, a competitividade afasta os seres humanos, impossibilitando relações de amorosidade, de respeito à capacidade participativa que cada ser humano por natureza possui, na medida em que nega a legitimidade do outro.

    Dentro desse contexto, o papel da escola é propiciar à criança a ver o mundo, a ler o mundo, a descobrir o mundo e as maneiras de ser gente neste mundo, contribuindo para a construção de uma cultura humanizadora. Entretanto, a preocupação do professor quando a criança entra na escola parece estar muito voltada à alfabetização. Para isso utiliza, muitas vezes, apenas o alfabeto, não possibilita a leitura de uma melodia, ou ouvir uma história. A partir do respeito à individualidade e as singularidades que cada um possui pode-se ir construindo o coletivo e o bem-comum, garantindo formas de participação para que as pessoas vivam relações coerentes e justas em igualdade de condições, vivenciando sua cidadania. Segundo Covre (1995, p. 74), para construirmos a cidadania

    O primeiro passo é aquela revolução interna, na qual o rompimento com o autoritarismo e com o consumismo começa em cada uma das subjetividades – em cada um de nós, portanto, a todo o momento – e da qual extraímos a força subjetiva de se sobrepor ao cotidiano e, pouco a pouco, ao mundo, ao capitalismo.

    Por isso, quando falamos em cidadania, em democracia, é necessário refletir sobre a sensibilidade e o comprometimento que cada ser humano deve ter com os outros seres humanos; diante da complexidade da época em que vivemos, onde a violência e a concorrência estão presentes no dia-a-dia, inclusive em muitas histórias infantis trabalhadas com as crianças, reverenciando os heróis, os mais fortes e, com isso, reforçando o descaso com o ser humano em geral, parece que viver para competir é algo natural e próprio do ser humano.

    Estamos habituados a ouvir e ver freqüentemente nos meios de comunicação, e na rua, pessoas serem tratadas sem um mínimo de dignidade. É freqüente observar os seres humanos assistindo filmes sangrentos, lendo e ouvindo histórias em que os personagens competem, se destroem para vencer, torcem para que haja silêncio e anulação do outro. Parece que, para ser interessante, toda a história precisa de disputas, competição... de vencedores e vencidos.

    Se resgatarmos um pouco da história da infância, veremos que até o final do século XVII os adultos nem se preocupavam em respeitar as particularidades, as necessidades, as características diferenciadas das crianças e participar de competições, da vida adulta era algo natural. A criança só é percebida como merecedora de uma educação e leituras diferenciadas a partir do final XVII e século XVIII. É assim que surge, então, a literatura infantil, que em seu início estava muito ligada à pedagogia, à manipulação das emoções infantis, pois precisava repassar valores, normas sociais, tendo sempre intenções formativas e informativas.

    Também com o advento do capitalismo e a emergência da burguesia, com a Revolução Industrial, surge a necessidade de capacitação para enfrentar o mercado de trabalho, a concorrência. Então é formada uma nova organização familiar; nessa nova organização, construída a partir da Revolução Industrial, há preocupação em se preparar os jovens para o trabalho e o desempenho social (como trabalhador-produtor e consumidor); e, então, a escola parecia ser a “solução” para a necessidade deste momento. Uma vez implantada a educação formal, surge a preocupação em se criar um recurso lúdico que ajudasse a impor regras e transmitisse valores capitalistas às crianças, o que impulsionou o surgimento do livro infantil.

    Muitas histórias que ouvimos e lemos a vida inteira reforçam esses valores capitalistas como, por exemplo, a história “Os Três porquinhos”, na qual aparece um porquinho que era preguiçoso, construiu sua casinha de palha e foi derrubada com facilidade pelo lobo; outro se esforçou um pouquinho mais e fez sua casinha de madeira que, com um pouco mais de esforço do lobo, também foi derrubada; o terceiro era trabalhador e construiu sua casa com tijolos e o lobo não conseguiu derrubá-la.

    No Brasil, surge no século XX, uma literatura voltada ao público infantil, com Monteiro Lobato, trazendo um novo estilo para a literatura infantil, através da sua primeira obra “Narizinho Arrebitado”, mais tarde rebatizado como “Reinações de Narizinho”. A obra lobatiana “O Sítio do Pica-Pau Amarelo” mostra as fases do povo brasileiro, onde os personagens ganham vida, falam, transformam-se em realidade e trazem as crianças para esse mundo fantástico das histórias, das letras, das palavras.

    As palavras possibilitam ao ser humano se expressar, expressar seu mundo interior para se comunicar com o mundo exterior. Mesmo não sendo a única maneira usada para se comunicar, ainda é um recurso precioso, seja ela expressa de forma oral ou escrita.

    É importante salientar que a escrita não surgiu apenas para comunicar, mas também para dominar. Segundo Britto (In FARIA E MELLO, 2005, prefácio)

    [...] A escrita foi produzida principalmente em função da necessidade do registro da propriedade e do fluxo do comércio.[...] Mas a sua função primordial, a de produzir uma sociedade regrada e normatizada, continua sendo a de maior relevância.

    Para que os livros infantis e, conseqüentemente, as histórias infantis não estejam a serviço de uma cultura dominadora, hegemônica, a serviço da perpetuação de regras, normas, valores dos grupos dominantes, é preciso que desde cedo todos tenham alguém que desperte o desejo de ouvir, ler e escrever histórias infantis, levando à imaginação ou a pensamentos jamais visitados. Ler e escrever deve ser uma aventura cheia de idas e vindas, possibilitando reflexões, contestações, posicionamentos.

    Nunca é demais lembrar que o ato de ler é base essencial para a apreensão do conhecimento, pois implica desvendar mistérios e compreender mundos, ultrapassando qualquer idéia de se mensurar limites. Dinorah (2000, p.23 ) nos diz que:

    Não há caso de povo que tenha passado da barbárie à civilização sem que o livro tenha sido o intermediário. As mensagens captadas pelos ouvidos ou pelos olhos através do rádio ou da TV (por exemplo) não configuram uma personalidade pensante nem uma consciência crítica. Já mensagem escrita propicia a reflexão, alcança as galerias mais profundas da mente. Difundir o livro será concorrer para uma formação de uma nação livre, independente e soberana.

    Para construirmos uma nação livre é preciso repensarmos sobre a discriminação que algumas crianças sofrem não tendo acesso a livros, a histórias infantis, pois a hierarquia de saberes presentes na sociedade e também na educação faz com que os meios de comunicação e, inclusive os escritores, sejam vistos como os donos absolutos das verdades, vendo-as como únicas, absolutas e acabadas, expandindo uma cultura da leitura pacífica, da concordância com a visão de mundo apenas da mídia e/ou do autor.

    A necessidade de conhecer e intervir no mundo exige uma certeza de que aprender não se resume em acreditar que tudo é certo e nem de estarmos demasiadamente certos de nossas certezas. Freire (1998) nos ajuda a refletir sobre nossa prática quando diz que é problematizando, dialogando, fazendo releituras, contextualizando que vamos nos constituindo gente, interagindo no mundo e com o mundo.

    O ato de ler, contar histórias, encerrando a exploração do texto, como se a palavra do autor fosse a verdade absoluta, como se a entonação do contador desse à história um ponto final para o que está escrito nas entrelinhas, como se a interpretação do educador fosse única, essa história fechada em si não ajuda aos educadores e educandos a se tornarem críticos e nem a ter uma visão contextualizada.

    Mesmo na ilustração de um livro podemos criar, fazer novas leituras, perceber detalhes que o autor não explorou, porque as visões e leituras de mundo variam conforme a sua cultura e a sua experiência vivida. No momento em que o educando se coloca no lugar dos personagens, brinca com eles, recria e reconta histórias está intervindo, construindo novas alternativas, colocando-se como sujeito, autor da história e de sua própria história de vida.

    Essa relação texto-contexto para a criança se torna fácil quando usamos as histórias infantis, pois a mesma, ao ouvi-la, coloca-se no lugar do personagem, vivenciando as situações, identificando-se com os conflitos, as emoções, os impasses e as soluções. Logo, esclarece suas próprias dificuldades, podendo encontrar um caminho para solucioná-las. Isso dará a capacidade de passar da condição de apenas receptores para construtores do conhecimento e da cultura, mas é importante começarmos desde cedo a despertar para o gosto salutar da leitura. A familiaridade com as histórias infantis, "as idas e voltas" na narração, “costurando” harmonicamente os fatos, a relação próxima do narrador com a história, dando ênfase ao tom de voz dos personagens, contando pausadamente a história, envolverá a criança para que ela participe. Uma história bem contada, interpretada, envolve as crianças e a sua mente, que vai seguindo o enredo, os personagens, os sentimentos... e vão se empolgando a ponto de a respiração ser contida para não interromper o ritmo da história. O desfecho produz uma carga emocional de encantamento; a euforia se produz na satisfação que se manifesta quando os medos, as ansiedades, as maldades são vencidas nas histórias, porque a criança se coloca a favor dos valores que acredita serem “certos”, passando a vivenciar esses valores através das histórias, modificando a sua maneira de pensar e agir, ajudando, assim, a construir uma nova cultura.

    Falar em cultura é uma oportunidade de pensar na sociedade, nas relações que os seres humanos estabelecem com seus semelhantes, na maneira como podemos intervir para que os seres humanos desde a infância vejam que, por natureza, nascemos e crescemos necessitando da harmonia com o meio em que vivemos, principalmente com as pessoas. Harmonia não significa apatia e homeogeneidade, mas relações de respeito, cooperação, empatia, comprometimento com a natureza, com os seres humanos.

    Mesmo tendo origem biológica comum, os seres humanos se expandiram ocupando diferentes territórios, formando agrupamentos, devido à necessidade da convivência com o outro, das interações, das trocas para se fortalecerem no enfrentamento dos conflitos, pois, para Santos (1994, p. 11),

    não apenas os recursos naturais devem ser considerados quando se pensa no desenvolvimento dos grupos humanos. Mais importante ainda é observar que o destino de cada agrupamento esteve marcado pelas maneiras de organizar e transformar a vida em sociedade e de superar os conflitos de interesse e as tensões geradas na vida social.

    Assim, à maneira como os grupos interagiam também se diferenciavam (e se diferenciam), segundo a cultura dos seres humanos que compõem este grupo, uma vez que a cultura é resultado das ações/transformações que caracterizam os sujeitos de um grupo social. Mas a maneira como cada grupo se organiza, se reorganiza, se relaciona é que vai tecendo a cultura que irão manter ou transformar; nesta processualidade sócio-histórica, a linguagem é mediação fundamental da humanização que se dá culturalmente.

    Sendo assim, cultura é processo, uma construção histórica, são manifestações do dia-a-dia, construídas por todos os seres, independentes da classe social, porque ela existe em função dos seres, da vida coletiva; não existiria cultura e nem seria repassada se não houvesse interações sociais. Essas afirmações nos impulsionam a entender a função de cada ser humano, enquanto sujeito que constrói uma nova cultura ou mantém a mesma uma vez que "[...] a cultura não é algo natural, não é decorrência de leis físicas ou biológicas. Ao contrário, a cultura é um produto coletivo da vida humana" (SANTOS, 1994, p. 45). Portanto, constroem-se e recriam-se culturas na coletividade, optando por relações e aprendizagens dominadoras ou libertadoras, autoritárias ou democráticas.

    Nesse sentido, Freire (2001) nos convida a refletir sobre qual cultura desejamos, quando afirma que é a sociedade historicamente que cria ou recria a educação, bem como a cultura, para estar a serviço da mudança ou da permanência de uma sociedade elitizante. As crianças são também reflexos dessa cultura que estamos construindo, por isso não se manifestam por temor quando se sentem pressionadas pelos adultos, quando as relações estabelecidas dentro da própria casa e na escola são de coação, obediência, imposição.

    Os adultos trazem reflexos de uma cultura em que, para serem considerados educados, era preciso obedecer aos mais velhos sem refletir e questionar. Em conseqüência dessa cultura, existe a dificuldade de quebrar estes paradigmas e se percebe um antagonismo: imposição de regras ou liberdade em excesso, sem comprometimentos. Numa relação bidirecional, ambas as partes devem aprender a olhar, a escutar o outro, considerando suas idéias e contribuições importantes para a discussão coletiva.

    Essa perspectiva de cultura nos instiga a pensar sobre a capacidade dos seres humanos como criadores, mantenedores e/ou transformadores da cultura na qual e pela qual vão se humanizando, uma vez que a humanização só acontece sócio-histórico-culturalmente porque somos seres culturais, condicionados, mas não determinados, por uma cultura vigente, com possibilidades de interagir e interferir nos diferentes processos culturais. Sendo seres culturais, temos a capacidade de interagir, criar e recriar culturas; através de nossas práticas podemos construir novas relações, novos ambientes e novas estruturas sociais, sem vencedores e vencidos.

    No entanto, muitas vezes, não são proporcionados, no ambiente escolar, momentos em que as crianças possam experienciar/vivenciar uma prática democrática e humanizadora, reproduzindo inconscientemente a cultura dos vencedores e vencidos. Infelizmente, a maioria das histórias infantis ainda propaga a necessidade da dominação, da vingança, do poder, da competição, da desigualdade. Para que ocorram mudanças na educação, é importante que os envolvidos na escola aprendam a estabelecer uma comunicação amorosa, interagindo de maneira reflexivo-dialógica, fazendo uma "leitura" de como está sendo construído o ambiente escolar e como cada ser humano pode ajudar a construir uma cultura democrática, tecida por um novo jeito de caminhar, de ler o mundo, de interagir no mundo para o bem da coletividade e da vida. Por isso, "a escola tem a função de preparar cidadãos, mas não pode ser pensada apenas como um tempo de preparação para a própria vida. Ela é a própria vida, um local de vivência da cidadania" (ALARCÃO, 2001, p. 18).

    Sendo a escola a própria vida, as vivências democráticas proporcionadas no ambiente escolar irão repercutir, não só na cultura organizacional da escola, mas também em toda a vida dos educandos e dos educadores, apontando caminhos para a construção coletiva de uma cultura organizacional-democrática.

    Para que essa gestão democrática seja construída, as pessoas precisam ser sujeitos, com poder da palavra para discussões, sugestões e comprometimentos; onde o linguajar, que é o entrelaçamento da emoção e da linguagem (MATURANA, 2004), permeie as relações. A palavra defendida com embasamento, com objetivos claros a favor de uma mudança possível, viável, transformadora, sugerindo novos rumos, novas expectativas são como folhas cheirosas ao vento que acabam entrando em cada ser e transformando as relações de poder e construindo uma cultura organizacional onde a democracia, o amor ao próximo, a “pedagogia do bem-querer” (re)criem e ocupem novos espaços e novas relações.

    A preocupação em tornar a sociedade mais humanizadora e democrática passa também pela escola; neste sentido, ela pode possibilitar o convívio dos educandos com histórias infantis humanizadoras, dando uma atenção especial para o desenvolvimento crítico, criativo e participativo do aluno, para as relações interpessoais e afetivas. Nesse processo de construção de uma cultura organizacional democrática, o educador é um dos dinamizadores, que pode inovar sua metodologia, permitindo a manifestação do aluno, de suas emoções, modificando o ambiente escolar; afinal a escola pode ser um lugar para ser feliz.

    Para isso, a cultura a ser construída não pode se inspirar nas histórias marcadas pela casa-grande e pela senzala, pelo senhor e pelo escravo; transformando o senhor em empresário, em diretor, gestor e o escravo em trabalhador, professor alienado, aluno discriminado. Talvez necessitemos rever nossa prática pedagógica, nossa visão de educação, de leitura, de mundo, nossa participação nas decisões escolares, comunitárias... Rever se estamos favorecendo a construção de relações democráticas e solidárias, ou se usamos as histórias infantis para praticar a coação, o medo, a inibição, a manutenção do sistema vigente nesta sociedade através de uma cultura da submissão e da exclusão.

    Dessa forma, as histórias infantis e atividades propostas na escola são importantíssimas se o professor encará-las como possibilidades de se descobrir, repensar, renovar, transformar esses valores herdados para se construir uma cultura democrática e humanizadora.

Nota

1.     A partir desse momento, utilizo a primeira pessoa do plural por entender que essa caminhada foi construída com a participação de outros sujeitos que estiveram, de uma maneira ou de outra, envolvidos na pesquisa.

Referências

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